quarta-feira, 29 de julho de 2015

lamento

não aguento mais tossir espirrar coçar queimar doer suar sofrer chorar me arrepender pirar correr saltar, não aguento mais febre, tonteira, zumbido no ouvido, alergia, afonia, enjoo, remédio, comprimido, gota, não quero gota, não quero injeção, não quero chá, nem mesmo aguento juro que não dor no estômago cabeça olhos cotovelo coluna articulações costela vitela martela meu tronco meu tórax, e
não aguento mais rouquidão,
não aguento mais nariz entupido
não aguento mais coriza,
calo,
agulha,
acupuntura,
e quanto às petéquias.
as petéquias.
gosto das petéquias na palavra, na letra, no papel, na tela, na faixa, no cartaz, no bilhetinho, no e-mail, no post, neste post, mas só aí petéquias,
para senti-las, não mesmo.

Crítica teatral: Beije minha lápide



Voltou ao Rio de Janeiro, na última sexta-feira, 24 de julho, para seis únicas apresentações no Oi Casa Grande, o espetáculo Beije Minha Lápide, com texto inédito de Jô Bilac, e com atuação de Marco Nanini, Carolina Pismel, Paulo Verlings e Renata Guida. A direção é de Bel Garcia e a peça é produzida por Fernando Libonati (Pequena Central).
A peça traz Marco Nanini em excelente interpretação do personagem fictício Bala, um escritor e profundo admirador de Oscar Wilde, que é condenado por ter quebrado a redoma de vidro que protege a lápide do escritor inglês. Bala está preso em um cárcere, viagiado constantemente pelo guarda Tommy (Paulo Verlings), que a tudo observa, mostrando-se uma companhia inicialmente admirada, em uma relação ambígua com o escritor condenado, assim como são as demais relações de Bala na história (com a filha, Ingrid, que trabalha no cemitério, e com a advogada, Roberta).
Se a história é ficção, o enredo é inspirado em elementos da realidade. Bala, assim como a lápide de Wilde, também é segregado do mundo por uma espécie de cela de vidro, como se fosse um assassino crudelíssimo e perigoso, desses que não se pode chegar perto (é possível lembrar de Hannibal, the Cannibal, em O Silêncio dos Inocentes, apesar de que, no filme com Anthony Hopkins, a cela não era de vidro, e ali sim talvez devesse ser, impedindo qualquer contato do criminoso com advogados, guardas, funcionários e visitantes). Talvez o personagem interpretado por Marco Nanini seja mesmo perigoso, pois não tem paciência com o comum, o óbvio e os hábitos da sociedade. Mistura, o tempo inteiro, aquilo que tem a dizer com o ditos de Wilde e, à certa altura, em um de seus devaneios, diz que uma ideia, se não for perigosa, não é uma ideia, em tácita referência ao escritor inglês. Bala tampouco se arrepende do que fez, ele não quer ser inocentado, não repensa sua violação. Em relação à advogada que insiste em defendê-lo, Bala a coloca à prova, para ver se está à altura de escrever uma carta a Oscar Wilde, com quem se confunde, e que ele irá ditar. Chega a avaliar suas unhas e sua caligrafia, ri de seu vestido, aponta sua arrogância, típica dos recém-saídos da faculdade. Em relação ao guarda, ele o ajuda com seus versos, opina acerca de sua tatuagem. Bala é tido como louco, e talvez a semelhança com a loucura seja de fato devida ao teor de suas ideias e à maneira como lida com sua inquietude.
Continue lendo a crítica em Revista Ambrosia.

