sábado, 31 de outubro de 2015

Fishman


“Quando duas pessoas se encontram, quantas pessoas se encontram?”, pergunta um dos personagens ao outro, entre reflexões costuradas em um cenário que, por si só, já vale a pena o espetáculo.
Questões como essa compõem Fishman, a terceira peça que o Grupo Bagaceiraapresenta nessa temporada de repertório no CCBB em comemoração aos 15 anos do grupo, que vem de Fortaleza e já nos apresentou Interior e A Mão na Face. Dessa vez, o elenco é composto por Ricardo Tabosa e Rogério Mesquita, e a excelente direção está a cargo de Yuri Yamamoto, que também dirigiu os outros dois espetáculos exibidos no CCBB. O texto é de Rafael Martins, que também escreveu os espetáculos anteriores.
No palco, temos dois homens cara a cara, tentando estabelecer um diálogo que possa contornar um hiato entre eles. Todavia, não é fácil contornar um hiato, não é fácil estabelecer um diálogo, não é fácil construir um abraço. Eles se perguntam, o tempo inteiro, o que são, quem são, no que se tornaram e, principalmente, o que é isto que está acontecendo entre eles, com eles: um hiato, um diálogo, um abraço que não se conclui, um reencontro há muito desejado, um reencontro difícil de vivenciar, o que eles constituem juntos? Esse difícil diálogo que os protagonistas se esforçam em manter vai levando a plateia a entender, aos poucos, o laço que os une e os eventos que os afastam. A angústia é a tônica desse encontro.
A peça merece nota máxima nos quesitos cenário e figurinos, de Yuri Yamamoto, e iluminação, de Tatiana Amorim. A imagética que o espetáculo constrói capta o espectador, que fica encantando diante da beleza e da experiência que o Grupo Bagaceira proporciona ao público. É possível dizer que Fishman é quase uma instalação que envolve a plateia do início ao fim.
O texto, apesar de bons momentos e questões que, aqui e ali, contribuem para a reflexão do espectador que, de fato, presta atenção ao que é dito, é que poderia ser um pouco mais assentado numa história mais bem estruturada. O que quero dizer com isso exatamente? É claro que Fishman e seu texto não procuram a linearidade tradicional de início, meio e fim e isso não é problema. Há uma busca de inovação que merece aplauso, e a experimentação que ora testemunhamos é uma qualidade a ser apontada, tanto quanto as indagações existenciais que nele encontramos.

No entanto, a não-linearidade do texto e a experimentação que lhe é própria ficariam mais bem acabadas se colocadas, tal como objetos, sobre uma paisagem textual com contornos mais precisos. Os personagens talvez pudessem ser um pouco mais ancorados em histórias pregressas que nos unissem a eles, que fortalecessem a identificação (ou o afastamento, por que não?) com as suas características e suas vivências. É como se estivessem um pouco soltos nos eventos que os acometeram. Quem são, exatamente, esses homens que se encontram e cujo mal-estar é colocado diante de nós? Não sabemos, ainda que nos contem coisas e nos participem de seu destino. Talvez por isso haja certo descompasso entre o envolvimento (inescapável) que a fascinante estética da peça proporciona e o envolvimento (frágil) provocado pela construção textual.

A peça fica em cartaz até 15 de novembro no Teatro III do CCBB, de quarta a domingo.
Ficha Técnica
Texto: Rafael Martins
Direção: Yuri Yamamoto
Assistência de direção: Rafael Martins
Elenco: Ricardo Tabosa e Rogério Mesquita
Colaboração artística: Juliana Galdino
Cenário e figurinos: Yuri Yamamoto
Iluminação: Tatiana Amorim
Técnica: Rafael Martins e Yuri Yamamoto
Interlocução artística: Georgette Fadel e Grace Passô
Produção: Rogério Mesquita
Produção executiva: Mikaelly Damasceno

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

chave

a chave da gaveta não está comigo. não no meu bolso, não no meu chaveiro, não sobre o meu console, não na fechadura da minha porta. aliás, não tenho porta e as janelas já se escancaram há muito. a chave da gaveta não está onde eu possa ver, nem mesmo na bolsinha da frente da mochila. a chave da gaveta não está tampouco perdida em um lugar impensável, e ouço seu tilintar esporádico e cru, esporádico e cru, ecolálico e nu. não cabe mais nada nessa gaveta asfixiada, nem traças, nem ácaros, não cabe a minha respiração, não cabe a mínima inspiração, não mais, não mais. e se poeira ainda puder se acumular em frestas entre papéis escritos todos de cabo a rabo, frente e verso, tem de ser da mais fina que há, uma poeira de não causar espirros, de não causar sussurros. coço a cabeça, respiro fundo e admito, suada, que não me cabe mais a busca. é com esse meu outro que está a chave da gaveta em que tudo está guardado, e é somente a ele que cabe a decisão de abri-la.

mormaço

é de pedra, ininterrupta, sólida, sem deslizes, é de pedra que o (meu) mormaço é feito. 
sinto-o formigando nas articulações de ontem.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Teatro: A Mão na Face, do Grupo Bagaceira


