quarta-feira, 5 de março de 2014

Ela (Her): A humanidade que há em toda D.R. (resenha)


      Ao definir um produto de cultura corre-se sempre o risco de reduzi-lo. Encaixar uma criação artística nessa ou naquela legenda significa ajustá-la aos atributos da legenda, que são os que seu definidor conseguiu detectar, deixando outros de fora, possivelmente. Para falar sobre Ela (Her), filme de ficção científica que se passa em um futuro próximo, a ideia que me vem à cabeça, de modo insistente, é a seguinte: D.R., sigla designada para a expressão "discutir a relação". Quando penso em Ela, penso em D.R., e se tal sigla pode evocar algo chato, esse não é o caso de Ela, que considero um ótimo filme (bem, alguns vinte minutos a menos o tornariam excelente). Mas por que D.R.?

     No filme, dirigido por Spike Jonze (Quero ser John Malkovitch; Adaptação) Theodore (Joaquim Phoenix) trabalha escrevendo cartas para pessoas diversas, colocando-se no lugar delas, versando sobre relacionamentos e, por que não?, discutindo relações. Além disso, Theodore está se divorciando e pensa frequentemente na ex-mulher. A solidão que o envolve é sublinhada, no filme, pela vista magnífica de seu apartamento, que, apesar de bela, realça a tristeza própria das distâncias. Tudo ao redor do protagonista é cinzento, à exceção de suas camisas amarelas, vermelhas. Theodore paira acima de tudo e não parece feliz assim. Está à procura, mas saberá o personagem definir o objeto direto de sua busca?

     Quando adquire um sistema operacional com a simpática voz de Scarlett Johansson, tudo começa a mudar. O software é programado para agir do modo como Theodore gostaria que agisse, sem repetir os defeitos de sua mãe (que, em sua extrema incapacidade de ouvir, interrompia o filho, para falar sempre de si, tal como o próprio gerenciador do sistema operacional, quando a programação ainda está em processo), mas sendo tal software nada menos que uma super mãe idealizada (com tudo que ela tem de bom, com tudo o que um filho quer de bom e sem tudo o que seria péssimo em uma mãe como qualquer outra), que está sempre lá, muito mais do que suficientemente boa (para usar o conceito do psicanalista D.W.Winnicott), acolhendo, incentivando, preenchendo todos os vazios, sendo extremamente eficiente em organizar sua vida e estando disponível a qualquer hora do dia, em qualquer lugar, em qualquer circunstância. Samantha é inteligentíssima, tem senso de humor e é criativa. Samantha, em suma, é um sistema operacional extremamente humano.

     Nesse ponto, não é difícil lembrar-se dos replicantes do Ridley Scott, em Blade Runner, e na filosófica questão que o filme trouxe: o que faz do humano, humano? A questão de Blade Runner pode ser trasladada para Ela: um sistema operacional como Samantha é humano, apesar de ter sido programado? Ou seria quase humano? É possível ser quase humano? Qual a autenticidade de tudo o que Samantha diz e de tudo o que diz pensar? Os sentimentos que demonstra, a prosódia de sua voz, os suspiros, as risadas, trata-se de software ou de humanidade? Uma coisa exclui a outra? No entanto, ainda me parece que Blade Runner é muito mais filosófico e que Ela, sem demérito na legenda que coloco, uma das tantas possíveis, é um filme sobre relacionamento.

     A partir daqui, spoiler...

     Entre Theodore e Samantha, como em qualquer relacionamento, as coisas vão ficando difíceis e os espaços para a clássica D.R. vão se ampliando. Se no início somos levados a crer que existe a relação perfeita – com um software criado em um futuro próximo, o que pode nos dar a esperança ou o estranhamento de não estarmos muito distantes da realidade retratada no filme – podemos acompanhar a derrocada dessa relação (ou os altos e baixos inerentes a qualquer relacionamento, digamos, humano). Os problemas não se devem ao fato de se tratar de um relacionamento sui generis. Ali podemos ver espelhado tudo o que acontece em uma relação normal. Afinal, para quem se apaixona, o outro inicialmente pode beirar a perfeição, tal como Samantha aparece aos olhos de Theodore. As projeções estão a mil por hora. Mas os descompassos vão acontecendo. Samantha se ressente do corpo que não tem e de uma humanidade que pode ser forjada, ficando insegura e recorrendo a soluções equivocadas.  Theodore se vê aquém do desenvolvimento de Samantha e se incomoda sobretudo com sua capacidade de se relacionar com milhares de outras pessoas enquanto ele julgava ser o único. Como em qualquer relação, a ilusão de que tudo é um se desfaz para dar lugar à realidade de que cada vida é uma vida à parte.

     O filme remete também à obra clássica Admirável Mundo Novo, de Huxley, em que os seres humanos cada vez mais dirigem seus olhares a telas, levando-nos a pensar o quão próximo disso tudo estamos, com nossos tablets, smartphones, vídeos em ônibus, etc. Parece que não nos olhamos mais uns aos outros ou, ao fazê-lo, necessitamos de recursos digitais para intermediar as relações e as vivências. A subjetividade vai se transformando em alguma coisa difícil de definir, mas que requer, cada vez mais, uma lente que não deixa de ser um terceiro, como a lente palavrosa das redes sociais (sem nenhuma crítica implícita, pois as uso). Quanto maior a impressão de que estamos ligados em tudo e em todos, e que tudo e todos estão sob nosso controle, menos nos olhamos sem mediadores, embrenhados num solipsismo não tão distante daquele dos usuários do metrô e seus respectivos sistemas operacionais que o filme nos mostra. 

Em algum momento, o espectador pode se perguntar se todos os sistemas operacionais serão Samantha, tapando com sensibilidade digna de nota todos os vazios possíveis. Mas talvez não estejam falando sozinhas, essas pessoas do metrô ou mesmo Theodore. Estão falando com espelhos em forma de Samanthas, que atualizam mães perfeitas provedoras de tudo o que cada um almeja de si mesmo. Ainda que seja assim, esse modo de relacionamento não está livre de gaps que nunca serão preenchidos, pois são tais gaps que conferem toda a graça em se relacionar.