terça-feira, 28 de julho de 2015

imbróglio

Ela diz que gosta dele mas o sacaneia a torto e a direito. Ele sabe. Ele deixa. Ele quer? Ele diz que gosta dela mas já não sabe dizer se ele é ele ou se é seu sintoma. Os dois dizem se amar, e se dizem a si mesmos, sem voz rouca, talvez um hálito de hortelã daqui, um bafo de cigarro barato de lá, mas são infelizes pra burro, pra jegue, pra lesma, pra nesga de alegria que, oh sim, já tiveram mas já não sabem onde mesmo foi parar. E mesmo que a lanterna ilumine muito o outro lado, muito o avesso, qualquer bem-estar sofre o desterro provocado por uma raiva engatilhada. Ela precisa da segurança que ele lhe dá, ele... Ele não se sabe. E nunca foi fácil sabê-lo, artífice excruciante de labirintos de si. E há nisso tudo um terceiro, um quarto e um quinto que mais ou menos assistem de camarote e sabem o fim da história. O terceiro é protagonista junto com os dois primeiros, o quarto sofre seus abalos, o quinto simplesmente deu azar. É o que menos queria saber e é justo aquele que não pode deixar visíveis suas lágrimas legítimas e mofadas. São lágrimas antigas, essas, são lágrimas risíveis, cobertas de um anacronismo espantoso. São lágrimas que já desbotaram, e cheiram mal, muito mal.

quando eu quase morri

quando eu quase morri, havia pessoas à minha volta, elas não disseram nada, não fizeram nada, e não pude gritar. quando quase morri, minha voz virou um fiapo estrangeiro, e era áspero, e era triste, era terreno baldio. as pessoas que me rodeavam (havia pessoas me rodeando) não sabiam que eu quase morria, mas ouviram meu fiapo. uma delas chegou a tocá-lo, aquele fiapo estrangeiro, irreconhecível, e o puxou, e o esticou, e o esgarçou, e minha voz era agora um istmo, deixou de ser território, nunca foi lar. quando quase morri, ninguém me reconheceu, e o último a sair não se preocupou em apagar a luz.