O inventário que podemos fazer de nossas vidas, de nossas quase-vidas, do que queríamos e do que deixamos de querer, aquele inventário que nos remete às memórias que preferíamos ofuscadas, esse tipo de inventário às vezes é melhor que ocorra nos intervalos rápidos, entre as cenas, entre as linhas, entre uma respiração e outra, para que seja breve e o mais indolor possível. Assim é com este A Mão na Face, o espetáculo lírico e intimista que o Grupo Bagaceira, de Fortaleza, traz para os palcos do CCBB e que nos faz querer conhecer mais esses personagens que estão tirando suas máscaras diante de nós.
Démick Lopes e Marta Aurélia encarnam lindamente os protagonistas dessa peça: Mara, a prostituta cansada de si e de seus shows, retorna do palco, e Gina, a travesti que faz dublagens e tenta contornar certa ansiedade que se traduz na preocupação com a cor do batom, vai entrar em cena em breve. Entre um show e outro, no camarim, Mara e Gina podem conversar um pouco sobre seus desejos e frustrações, sobre seus medos, e até se perguntam sobre o que é a vida, afinal. Eles têm lembranças, podem rir de si mesmos, são obrigados a encarar os espelhos e não sabem bem se querem continuar onde estão. Mas ignoram se há outra alternativa.
Marta Aurélia é cantora e atriz, convidada do Grupo Bagaceira, e consegue construir sua personagem com o peso que Mara parece carregar de uma vida que tomou rumos dos quais não se orgulha, apesar de manter “algum respeito” por si mesma. Ela demonstra que está vacinada pela vida, que não chora fácil, que tem verdades a dizer, mas também é passível de desmontar. Mara tem “raiva de quem não sabe se defender”. Démick Lopes, por sua vez, também tem êxito em construir a sua Gina com a leveza de quem ainda pode mudar alguma coisa, de quem tem “boa vontade com a vida”, apesar de andar na linha tênue, escorregadia, entre a esperança e a melancolia. Entre passado e futuro, experiência de vida e esboço de sonhos, eles compartilham esse presente dolorido.
Yuri Yamamoto, responsável pela delicada direção e pelo cenário, figurinos e iluminação, nos presenteia, conferindo brilho visual ao belo texto de Rafael Martins, que, por sua vez, faz também a assistência de direção. O jogo entre o cenário, intimista como o texto e a relação entre os personagens, e a iluminação, que direciona seu foco de luz a determinadas partes e trocas, como se só pudesse iluminar, separada e muito cuidadosamente, cada trecho de alma que eles resolvem expor um ao outro, fazem o contraste com os gestos e as maquiagens que precisam tapar o que jaz escondido no catálogo de frustrações de Gina e de Mara. É preciso garantir a mescla de intimidade e exuberância, dor e alegria, vontade de seguir em frente e de desistir. A Mão na Face é uma beleza só, do início ao fim, e fica em cartaz no CCBB de 7 de outubro 25 de outubro, de quarta a domingo.
Ficha Técnica
Texto: Rafael Martins
Direção: Yuri Yamamoto
Assistência de Direção: Rafael Martins
Elenco: Démick Lopes e Marta Aurélia
Música Original (Versos Espertos): Ayrton Cesar e Rafael Martins
Cenário, figurinos e iluminação: Yuri Yamamoto
Técnica: Yuri Yamamoto
Maquiagem: Denis Lacerda
Cenotécnica: Josué Rodrigues
Aderecistas: Diego Salvador e Denis Lacerda
Produção: Rogério Mesquita

Filme: Viver é fácil com os olhos fechados (Espanha, 2013)

Viver é fácil com os olhos fechados (Vivir és fácil con los ojos cerrados) é um simpático roadmovie que faz uma homenagem aos Beatles, ao John Lennon e à música Strawberry Fields.
David Trueba, diretor e roteirista, aproveitou um fato real, que foi a ida de John Lennon a Almería, em 1966, gravar Oh! Que delícia de guerra, de David Lester, e criou o mote do filme, que trata de um professor de inglês, apaixonado pelos Beatles, que usa suas letras para dar aulas de inglês, e que resolve ir até esse povoado, no sul da Espanha, para tentar encontrar o beatle. Consta que teria sido nesse período em que John Lennon criou a música Strawberry Fields, o que é bem aproveitado pelo diretor e, como se vê, um dos versos da música dá título ao filme.

Javier Cámara, excelente no papel do professor beatlemaníaco, solitário e cultivando sonhos muito particulares, sensível e engraçado, esbanjando afetividade sem ser piegas ou pegajoso, parte de carro e, pelo caminho, encontra os outros personagens que dividirão a aventura com ele: a jovem Belén (Natalia de Molina), que leva consigo um segredo, e Juanjo (Francesc Colomer, em seu terceiro longa), um adolescente de 16 anos que resolve romper com sua vida anterior.
Chegam a Almería e lá encontram outros personagens, cada um carregando sua própria solidão: o dono do restaurante que espera sua mulher, e o filho, que tem uma síndrome que o pai desconhece porque saber o nome “não vai curá-lo”. Trata-se de um encontro de cinco solidões com a própria solidão de John Lennon, já que o personagem de Javier Cámara, no início do filme, interpreta a música Help!, para os alunos, como sendo a expressão do que seria a solidão do sucesso.
O professor Antonio é solitário porque “de tanto conviver com crianças, deixou de entender o mundo dos adultos”, Juanjo é solitário porque não encontra acolhimento em sua família, Belén é solitária porque seu segrego a condena, e John Lennon também é solitário, extremamente solitário, como refletem os versos de suas canções.
Viver é fácil com os olhos fechados estreou em 2013 na Espanha e chega ao Brasil dois anos depois. Para quem gosta dos Beatles, é um deleite poder ver um personagem que reflete a paixão e admiração pela banda, o amor infinito por um artista e aquilo que a arte pode provocar. Por outro lado, trata-se de um roadmovie que, ainda que com boas atuações e direção, não deixa de ser água com açúcar, propício para as tardes em que se busca a leveza.
Leia esta resenha em Ambrosia.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Teatro: As lágrimas quentes de amor que só meu secador sabe enxugar


