sábado, 31 de outubro de 2009

As horas mudam

Preocupava-se com o tempo pois sentia-se aprisionado a ele. O tempo todo tendo que dar conta do tempo, sujeitando-se aos seus impropérios, aos seus desmandos - e isso porque sentia que tudo que vinha do tempo era um desmando. Tinha que se doutrinar para caber dentro de seus limites e fronteiras. Então, sempre queria saber as horas e tinha medo de ultrapassá-las, resignando-se, por outro lado, se era por elas ultrapassado. Como se apostasse corrida. Como se tivesse que se equiparar a elas e estivesse sempre, no máximo, a cinco passos largos de distância. Um intervalo que aparentava ser intransponível.

Isso era outra coisa que gostaria de comunicar à irmã e novamente a dificuldade se impunha: como falar, por onde, que termos usar, qual a medida da ortografia que poderia explicar tudo o que sentia e deixava de sentir em relação àquela irreparável forca que era o tempo? Uma verdadeira forca, sem tirar nem por.

Quanto à irmã, incomodou-se com a pergunta. Você sempre quer saber as horas!

Era porque se sentia aprisionado a elas, ele quis dizer. Mas ela parecia adivinhar. Parecia conhecê-lo bem. E disse, antes que ele pudesse retrucar o que quer que fosse:
você sabe, Rogério, que tudo pode mudar de repente? As coisas mudam.

Era como se, naquele momento, ele obtivesse a resposta para algumas de suas eternas questões. Sim, as coisas mudam. Talvez fosse porque achasse que se encontrava preso ao tempo e à paralisia das coisas que se preocupasse tanto com o horário. O horário! Logo o horário! O que havia de mais grosso e concreto em relação ao tempo. O subsolo do tempo, o porão mesmo! O horário arbitrário ditado pelos relógios, calendários e convenções! Aquilo que era totalmente contingente, que dependia da cultura. Qual era a medição do tempo para os índios? O tempo não era linear ali, mas circular, se é que possuía alguma qualidade, o tempo! E, no caso de as coisas mudarem, poderiam retornar ao ponto anterior. E, no caso de as coisas mudarem, as coisas mudavam. E, no caso de as coisas mudarem... Era isso, era exatamente isso o que o perturbava. Aquela sensação de estar sempre na horizontal, na mesma cama, no mesmo quarto, na mesma casa, no mesmo dia, no mesmo horário, sempre na mesma vida, sempre no mesmo sempre, sempre no mesmo mesmo! Então as coisas mudavam? Mudavam, as coisas?

Sim, Rogério, as coisas mudam e isso pode acontecer quando você menos espera.

As coisas podem mudar quando você menos espera. Guardou essa frase e recostou-se, sem se importar com a hora.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

o incomunicável

Rogério e Maria ficaram longo tempo, um perto do outro, sem nada dizer, sem nada olhar, ainda que os olhos não estivessem cerrados. No mesmo quarto, ele sobre a cama dela, ela na cadeira, às vezes mexendo numa ou noutra coisa, o computador milagrosamente desligado. Os ruídos que seus movimentos promoviam também eram quase inexistentes. E uma bolha parecia guardar aquele recinto, tornando-o auspicioso, de uma certa maneira. Aquele silêncio era quase o breu pelo qual Rogério ansiava. Ficar assim sem dizer nada era privilégio de poucos. Raridade que devia aproveitar ao máximo, tateando-a, conferindo-lhe concretude.
E se perguntava por que nadava para a corrente contrária àquela que a civilização inteira fatalmente buscava. Ele se sentia contra a civilização inteira e isso era um peso tão grande, mas tão grande, que apenas ficar deitado ali na cama, sem ter que nada dizer, poderia, muito talvez, trazer um certo e diminuto alívio. Muito talvez.
Por outro lado, pensou, de repente, sentindo a ardência que um tapa na cara pode provocar, mas agora oriundo, aquele ardor, do insight misterioso: achava-se um tanto quanto melhor e maior que tudo, não? Odiava quando seu pensamento zombava dele, quando seu pensamento exibia um meio sorriso de escárnio. Era uma parte de si que estava sendo sarcástica consigo mesmo, que ria igual hiena, enquanto a outra parte, ele todo, permanecia sério e bobo! E não podia negar absolutamente aquele pensamento de que se achar nadando contra a corrente de uma inteira civilização era sentir-se bom demais.