sábado, 18 de julho de 2015


Se você fosse chamado a representar o Inconsciente, essa instância obscura colocada em teoria por Freud, e não houvesse como fugir da tarefa, como o faria? Um quadro de Bosch, de Salvador Dalí, um filme do Buñuel? René Magritte? Que imagens escolher? Você poderia devolver com uma pergunta: e por que não representá-lo com a música, dado que apenas ela pode indicar as moções que nascem e se movimentam no inconsciente, apenas a música pode dar conta dessa força propulsora que produz arte e loucura, sonhos e chistes?
Pois eu diria que, se quisesse representar o inconsciente, teria de unir imagem e música, e  já indicaria como opção o cenário e a iluminação do espetáculo Pulsões, que estreou dia 11 de junho no Teatro Poeira, com texto inédito de Dib Carneiro Neto e direção de Kika Freire, que mergulhou no pensamento da Dra. Nise da Silveira após ver um filme em que o assassino era perdoado e o louco não (não há mesmo perdão para a loucura). Cenário e iluminação, parceria fantástica dessa obra de arte que é Pulsões, já fazem com que o espectador se situe nesse terreno misterioso que é o inconsciente, nicho de associações impensáveis de ideias. Esses são os primeiros elementos da peça que fazem com que o espectador de fato se situe, se aproxime e sinta o cheiro do inconsciente, uma vez que só podemos conhecê-lo e supor que exista através de seus sinais (como o sonho, o lapso de linguagem), como assinalou Freud diversas vezes.
A atmosfera inicialmente rósea e os móbiles nela espalhados já transportam a plateia para essa ideia de que o Inconsciente é próximo a um terreno sem chão, desprovido da lógica conhecida, embora dotado de uma outra lógica, aquela que se constitui por associação de imagens e sons que podem nos chegar das formas mais insuspeitas. É como se a bailarina,  essa personagem louca que quer e não quer se lembrar, sabe e não sabe de si, e que já nos espera no palco, é como se ela pudesse acessar as imagens de seu inconsciente levantando o braço e tocando ou puxando um desses objetos, com suas mãos, tão lindas quanto perigosas: então ela toca uma esponja, como se tocasse uma lembrança, ela mexe em uma caixinha de música, como se desse corda a um raciocínio, ela balança uma outra bailarina e vai movimentando esses objetos como se eles estivessem sob seu domínio, mas sabemos que não estão, somos cúmplices de sua falta de controle, de seu horror, do vaivém de sua razão. Por outro lado, trata-se aí de um inconsciente a céu aberto, como é costume dizer da instância psíquica do psicótico. É possível vê-lo (o inconsciente) através das séries de imagens que ele revela em sonhos, em chistes, em produções gráficas, e era com isso que a Dra. Nise da Silveira trabalhava, filiada que foi à tradição junguiana.
Mas a música que acompanha o espetáculo Pulsões, esse sub-texto formado por piano, violoncelo e acordeón, e interpretados lindamente porJoão Bittencourt e Maria Clara Valle é outra maneira de aproximar a plateia das moções inconscientes (e também das emoções conscientes) que impulsionam os personagens, seu discurso e seus sintomas.
Do inconsciente, não se escapa, e é isso o que a peça mostra, cercando-nos, de modo completo e primoroso, por todos os lados: imagens, música, gestos e texto. Para Lacan, o inconsciente era estruturado como uma linguagem. Apesar de Kika Freire ter mergulhado na obra da Dra. Nise da Silveira para criar o espetáculo que tematiza também as fronteiras sutis entre arte e loucura, não podemos deixar de citar Lacan e a importância dada à cadeia de significantes. Teatro pode ser também texto, além de corpo, além de música, além de luz, teatro é voz e é palavra. Teatro é enunciação.
Assim, o belíssimo texto de Dib Carneiro Neto, interpretado com urgência por Fernanda de Freitas e Cadu Fávero, toca os temas principais da loucura e do Inconsciente, num diálogo que é dança entre a bailarina e o maestro. Nesse sentido, a ausência de linearidade e a menção à atemporalidade própria do inconsciente (“não há mais essa contagem”, dizem os personagens quando um deles se refere a horas, a passado, a futuro) mostra que não há antes nem depois, não há nexo causal. A bailarina diz que gosta de “evidências”, como “azulejo encardido”, mas não se lembra das evidências de sua história. O maestro indaga quando foi a “última vez que você morreu”, e se lembra da sua própria vez derradeira. A bailarina se incomoda com “polissílabos”, o maestro concorda que “está ficando puxado”. Ele a ajuda a se lembrar, mas acaba por admitir que também se esquece de si, enquanto se perde, fascinado, no corpo e na dança da bailarina. Ele a conduz e por ela é conduzido, ele é como o afeto catalisador (para usar o conceito da Dra. Nise de que uma relação afetiva acelera a cura) da bailarina, mas não deixa de ser também movido por ela, seu sentido da vida.
A voz cheia de força de Fernanda de Freitas a princípio traz um descompasso interessante em relação à figura frágil e delicada da bailarina que ela incorpora, um descompasso próprio da loucura e do estranhamento que dela se origina. A atriz é capaz ainda de interpretar o olhar ‘sem eu’ que é típico do sujeito psicótico que só quem já caminhou pelas alamedas de um hospício viu. Cadu Fávero, por sua vez, se mantém equilibrando-se na corda bamba de uma racionalidade que tenta conduzir os disparates e as emoções dentro de um possível tolerável, que tenta abrir caminho para memórias esquecidas, mas se dobrando a eles – disparates, emoções – ao final. Os atores e os músicos sustentam texto, música e espetáculo sem derrapar nos labirintos nodosos de uma obra densa e de forte carga emocional.
Muito mais poderia ser dito dessa peça primorosa. Mas esse é só o começo. Pulsões, esse espetáculo do Primeira Página Produções,merece ser visto e revisto.