Estreou no Rio a temporada carioca da ótima peça estrelada por Paula Cohen, As lágrimas quentes de amor que só meu secador sabe enxugar. A temporada na cidade é curta: de a 24 de outubro, no Teatro do Leblon. Paula Cohen está hilária no papel de Elvira, uma atriz que volta para o país após uma desilusão amorosa e deve reconstruir sua vida. A peça vem de São Paulo após uma temporada bem-sucedida e aporta na cidade com suas ironias e observações afiadas sobre a condição da mulher e sua inserção na contemporaneidade.
O texto, escrito a quatro mãos pela atriz e pelo diretor Pedro Granato, é inteligente e bem-humorado. E esse é o maior trunfo da peça, junto com a atuação carismática de Paula, que conquista o público aos poucos até que, ao final, está com ele aos seus pés. E por que digo que esse texto inteligente e bem-humorado é o maior trunfo da peça?
Simples: a temática proposta pelo espetáculo não é nova. Uma mulher contemporânea em crise, obrigada a pensar em sua vida por força de um casamento que não deu certo. Para viver esse amor, ela deixou de lado carreira, família, amigos e língua natal, abdicou de coisas importantes em sua vida e agora deve regressar a contragosto. Está ressentida com tudo e se mostra descompensada em uma série de situações e em encontros com personagens variados (também vividos pela atriz), como a mãe e suas lembranças inconvenientes de que tem um ‘ventre’ e de que o tempo passa, ou ainda a amiga infeliz que avalia o tamanho de seu novo apartamento e admite que ter filhos é uma derrocada na vida da mulher, o que não necessariamente acontece na vida do homem.
Assim, a peça gira em torno dessa mulher em crise que deve retomar e refazer sua vida, a despeito do que as pressões culturais dela exigem. A temática, portanto, não é mesmo original, mas o texto e a maneira como é trabalhada nesse espetáculo são brilhantes e é exatamente isso o que faz valer a pena assisti-lo: pequenas verdades e pérolas hilárias permeiam o texto do início ao fim e a trama que a dupla atriz-diretor-autores nos apresenta com humor e leveza ainda assim são um espelho importante de nossos tempos, o que faz com que o teatro cumpra com primor, nessa As lágrimas quentes…, uma de suas principais funções: ser um testemunho e um relato de nosso tempo.
Exemplos de pérolas e momentos hilários na peça são a constatação de que “o porteiro é o superego da mulher solteira”, além de “quase um vidente”, ou a ideia de que a felicidade é como um strobo , isto é, a felicidade, como conceito, não passa de algo que apenas dá uma piscadela pra gente (nada mais efêmero, nada mais desesperador, e nesse momento a risada do público talvez se origine de um território confuso que é misto de graça e nervosismo). Ou então é possível citar alguns momentos patéticos e engraçadíssimos tais como aquele em que a histérica e nervosa Elvira volta bêbada e bamba da festa e não consegue encontrar a chave de casa, perde a paciência consigo mesma e, no fim das contas, acaba por dormir no elevador, como se fosse a Lady Di em um aposento confortável.
Além de um texto excelente, onde os momentos ótimos se proliferam continuamente, Paula Cohen tem êxito em transitar por entre os personagens por ela vividos, assim como passa de momentos engraçados de sua protagonista para aqueles que são mais introspectivos. A atriz consegue construir uma protagonista que, mesmo que passando por um dos momentos mais dramáticos de sua vida e sendo intimada a refletir sobre sua condição, sofrendo-a, portanto, ainda assim não se leva tão demasiadamente a sério e é capaz de rir de si mesma, convidando-nos para lhe fazer companhia. No final das contas, é como se Elvira fosse nossa amiga íntima, de quem tínhamos saudades e que enfim volta da Argentina e com quem temos muito assunto e muitas pautas para colocar em dia.
A trilha sonora, enfim, também merece destaque e está a cargo de Pedro Granato, que traz cantoras contemporâneas tais como Tulipa Ruiz, Ana Cañas e Letuce, com canções fazendo a correta mediação entre cenas e momentos diversos da vida da protagonista.
Ficha técnica:
Espetáculo: As lágrimas quentes de amor que só meu secador sabe enxugar
Elenco: Paula Cohen
Texto: Paula Cohen e Pedro Granato
Direção: Pedro Granato
Luz: Karine Spuri
Figurino: Paula Cohen
Trilha Sonora: Pedro Granato – com músicas de Tulipa Ruiz, Ana Cañas, Barbara Eugênia, Letuce, Irene Cara e Billy Idol
Cenário: Pedro Granato
Fotos: Priscila Prade e Ding Musa
Produção: Victoria Martinez
Assessoria de Imprensa: Lu Nabuco Assessoria em Comunicação
Serviço:
Estreia: 3 de outubro
Temporada até 24 de outubro.
Horário: Sábados às 23h
Local: Teatro do Leblon – Sala Marília Pêra
Rua Conde de Bernadotte, 26 – Leblon, Rio de Janeiro – RJ, 22430-200
Tel.: (21) 2529-7700
Ingressos: R$60,00 (plateia) / R$40,00 (frisa)
Faixa etária: 14 anos
Capacidade: 408 lugares
Gênero: Monólogo / Comédia
Duração: 70 minutos