Quis comunicar aquilo tudo à irmã, que estava sentada de costas para ele. Quis dizer para ela o quão complexo era seu sentimento-pensamento. Quiz dizer-lhe o seguinte: a ambigüidade me povoa. Quis gritar-lhe: você já sentiu o paradoxo navegando dentro de você? Mas não sabia nem como nem por onde começar, apesar de todo aquele silêncio ser o momento mais propício às comunicações desordenadas. E, quando abriu a boca, foi para dizer:
- Maria, que horas são mesmo?

terça-feira, 27 de outubro de 2009

breu

Quando Rogério abriu os olhos...
horizontal, ele continuava na horizontal.
Mas não era a sua cama o que havia de suporte. Nem o chão. Era a cama de Maria. A irmã. Que nem sonhava que era constante o fato de ele imaginar um tiro que acabasse com tudo e trouxesse um breu.
Maria o levantara, sabe-se lá como, pois era esguia que só ela. "Mirradinha", como dizia o ex-namorado tentando conquistá-la há anos atrás. Mirradinha, mas com força, isso sim. Com personalidade. Forte. Tanto que o irmão, o Rogério, não iria dizer para ela jamais em sã consciência - e sua consciência costumava ser sã - que imaginava um tiro, um estrondo e um breu, sem penduricalhos de imaginação (não, não, ele não imaginava choro, ele não imaginava vela, ele não pedia uma fita amarela guardada com o nome dela). Ele não diria à sua irmã, Maria, pois ouviria dela um sermão longuíssimo e irritado desfiando todos os quês, porquês e saquês das opções pela vida e pela morte. E ele não conseguiria um espacinho sequer para dizer que não se tratava de vida e morte e sim de claro e escuro. "Tá tudo muito claro, minha irmã, eu quero um pouquinho mais de escuro". E ela replicaria: "então, é disso mesmo que estou falando!". Ela achava que tudo era metáfora, mas para Rogério, apesar de não parecer, era tudo mais concreto: estava tudo muito claro mesmo e o tiro proporcionaria breu. Um pouco mais de breu. Ainda que eterno.
De fato, ele desmaira às 11h38 e agora acordara na cama da irmã, que o olhava, e ele não imaginava que Maria não tinha nada a dizer. Que horas seriam agora?

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

os primeiros momentos da manhã

Rogério levantou-se naquele domingo às 11h34. Era exata a imagem da hora do relógio, e a imagem não se apagava, até o dia seguinte, quando olhava a hora que acordava e guardava até a hora de dormir novamente.
Rogério levantou-se às 11h34 e caminhou até a cozinha, onde olhou sem vontade a garrafa térmica de café, os pães em seus sacos plásticos e algumas migalhas sobre a mesa da cozinha.
Rogério chegou à cozinha sem vontade de estar ali ou em qualquer outra parte. Vinha sentindo um peso enorme todo dia ao dormir e ao levantar. E também naqueles momentos em que sua insônia intermitente fazia com que acordasse no meio da noite e se conscientizasse de que estava no quarto, na cama, na horizontal, no quarto, na cama, na horizontal, no quarto, na cama, na horizontal, e em nenhum outro lugar diferente do lugar em que se encontrava no quarto, na cama, na horizontal. Era o que sentia: sempre a mesma coisa no quarto horizontal e na cama, sem soluções. Estava cansado de si mesmo e sentia a vida inexpressiva. Era preciso fazer alguma coisa, ele sabia disso. E elaborava há dias, semanas, meses. Era preciso fazer alguma coisa para sair da horizontal. Sentiu saudades de uma época em que tinha vontades. Mais vontades, quaisquer que fossem.
Olhou o relógio e viu que agora eram 11h38 e o domingo ainda era domingo, assim como o começo, que não deixava de ser começo. E o desmaio que veio a seguir imprimiu uma verticalidade inescapável àquele momento.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

o irmão de Maria

A Maria não tinha certeza se era um risco virar um personagem de um blog. Ela percebia que isso estava acontecendo, pois era objeto de opiniões e textos que estranhava serem assim escritos à sua revelia. O fato é que Maria tinha um irmão mais novo, chamado Rogério, talvez o autor do blog, dos textos, ou não. E Rogério ficava muito tempo deitado em sua cama, no quarto em frente ao seu. Ela passava por lá e Rogério ora lia gibis, ora dormia, ora via filmes, ora não parecia fazer absolutamente nada. Às vezes conversavam, mas Rogério era muito fechado no que dizia respeito à sua vida, à vida alheia e ao tempo. Nunca comentava sobre o clima e não sabia, a Maria, qual era a opinião do irmão sobre o horário de verão. Maria não fazia idéia de que, na cabeça de Rogério, uma imagem que ia e voltava, ia e voltava, ia e voltava, era a de um revólver que atirava, peremptoriamente, e acabava com sua vida. Rogério imaginava o fim. O seu fim. Era constante. E era uma imagem rápida. Rogério não divagava sobre o contexto do fim e os momentos ou dias seguintes. Não imaginava que alguém poderia chorar, que haveria um velório, que seus pais ficariam desesperados ou envergonhados, que sua irmã Maria sentir-se-ia traída. Não imaginava reações dos escassos amigos com os quais podia contar e que, vez ou outra, telefonavam. Era apenas aquilo. O revólver, o tiro e um breu cheio de alívio.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