Crítica teatral: Doidas e Santas em ótima reestreia no Imperator


No último dia 10 de julho, reestreou no Rio, no Imperator, o espetáculo Doidas e Santas, que fica na cidade até 26 de julho em curta temporada. A peça é estrelada por Cissa Guimarães, no papel de uma psicanalista em crise no casamento, e o texto de Regiana Antonini é livremente inspirado no livro homônimo de Martha Medeiros. A direção é deErnesto Piccolo e, na temporada atual, Oscar Magrini interpreta o marido da protagonista. A atriz Jose Antello, por sua vez, se desdobra interpretando a filha, a irmã e a mãe da protagonista.
No espetáculo, Cissa Guimarães está quase o tempo inteiro em cena, ora se questionando sobre a sua vida e escolhas, ora se relacionando com os outros quatro personagens: as 3 mulheres de sua família e o marido. Ela faz paralelos entre casos que atende no consultório, seus sentimentos em relação aos pacientes, mas, principalmente, ela se questiona sobre seu casamento e se pergunta se é feliz.
A comédia romântica consegue fazer a plateia rir ao retratar os tipos mais comuns de um casamento: o marido que só escuta e não quer falar, que encara a vida de modo mais simples, que talvez não seja capaz de entender por que a mulher faz tempestade em copo d’água e cuja felicidade pode se resumir a sentar no sofá e ficar com uma cerveja e um controle remoto em frente à TV, e que, além disso, acha a cunhada e a sogra um pouco doidas, tanto quanto a mulher; a esposa insatisfeita, que fala, fala, fala e não consegue obter nenhum eco de suas demandas contínuas, que não encontra respostas às suas perguntas e que talvez sequer encontre alguma consideração em relação a tudo o que verbaliza; a irmã, que mora distante e que leva uma vida completamente diferente; a filha adolescente que não tem paciência para os destemperos do casal de pais; e, finalmente, a mãe da protagonista (a sogra), que é uma figura de autoridade, imiscuindo-se na vida do casal, mas, ao mesmo tempo, demonstrando irreverência e bom humor.
É uma combinação convidativa, pois, como a protagonista diz, em certo momento, dirigindo-se à plateia, todos mais ou menos se identificam com alguma parte da história ou com alguns dos personagens. A comédia romântica é um ótimo programa de entretenimento.
Poderia ser ainda mais interessante se, intermediando as situações e algumas passagens do tempo, a protagonista não se dirigisse à plateia em tom de auto-ajuda, explicando-se e explicando a vida, o que, de certo modo, até possui o seu lugar se nos lembrarmos que a peça remete a um livro de crônicas e às reflexões que são inerentes a uma crônica como gênero literário. Entretanto, nos momentos em que Cissa Guimarães (ou Beatriz, sua personagem), reflete sozinha e ao mesmo tempo com a plateia, há ali algo de didático, como se o público precisasse de certa prótese de pensamento. Ainda que se possa deduzir ser uma referência ao livro de crônicas, talvez pudesse haver liberdade suficiente para pular esses pedaços, que se tornam excessivos na peça.
Mas os três atores estão ótimos e inspirados. Jose Antello está excelente nos papeis de irmã, filha e mãe. Cabe um destaque aqui para o momento em que interpreta a mãe de Beatriz, com suas exigências esdrúxulas quanto ao fim de sua vida. A plateia vem abaixo com seus trejeitos, maneiras de andar, tiques e com suas referências desarvoradas ao marido, já falecido. Também arranca risadas no papel da irmã, logo no início do espetáculo. Oscar Magrini também consegue arrancar risadas e aplausos, sobretudo quando, com muita dificuldade, consegue falar de seus sentimentos, o que, para o personagem, é um tremendo esforço. E Cissa Guimarães, orquestrando o vaivém de personagens e sustentando as pequenas modificações no cenário e interagindo com a plateia, explora bem a veia cômica que possui e na qual é boa.
A peça é um projeto idealizado por Cissa Guimarães, que convidou Maria Siman, da CPrimeira Página Produções para uma parceria, e seu desejo era encenar uma peça que trouxesse as questões que a atriz vive no palco através de sua personagem psicanalista: o difícil manejo de uma vida que conjuga marido, filho, família extensa, trabalho, beleza, lazer e todos os papeis que são exigidos de uma mulher. Ao fim e ao cabo, a plateia sai de alma lavada.