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Teatro: As Meninas


“A palavra vira carne”: é assim que uma das maiores escritoras brasileiras, Lygia Fagundes Telles, se refere, emocionada, à adaptação de seu romance As Meninas para os palcos. O livro, lançado em 1973 no auge de um dos períodos mais áridos da ditadura brasileira, e premiado com o Jabuti no ano seguinte, ganhou adaptação de Maria Adelaide Amaral e idealização de Clarissa Rockenbach e Fernando Padilha.
Se, segundo Lygia, “a função do escritor é ser testemunha do seu tempo e da sua sociedade”, como se lê no programa da peça, e se a obra de que tratamos aqui traz o testemunho de um momento crítico da história brasileira, esse parece ser então o momento perfeito para a adaptação de As Meninas para o teatro: vivemos o acirramento das tensões políticas no país, o recrudescimento do debate entre reivindicações de direita e de esquerda e constatamos, horrorizados, o aparecimento de um clamor que, aqui e ali, pede a volta do regime militar, que foi dos períodos mais opressores e violentos da história recente do país. É, portanto, inegável que a temática da peça As Meninas, com direção e concepção de Yara de Novaes, não perdeu sua atualidade.
Na trama, três meninas vivem em um pensionato que, a princípio, parece um refúgio da vida na cidade. A romântica Lorena (Clarissa Rockenbach) sonha com um amor ideal e vive em espera (de uma ligação, do melhor momento para concretizar sua paixão, da felicidade utópica). A jovem comunista Lia (Silvia Lourenço) sonha com um mundo ideal e vive também em espera (de um país melhor, do exílio de Miguel, do fim da opressão do regime autoritário). Finalmente, a desesperada Ana Clara (Luciana Brites) sonha com um futuro ideal e, enquanto se coloca em diversas situações de risco e promete a si mesma voltar a fazer análise, vive, ela também, em espera (de um casamento burguês, de condições financeiras ideais). Elas têm suas diferentes maneiras de lidar com o mundo e consigo mesmas, através de amantes (Daniel Alvim), da Mãezinha de Lorena (Clarisse Abujamra) e suas lembranças traumáticas, e da freira Priscilla (Sandra Pêra) que, por sua vez, abandonou seus próprios sonhos e suas antigas esperas.
O texto de Lygia capta o leitor desde o início do romance e promove um diálogo incessante entre o mundo introspectivo dos sonhos e das frustrações e o mundo objetivo que o cerca e o produz. Assim, não é uma tarefa simples adaptá-lo à linguagem do teatro. Mas parece que as soluções dramatúrgicas encontradas alcançam êxito em manter o dinamismo, no espetáculo, dessa literatura não-linear de Lygia, característica que se pode perceber em toda a sua obra e que confere o charme e a densidade de suas tramas e de seus personagens.
O vaivém de memórias, segredos e tabus e a alternância de vozes muito bem construídas pela escritora parecem se concretizar no movimento dos personagens e seus diálogos pelo cenário. Assim, esses personagens e seus fantasmas (sobretudo seus fantasmas) estão ora fora, ora dentro de um quadrado branco central, ora têm voz ativa, ora são mencionados sem direito a resposta, e esse jogo de luz e sombra, claro e escuro, a centralidade iluminada e as bordas turvas, além do trânsito pelas fronteiras entre essas áreas, é o que talvez torne viável a difícil tradução da literatura de Lygia para a encenação no palco. É como se a consciência e o aqui-e-agora estivesse ali, naquele centro claro, onde as conversas e os encontros acontecem, onde há a proteção suposta das paredes e de belos objetos, onde a tendência a um senso estético consensual traz harmonia temporária às inquietações vividas pelas três meninas, ao passo que o que está em volta deve ser protegido de uma iluminação direta, do escrutínio a olho nu, é aquilo que deve ser visto através de um olhar enviesado e cauteloso. E o que está em volta são essas memórias traumáticas e sua carga afetiva às vezes difícil de sustentar, são os personagens mencionados nas conversas e o rancor com que os outros se referem a eles, a moral religiosa e casta, a transgressão a essa moral, a culpa, o medo, a angústia.
É preciso dizer ainda, à guisa de conclusão, que o elenco está ótimo, com destaque para a participação especial de Clarisse Abujamra, vivendo a mãe de Lorena, que, apesar de ser um personagem facilmente detestável, consegue ser carismática e engraçada ainda que envolvida em perdas mal-explicadas e certa dose de autocomiseração que poderia causar repulsa, e Sandra Pêra, na pele da Irmã Priscilla, que compõe uma figura que é misto de força assustadora própria dos objetos sagrados e fragilidade demasiado humana quando se resolve a falar de si.
Ficha Técnica:
De Lygia Fagundes Telles e adaptação e dramaturgia Maria Adelaide Amaral
Direção e concepção: Yara de Novaes
Elenco: CLARISSA ROCKENBACH como Lorena, LUCIANA BRITES como Ana Clara, SILVIA LOURENÇO como Lia. Ator convidado: DANIEL ALVIM como Max e Guga. Participações especiais de CLARISSE ABUJAMRA como Mãezinha e SANDRA PÊRA como Irmã Priscila.
Elenco em OFF: Daniel Alvim como M.N. e Eloísa Elena como Secretária
Diretor assistente e preparação corporal: Leonardo Bertholini
Cenário: André Cortez
Figurinos: André Cortez e Fábio Namatame
Iluminação: Juliana Santos
Trilha sonora: DrMorris
Visagismo: Bruna Pires
Fotos de estúdio: Priscila Prade
Fotos de cena: Kelson Spalato
Programação visual: Tuagência Comunicação
Cenotécnico: Maurílio Dias
Operador de luz: Walace Furtado
Operador de som: Gabriel Lessa
Camareira: Cedelir Martinusso
Costureiras: Cleide Niwa, Gonzalez Jaquet (Reina) e Neuza Padilha
Advogada: Cássia Rockenbach
Lei de incentivo: Egberto Simões
Assistente de produção: Priscila Tello
Produção executiva: Gustavo Sanna
Direção de produção: Fernando Padilha
Idealização: Clarissa Rockenbach e Fernando Padilha
Realização: Pad Rok Produções Culturais Ltda.
Assessoria de imprensa: Lu Nabuco Assessoria em Comunicação
Patrocínio: Unimed Seguros

Teatro: Interior (Grupo Bagaceira)


Grupo Bagaceira, do Ceará, está no Rio de Janeiro e comemora seus quinze anos de apresentações ininterruptas com três peças no CCBBInterior, que é conduzido por duas velhinhas simpáticas e saudosas, (Samya de Lavor e Tatiana Amorim), que contam suas histórias através de objetos que representam a cultura popular misturadas às suas lembranças, que oferecem bolinhos para a plateia, que querem saber sobre as avós dos espectadores, está em cartaz até 4 de outubro, com apresentações de quarta a domingo, sendo duas aos finais de semana. O texto é de Rafael Martins, a direção é de Yuri Yamamoto e os atores contrarregras são Rafael Martins e Rogério Mesquita.
A peça resulta de uma pesquisa de 2 anos em que o grupo percorreu quatro cidades do estado do Ceará (Beberibe, Icô, Itacarema e Tauá), realizando trocas com artistas dessas localidades. A partir daí, o espetáculo foi inspirado nas histórias e vivências do grupo e a escolha das duas velhinhas como protagonistas, personagens simpáticos que se recusam a morrer e são curiosas a respeito de seu público (elas querem saber o que queremos fazer daqui a 50 anos, elas querem saber a cidade onde nasceram nossas avós, e elas querem, se alguém tiver, fotos também), são um emblema das histórias vividas nas regiões que o grupo percorreu e da relação com o tempo.
Se se pode dizer que o espetáculo, como escrito no programada temporada, é uma homenagem à cultura do interior,esse Interior,que dá nome à peça, é também um interior que remete à intimidade dos que estão presentes, às memórias recônditas, aos cheiros esquecidos, aos objetos há muito guardados. Assim, em uma cenografia intimista que traduz o afeto íntimo e o clima bem típico das visitas feitas em cidadezinhas pacatas, todos estão muito próximos no cenário proposto pelo grupo, eficaz em promover a proximidade e a troca (tanto a que ocorre entre atores e público, quanto a entre os espectadores entre si). Não há como não se envolver,não há como não recordar.
Os figurinos e o cenário de Interior representaram o Brasil na Quadrienal de Praga 2015, na República Tcheca, o maior evento de cenografia do mundo.