Preferências de Maria

Maria preferia escrever a comprar roupas. Embora tivesse prazer comprando roupas. Às vezes. Pois nem sempre dava certo comprar roupas. Assim como nem sempre dava certo a programação do fim de semana. Escrever também não era sempre que dava certo. Mas o maior problema de Maria era achar-se estranha por preferir escrever a comprar roupas. Também não gostava da fazer as unhas, preferia roê-las. Eram mais prático, embora de efeito estético duvidoso. Maria sentia-se mal de não gostar de fazer as unhas e de não apreciar sapatos. Não desgostava de sapatos, mas estes não eram objetos aos quais dedicava grande valor e atenção. Preferia outros objetos. Por exemplo... por exemplo... eu diria que... o que, mesmo? Maria nem lembrava que tipo de objetos gostava. Não eram vestidos. Nem mesmo colares. Brincos, às vezes. Ah, sim! Livros! Preferia os livros aos vestidos. E achava-se verdadeiramente esquisita por preferir os livros aos vestidos. E também não tinha problemas de se desfazer dos livros de tempos em tempos, quando achava que os tinha ultrapassado, àqueles, dos quais ela se desfazia, raramente se arrependendo. Maria se desfazia pois já não estava no mesmo nível deles. E dizia aquilo para si mesma não como um ato de arrogância. Fez o mesmo com os brinquedos, quando tinha lá seus dez anos, e se desfez de alguns deles, só alguns, deixando outros. Os que mais duraram haviam sido os Playmobis e as Barbies. (Não duvidava de que, se encontrasse um Playmobil agora, qualquer que fosse, sentaria e brincaria um pouco, no mínimo por um minuto!) Mas havia um momento que não gostava mais de panelinhas e não era arrogante por dar as panelinhas a qualquer outra pessoa, que gostasse mais, assim como não era arrogante por dar O Mundo de Sofia, embora reconhecesse seu valor. Maria era assim. Cheia de nóias.

sábado, 17 de outubro de 2009

as razões

Maria tinha vergonha de si mesma. Por diversas razões.
Uma das razões era não conseguir fazer de sua vida algo minimamente prazeroso.
O trabalho - não gostava.
O amor - não tinha.
A família - sem comentários.
Os gatos que tinha às vezes lhe faziam cócegas na alma. E era assim surpreendente.
Mas naquele sábado notou o desespero de se sentir inteiramente só. E completamente instável. E sem controle algum. Num mesmo dia, era capaz de sentir todas as gradações das emoções.
Ela estava tão decepcionada, que jogava a culpa em todos, mas sabia, ela sabia, que era a maior responsável por tudo aquilo.
Maria tinha vergonha de si mesma. Por muitos motivos.
E não conseguia esquecer-se deles distraindo-se com aquilo que antes era bom. Maria não criava mais como antes. Maria não era mais Maria. E se tornava um ser detestável para muitos.
Jogou o sábado fora, que era uma de suas únicas brechas de respiração durante a semana. Como os outros podiam entender o quão massacrante era sua rotina de segunda à sexta? Como os outros poderiam não ver aquilo como frescura? Ela não usava bombinha, mas a asma que sentia fazia com que se tornasse um zumbi de segunda à sexta, tentando puxar algum ar no sábado, e voltando a perdê-lo no domingo. Não tinha para onde correr, eram paredes o que via para frente e para trás, e era estreita a passagem. O esforço que ela fazia era desmedido. E talvez por isso acabasse se tornando um ser detestável quando sobrava um tempo: era uma ira acumulada contra tudo e todos (mesmo contra aqueles que não tinham parte em sua ira).
Maria se humilhava. Pedia ajuda. Pedia companhia. Pedia: posso dormir na sua casa só hoje para eu não ficar tão sozinha? Maria recebia a negativa, que não era novidade. E se arrependia de ter feito o pedido, para em seguida pedir de novo. Maria fazia a merda, sentia-se envergonhada, e repetia a merda no minuto seguinte. Maria era uma merda.
E Maria tinha vergonha de si mesma. Sem razão alguma.