Teatro: In Extremis (Cia. Os Limítrofes)


Existem aqueles espetáculos teatrais que são impecáveis do início ao fim. Assim é com InExtremis, essa formidável peça que acaba de estrear no Teatro Poeirinha, da Cia Limítrofes. O texto, interessantíssimo, é de Neil Bartlett, e a tradução e a direção cabem a Bruno Guida.
No caso de In Extremis, o início do espetáculo pode ser o momento em que nós, espectadores, entramos e sentimos o cheiro do ambiente. A composição que ora encontramos recende a algo especial. Sentimos o cheiro do lugar, ou a ambientação é tão bem feita que nos leva a uma ilusão de cheiro. De qualquer maneira, o início, quando demarcado a partir do olfato, é ainda mais radical e anterior a qualquer apreciação lógica dos elementos do espetáculo.
Vamos então, nos sentando, nós, pessoas comuns que 120 anos depois formamos essa plateia bisbilhoteira que quer saber o que aconteceu na consulta de Oscar Wilde com a cartomante Mrs. Robinson. Sim, somos bisbilhoteiros, ela nos diz isso lá pelas tantas e aguça nossa curiosidade, criando jogos de espera e tensão que são os mesmíssimos jogos que diz construir com seus clientes ávidos por aquilo que todos querem quando a procuram: “o impossível”.
Mas, voltando ao começo, vamos entrando e lá estão eles, em suas respectivas cadeiras, em suas respectivas exuberâncias, mortos, jazendo num pedaço de eternidade que já dura mais de século: a cartomante e o escritor. E é a partir daí que os personagens resolvem nos contar o que aconteceu (ou o que se supõe ter acontecido, deixando que os hiatos sejam preenchidos pela nossa imaginação, aumentando o mito que envolve Oscar Wilde).
É disso, em síntese, que trata a peça: pouco antes do julgamento de Oscar Wilde, o escritor procura a cartomante em desespero. Ele quer saber o que deve fazer. Fugir? Ficar? Enfrentar o processo? Em caso de fuga, quando? Deve tomar o trem de que horas? Apressar-se ou se tranquilizar? Esse é o mote do encontro, mas a peça, claro, vai muito além, e explora a atmosfera de mistério que envolve uma consulta oracular, que implica a busca do impossível. Para incrementar o espetáculo, a equipe fez treinamento em hipnose com Fabio Puentes e consegue transpor para a encenação o clima de expectativa, temor e suspense próprios à adivinhação do futuro.
Merecem destaque em capslock as atuações de Daniel Infantini e de Flávio Tolezani. Daniel Infantini está um escândalo como Mrs. Robinson: para começar, sua capacidade de sustentação do mistério e de penetração do olhar associam-se à maneira como joga com a plateia e com o personagem vivido por Flávio Tolezani. Fica claro que estamos à sua mercê. Além disso, a sutileza de alguns trejeitos (como quando muda de óculos a cada vez que vai examinar uma linha da mão específica para cada área da vida e como se mira no espelho para conferir como está) e toda a mise-en-scène que valoriza o olhar aguçado da cartomante capaz de enxergar o que ninguém mais vê.
Há também os momentos em que o estardalhaço substitui, num rompante, seu jeito misterioso e comedido, além da fina ironia com que fala de seu trânsito entre as diversas ladies que a convidam para festas ou que buscam seus serviços (entre as quais, Lady Brokeback Mountain). Mas o mais interessante, e que está ligado a todo o resto, é a construção do personagem-adivinho que Mrs. Robinson vai, ao mesmo tempo, nos mostrando e colocando em prática também conosco. A Mrs. Robinson de Infantini envolve o cliente e também a plateia, há um jogo duplo acontecendo em cena e estamos todos juntos com Oscar Wilde, receosos, desconfiadíssimos e querendo mais, avançando e recuando.
Mas, não fosse apenas isso, ainda temos Flávio Tolezani, também irretocável como o desesperado Oscar Wilde que, apesar de sua situação frágil e angustiante perante acusações que poderão mudar o rumo de sua vida, não se deixa levar por seu desespero e não facilita em nada o trabalho da cartomante. Ela é esperta, mas também se vê em apuros diante de ninguém mais, ninguém menos do que Oscar Wilde.
O desespero do escritor é comedido sim, ele está por cima ainda que se saiba por baixo, e oscila entre a consciência que tem de seu poder de criação como artista e a realidade menos glamorosa em que se encontra. O ator presenteia a plateia com seus olhares mesclados de desconfiança e desafio para Mrs. Robinson, sustentando um misto de arrogância e pavor que ele não entrega barato. Seu personagem é duro na queda, embora deslumbrado consigo mesmo, e o ator constrói essa caminhada periclitante em que se encontra o escritor, quase cedendo, quase implorando, mas situando-se no mesmo nível de mistério que a sua interlocutora experiente. Já esta última é capaz de rir e debochar de seu próprio deslumbramento.
A peça tem consistência em todos os sentidos (além do olfato). Daniel Infantini merece aplausos também pelos figurinos e pela maquiagem, e Flávio Tolezani pela cenografia. A iluminação de Aline Santini e os adereços de Marcela Donato também merecem um reconhecimento especial, porque são fundamentais para compor o ambiente misterioso que enlaça a plateia.
Há, enfim, um misto de encantamento, estranheza, sugestão e suspense, com um humor que permeia tudo isso, fundamentais para que o cliente, ops!, o espectador se sinta enredado pelo clima do espetáculo. E que até cogite olhar a palma da mão, assim como quem não quer quase nada, disfarçadamente, no final de tudo.
FICHA TÉCNICA
Texto: Neil Bartlett
Tradução: Bruno Guida
Direção: Bruno Guida
Elenco: Daniel Infantini e Bruno Guida ou Flavio Tolezani.
Assistência de direção: Mateus Monteiro.
Treinamento em Hipnose: Fabio Puentes.
Iluminação: Aline Santini
Cenário: Flavio Tolezani.
Figurinos: Daniel Infantini.
Adereços: Marcela Donato.
Maquiagem: Daniel Infantini.
Fotografia: Hemerson Celtic.
Design Gráfico: Anna Turra.
Lei: Sonia Odila.
Produção Executiva: Vanessa Campanari.
Produção Rio de Janeiro: Lis Maia
Administração: Vanessa Campanari.
Direção de produção: Pitaco Produções.
Idealização: Bruno Guida.
Realização: Pitaco Produções.
Assessoria de Imprensa: Lu Nabuco Assessoria em Comunicação

Teatro: The Pillowman - O Homem Travesseiro (Cia. Os Limítrofes)


Sempre que me proponho a escrever um texto sobre uma peça de teatro – a tal da crítica – fico preocupada com sua possível influência e com o poder das palavras que escolho. A crítica não é isenta de parcialidade, claro; seu forte está longe de ser a objetividade. Acontece que, apesar de a subjetividade ser a tônica de qualquer texto crítico e o gosto pessoal influenciar muitíssimo na confecção do próprio texto, ele pode parecer às vezes fruto de uma objetividade à toda prova, resultado de um saber que é, antes de tudo, suposto.
Pensar na responsabilidade do “crítico” em relação às suas opiniões parece embromação, mas tudo isso tem algo a ver com a temática do excelente espetáculo “The Pillowman – O Homem Travesseiro”, que a Cia. Os Limítrofes acaba de estrear no Teatro Poeirinha, em Botafogo, com a ótima direção de Bruno Guida (que também traduziu o texto do original de Martin McDonagh, além de atuar na peça) e Dagoberto Feliz. Afinal, o texto teatral que comento aqui gira em torno dos efeitos que uma criação artística pode ter e das implicações do autor com as consequências (também supostas) de sua obra.
Assim, em The Pillowman – O Homem Travesseiro, Katurian é o escritor julgado por seu texto, por suas quatrocentas histórias, da qual apenas uma foi publicada, como diz, ironicamente, o detetive que o interroga. Alguns assassinatos de crianças ocorreram pela cidade e os contos de Katurian apresentam uma semelhança significativa com os acontecimentos que se busca desvendar. Ele também descobre, já no meio do interrogatório, que seu irmão, que tem uma deficiência mental, está sendo interrogado pela mesma razão. Mas a verdade é que Katurian deve se provar inocente, no que se constitui em uma inversão nada incomum (é-se considerado culpado, até que se prove o contrário).
Katurian, vivido por Flavio Tolezani, não sabe o que está acontecendo, mas deve se explicar por sua obra. O que levanta a inevitável pergunta: terá, o escritor, responsabilidade diante de sua criação literária? E, se sim, até que ponto, em que medida? Qual é a responsabilidade do artista em relação à sua obra? Essa é a pergunta que está presente, de modo tácito, no texto de McDonagh. Volto então à pergunta inicial: e o “crítico”, qual é a sua responsabilidade em relação aos efeitos de sua crítica? Qual é a sua função? Será essa uma pergunta pertinente?
O presente questionamento que ora faço começou a surgir também quando, no intervalo de dez minutos na peça, conversei com uma amiga com quem fui assistir, e qual não foi nossa mútua surpresa quando nos demos conta de que o que mais apreciei foi o que ela menos gostou, e o que mais despertou interesse nela foi o que menos me prendeu. Nossas impressões em relação aos elementos dramatúrgicos eram simétrica e exatamente opostas. Diante disso, como escrever uma crítica sem levar em consideração essas diferentes opiniões (e por que a minha seria a mais certa?).
Feita essa advertência sem pretender esgotar a questão, o que quero dizer, além de parabenizar a equipe inteira pelo cuidado com que trabalharam a temática e pelo rigor do estudo realizado e que se vê no resultado no palco, é que identifiquei três momentos na peça. E que gostei muitíssimo de dois deles, o primeiro e o último, quando os cinco atores estão no palco (Bruno Autran, Bruno Guida, Daniel Infantini, Flavio Tolezani e Wandré Gouveia) e a cena gira em torno do interrogatório do escritor acerca do conteúdo de suas histórias. Nesses dois momentos, os diálogos são afiadíssimos e a estética grotesca que a equipe escolhe adotar torna tudo a um só tempo repulsivo e muito interessante.
Aqui faço um parêntesis importante para dizer que a equipe começou a estudar a linguagem do bufão para melhor entender texto e personagens e fez oficina de bufão comBete Dorgan e oficina de contação de histórias com Luciana Viacava, o que também é fundamental, uma vez que algumas histórias são contadas ao longo do espetáculo.
Fechando o parêntesis, nos momentos do interrogatório temos a oportunidade de ver a interação entre atores excelentes: Flavio Tolezani, o acuado Katurian, o tempo inteiro em cena, Bruno Guida, ótimo como o policial que é misto de sentimentos mal resolvidos e uma raiva incontida, Bruno Autran, o irmão do escritor, que traz leveza e graça à interpretação e que tem espaço no momento em que está só com Tolezani em cena, e finalmente Wandré Gouveia, que arranca risadas em um dos momentos finais do espetáculo, mas Daniel Infantini merece mais uma vez destaque pois, apesar de seu personagem ser verdadeiramente detestável e de seus trejeitos poderem provocar aversão contínua, seu carisma faz com que gostemos dele, sobretudo quando tenta mostrar ao escritor interrogado que também é capaz de criar histórias e complexos títulos para elas. Nos momentos em que o detetive flerta com o ridículo, o perdoamos como se se tratasse de ingenuidade.
Assim, nesses dois momentos do interrogatório, os dois policiais (vividos por Infantini e por Bruno Guida) manipulam as palavras e as perguntas de um modo a deixar o réu confuso, o que nos remete à falácia implícita no ditado muitas vezes repetido segundo o qual “quem não deve, não teme”. Depende! Katurian, o escritor, deve sim temer ter sido capaz de criar histórias pavorosas, ainda que não se saiba se matou ou não alguém, se tem algo a ver com os crimes investigados e mesmo se sua criação literária teria o poder de influenciar comportamentos (um nexo causal dificílimo de estabelecer).
Pois bem, esses dois momentos em que a investigação se desenrola debaixo de uma luz fria e com cadeiras e mesa metálicas ao redor, e que foi o que mais gostei, causou certo incômodo em minha amiga, o que talvez seja um efeito positivo da estética grotesca em que a violência anda de mãos dadas com a comédia, como nos aponta Bruno Guida no texto do programa: “as raízes comuns entre a comédia e a violência são reveladas” . Mas há outro momento, no meio da peça, em que os dois irmãos estão em cena (Flavio Tolezani e Bruno Autran) e isso foi o que mais cativou a minha amiga, porém foi o que menos me interessou, apesar da graça da interação entre os atores e alguns trechos em que discutem sobre a versão e os fatos (houve mesmo os assassinatos sobre os quais falam os policiais, houve tais crimes segundo o alarde dos jornais?). Enfim, por que estou aqui fazendo questão de juntar à minha apreciação o que achou a minha amiga? Pelo simples fato de que ninguém poderá dizer o que é melhor na peça: os cinco atores juntos ou os dois que fazem os irmãos encurralados pela justiça. Confesso que acabei me distraindo na cena dos irmãos, em certos momentos, mas foi a parte da peça em que minha amiga mais se envolveu.
Mas, a despeito de diferentes impressões sobre a mesma montagem, e afinidades maiores ou menores em relação aos seus diversos momentos, não há como não aplaudi-la de pé e com vontade. O texto é denso, o espetáculo é forte tanto no que diz respeito à experiência estética que proporciona ao público quanto na reflexão que brilhantemente ocasiona, e a equipe está em cartaz paralelamente com a excelente In Extremis no mesmo Teatro Poeirinha, o que significa que estão de terça a domingo em diferentes tramas. E, com tudo isso, há um trabalho sofisticadíssimo de encenação e de dramaturgia, teatro da melhor qualidade em curta temporada.
Ficha Técnica:
Texto: Martin McDonagh
Direção: Bruno Guida e Dagoberto Feliz
Elenco: Bruno Autran, Bruno Guida, Daniel Infantini, Flavio Tolezani e Wandré Gouveia
Figurinista: Daniel Infantini
Confecção de Figurinos: Glória Coelho
Cenário: Ulisses Cohn
Iluminação: Aline Santini
Fotografia: João Caldas
Oficina de Contação de Histórias: Luciana Viacava
Oficina de Bufão: Bete Dorgam
Designer Gráfico: Fernando Bergamini
Assistente de Produção: Juliana Mucciolo
Produtores Associados: Bruno Guida e Edinho Rodrigues
Direção de Produção: Brancalyone Produções Artísticas (Edinho Rodrigues)
Produção Rio de Janeiro: Lis Maia
Realização: Pitaco Produções e Brancalyone Produções Artísticas
Assessoria de Imprensa: Lu Nabuco Assessoria em Comunicação.

Teatro: Blackbird


Um acerto de contas? Sim. Blackbird, peça em cartaz no Galpão das Artes do Espaço Tom Jobim, no Jardim Botânico, com texto de David Harrower, tradução de Alexandre J. Negreiros e direção de Bruce Gomlevsky, trata de um acerto de contas, uma D.R. (a discussão da relação, se é que se pode chamar o que houve entre os protagonistas de relação) quinze anos depois do acontecido.
No elenco, Viviani Rayes (também diretora de produção) e Yashar Zambuzzi têm um reencontro em um lugar aparentemente tão sórdido e obscuro quanto o que viveram juntos (ou quanto o julgamento que é feito do que viveram juntos): eles estão em uma sala apertada, abafada, de vidros quebrados e muito lixo espalhado. E é como se, nesse diálogo infernal e tenso, eles também remexessem um lixo antigo, já mofado, já podre, o lixo que representa a história em comum e as consequências que levaram para as suas vidas.
Ele, mais velho, fala do quanto aprendeu sobre si mesmo através dela, que, à época, era uma criança. Seria ele, então, um abusador? Ou um pedófilo? Não, essa última palavra não é dita, não aparece no texto, o tabu a abafa, mas a experiência de uma sedução real é a essência do que aconteceu, o mote do drama que eles revivem através de palavras. Ambos pagaram caro por ter cedido a impulsos interditos: ele, com julgamento e sentença, ela, com a reprovação social e o estigma, como se fosse a culpada.
A graça do espetáculo reside justamente em problematizar a moral sexual civilizada, para usar termos caros a Freud. Afinal, se um homem adulto, de quarenta anos, se apaixona por uma criança de doze, ele sabe que não deve ceder à paixão, mas, o que fazer se lhe parece impossível não ceder a ela? Se nunca se apaixonou por uma criança, deverá então esperar que ela cresça? Sim, deverá, é isso o que aprendemos. No caso do personagem vivido por Zambuzzi, após todo ocorrido, ele estudou livros, procurou entender os “padrões” de quem cede a tais impulsos, buscou saber se afinal era “um deles”. Ela, por outro lado, tentando entender, ressentida há muitos anos por ter sido abandonada, pergunta com quantas outras meninas ele fez o mesmo? Seria ela a única? Ela quer ter sido a única?
A temática já vale a ida ao teatro por nos fazer pensar em nossos costumes, mas tudo fica mais interessante quando, ao final de tudo, uma ponta de dúvida e ambiguidade, com a chegada da menina, que é interpretada por Debora Ozório em participação especial, nos faz reavaliar tudo o que Ray falou de si. Qual o grau de verdade presente na sua versão dos fatos? Se coubesse a nós algum posicionamento, deveríamos nos compadecer de um ser humano que errou, mas que errou gravemente e apenas uma vez na vida, que pagou caro por seu erro, ou deveríamos, ao contrário, julgá-lo como alguém que tem um hábito reprovável e repugnante?
Penso que, no início do espetáculo, quando chegam ao compartimento insalubre em que se dará todo o acerto de contas, os personagens demoram um pouco para situar a questão, para falar dos fatos e dos sentimentos que resultaram deles. O que mais interessa é o drama de um protagonista que não sabemos se é inocente ou se é culpado, se é digno de confiança ou não. Esse é o aspecto mais relevante do texto. Menos suspense inicial em relação ao que ocorreu talvez permitisse um aproveitamento ainda maior da ambiguidade que o espetáculo levanta.
Cabe finalizar dizendo que a peça foi indicada ao 3º Prêmio Botequim Cultural  por Melhor Espetáculo, Melhor Direção, Melhor Ator e Melhor Atriz, em 2014, ao 4º Prêmio Questão de Crítica por Melhor Trilha Sonora Original, em 2014, e ao 27º Prêmio Shell de Teatro, por Melhor Música, em 2014. A peça está em cartaz até 27 de setembro, sextas, sábados e domingos.

Teatro: De tempo somos - um sarau do Grupo Galpão


Estamos no interior do Brasil, em uma noite sem nuvens, com estrelas e grilos, talvez refletindo sobre o tempo, evocando algo do passado, fazendo planos para o futuro: esse parece ser o clima inicial e sugestivo desse belíssimo De Tempo Somos, o novo espetáculo do Grupo Galpão, que chega ao Rio de Janeiro em linda estreia no Teatro Ipanema e fica apenas quatro dias na cidade, de 25 de setembro a 28 de setembro.
O sarau é uma homenagem ao teatro e à música, mas também uma amigável reconciliação com o tempo. Não é inveja, não é recalque, é a mais pura verdade: quem precisa de Rock n’Rio se há Grupo Galpão, com direito a “bis” e a “mais um” ao final, iniciando os trabalhos do fim de semana?
A direção é de Lydia Del Picchia e Simone Ordones, e a direção musical, arranjos e trilha sonora cabem a Luiz Rocha. Esse trio faz miséria conosco: aplausos a eles, que nos brindam com essa costura de 25 canções de espetáculos do grupo, intercaladas com trechos de Jack Kerouac, Anton Tchékhov, Eduardo Galeano, José Saramago, Nelson Rodrigues, Baudelaire, entre outros, amarrados com perfeição e ritmo, além de um humor sutil entre as cenas e as canções, que às vezes são dedicadas a personagens espalhados pelo país e cheios de uma vivência de brasilidade e nostalgia. As histórias desses personagens, resumidas antes da música, são tão inspiradoras quanto as canções que vêm a seguir. O público acompanha batendo palmas, se mexendo na cadeira, balançando a cabeça. Dá vontade de levantar, o espetáculo é mesmo um show.
A preparação vocal, de Babaya, e a preparação corporal, de Fernando Vianna, têm um importantíssimo papel no espetáculo, assim como a iluminação de Rodrigo Marçal. O elenco é um primor: Antonio Edson, Beto Franco, Eduardo Moreira, Fernanda Vianna, Júlio Maciel, Luiz Rocha (ator convidado), Lydia del Picchia, Paulo André, Simone Ordones, Inês Peixoto (atriz curinga). A assessoria na cena “A carteira” é deDiego Bagagal, sendo esta um ponto altíssimo do espetáculo.
Difícil também selecionar, entre todos, as melhores músicas ou os melhores momentos, porque tudo é realmente muito bom, mas ouso escolher A viagem, canção oriental sobre arranjo original de Ernani Maletta, o Canto da Viúva Begbick, de Bertold Brecht, ePanis et Circenses, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, também sobre arranjo original de Ernani Maletta. No primeiro e no terceiro, mais especificamente, as lágrimas rondaram os olhos e suas circunvizinhanças.
Se o tempo é essa substância angustiante que não conseguimos definir, que nos escapa ao mesmo tempo em que nos persegue, que atravessa tudo e se ousa relativo, que não sabemos se o queremos depressa ou devagar, parado ou voando, que é tema de debates filosóficos e de conjecturas psicanalíticas, se nos desperta, o tempo, essa ambivalência avassaladora e se, não poucas vezes, encarna esse insólito horror que nos assusta em parceria com o espelho e talvez com a memória (esta última muito aparentada do espelho), nada melhor do que brindar com ele: há então uma celebração acontecendo em cena, porque, se não é possível dele fugir, juntemo-nos a ele.
O espetáculo,”mais próximo de um sarau literário musical”, é vibrante, cheio de vida, pleno de beleza sonora e visual, mas também leva à reflexão. “Que o tempo passe” e “que passe bem”, é isso o que nos lembra esse afiadíssimo e bem-humorado elenco.
FICHA TÉCNICA DO ESPETÁCULO
Elenco
Antonio Edson
Beto Franco
Eduardo Moreira
Fernanda Vianna
Lydia Del Picchia
Luiz Rocha (ator convidado)
Júlio Maciel
Paulo André
Simone Ordones
*Inês Peixoto (atriz curinga)
Equipe de criação
DIREÇÃO: Lydia Del Picchia e Simone Ordones
DIREÇÃO MUSICAL, ARRANJOS e TRILHA SONORA: Luiz Rocha
PESQUISA DE TEXTO: Eduardo Moreira
FIGURINO: Paulo André
PREPARAÇÃO VOCAL: Babaya
PREPARAÇÃO CORPORAL: Fernanda Vianna
ILUMINAÇÃO: Rodrigo Marçal
DESIGN SONORO: Vinícius Alves
AULAS DE PERCUSSÃO: Sérgio Silva
ASSESSORIA NA CENA “A CARTEIRA”: Diego Bagagal
ASSESSORIA DE ILUMINAÇÃO: Chico Pelúcio
REVISÃO DE TEXTOS: Arildo de Barros
VOZ EM OFF: Teuda Bara
Arranjos baseados em arranjos originais de Babaya, Ernani Maletta e Fernando Muzzi, do repertório musical do Grupo Galpão.
Fragmentos de textos: Eduardo Galeano, Charles Baudelaire, Olga Knipper, Jack Kerouak, Nelson Rodrigues, Anton Tchékhov, José Saramago, Paulo Leminski e Calderón de La Barca