sábado, 30 de janeiro de 2010

Novas versões do de repente

Quando menos se espera, você reencontra aquele cara de cinco anos atrás e trocam telefones.
Quando menos se espera, um familiar que não queria te ver retorna e exige e complica e te abraça e range os dentes. Te faz chorar.
Quando menos se espera, o ano novo chega, você olha pra trás e percebe que não fez nada. Ou fez tudo, mas equivocadamente.
Quando menos se espera, uma poesia sua é publicada no site de alguém especial e você sorri, lisonjeado, honrado, agradecido, orgulhoso, envergonhado.
Quando menos se espera, alguém em quem você confiava te vem com uma bomba. Você chora uma tarde inteira e sente o desamparo despencando você nos porões da vida.
Quando menos se espera, você pega sífilis. Mas tem cura. Ainda bem...
Quando menos se espera, você passa naquele concurso que não imaginava que tivesse possibilidades de concorrer. Quando menos espera, é convocado. Quando menos espera, entra em exercício. Quando menos espera, odeia o trabalho, os colegas, o ambiente. Mas o salário é bom. Você olha pra trás e pensa, ironizando o destino: eu quis tanto isso e choraria tanto se não passasse. Agora estou aqui, esmagado pela rotina nojenta do serviço.
Quando menos se espera, você conhece uma pessoa que será, em breve, seu melhor amigo.
Quando menos se espera, alguém morre e você se apercebe de que sempre adiava uma conversa, um reencontro, uma atenção. Não dá pra fazer mais nada agora.
Quando menos se espera, você ganha um prêmio. Em dinheiro. E faz aquela viagem.
Quando menos se espera, você encontra alguém na noite e se apaixona.
Quando menos se espera você se apaixona por aquela pessoa que, em outras circunstâncias, talvez não te dissesse nada. Por alguém totalmente fora dos seus padrões atrativos. E se apaixona perdidamente. Perdidamente? Apaixona-se, sim, achadamente!
Quando menos se espera, você recebe a proposta de um trabalho novo.
Quando menos se espera, você deve voltar para seu país porque na Inglaterra não aceitam mais seu visto. Os planos todos mudam da noite pro dia, da água pro vinho, e o subdesenvolvimento volta a te circunscrever. Lide com isso, sem chorar demasiadamente!
Quando menos se espera, você desce do ônibus e quebra alguns dos seus metatarsos. Ficará em casa durante semanas, sem nada poder fazer, a não ser ler todos os livros que esperavam empoeirados e rever filmes do Bergman, do Spike Lee e do Tarantino.
Quando menos se espera, você reencontra um antigo amor de seis anos atrás, que julgava morto e enterrado sem sombra de dúvida. É que não havia luz sobre essa dúvida para projetar a sombra...
Quando menos se espera, você está falido.
Quando menos se espera, você vai ser papai!
Quando menos se espera, serão gêmeos.
Quando menos se espera, você tem que se mudar.
Quando menos se espera, um melanoma tatua sua pele.
Quando menos se espera, você obtém a cura.
Quando menos se espera, tudo muda. Ou tudo fica como está.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

videoclipe

A vida pareceria um videoclipe se fosse sempre assim com o fone de ouvido. Era melhor ainda dentro do ônibus, quando Ana pegava aquele que ia pelo Aterro do Flamengo. Ouvindo Creedence, era então ótimo. Num clima nublado, anunciando pingos, as cenas poderiam parecer o prenúncio da catástrofe ou o preâmbulo da melancolia. De modo que, se ela estivesse já previamente arrastando-se em certo humor triste, ainda que de leve, ainda que sutil, ainda que pálido, ainda que esboço, tudo se tornaria mais sugestivo de um dia cinza em todos os sentidos.

Era tanta a alegria acumulada nas últimas sete semanas ou mais, que até estava estranhando todo aquele negrume amarronzado. Tinha se esquecido de como era ficar triste. Tinha se esquecido de como era aquela coisa de sorriso endurecido, falta de vontade de botar o pé pra fora de casa e horror de pensar em ficar o dia inteiro dentro de casa. Surpreendente era ter se esquecido, pois a rigidez no sorriso e nos gestos e na coagulação sangüínea era algo de tão costumeiro para Ana - tão sempre, tão mesmo, tão todo dia - que agora era quase inverossímil o esforço que estava empreendendo para reter aquilo tudo novamente e ter que redescobrir como se movimentar naquelas condições.

Estava triste. Os pingos já caíam. As árvores e os ciclistas e as gramas do Aterro do Flamengo pareciam ter ensaiado com a música ou, melhor dizendo, pareciam seus donos, como se a tivessem criado, árvores, ciclistas e grama compositores. Tudo se encaixava perfeitamente bem e a imagem era tão dinâmica quanto bela. E alguém ao seu lado, todo de branco, fazia lembrá-la de que, no mundo, além das gramas do Aterro, existem doenças esquisitas.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

linhas de fuga

O Celso não havia se despedido dela. Foi embora assim, sem mais. Ela acreditou que fosse voltar. E sabia onde encontrá-lo, se quisesse. Mas não quis.

No dia seguinte, acordou pensando nele. Foi quando Otávio ligou. Vamos ao cinema? Sim, podemos. E no cinema ela só pensava em Celso.

Três dias depois, foi ao encontro dele. De Márcio. E só conseguia pensar em Otávio.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

o que te resta?

Se ele soubesse gritar, ele gritaria. Se soubesse xingar, não hesitaria. Se ele tivesse como esmurrar, esmurraria. O que quer que fosse ele esmurraria. Se tivesse destreza em retorcer e fazer picadinho, não duvide de que ele retorceria e faria picadinho. Sem pestanejar. E sem arrependimento. Se ele soubesse se vingar, vingar-se-ia sim. Se ele soubesse ofender e assassinar, assim como quem mata metaforicamente faz muito mais estrago do que um homicídio concreto pode causar, ele ofenderia três mil vezes mais um e assassinaria n vezes contanto que n fosse maior que um zilhão. E se ele soubesse riscar, produzindo sangue, eu não julgaria que ficaria só na ameaça. Se cão que ladra não morde, ele partiria pra mordida sem ladrar, caso soubesse morder.

Mas o que ele sabia fazer? Gritar, ele não sabia. Não tinha voz. Nem mesmo sussurro ele era capaz de produzir. E era uma dor o que sentia - e era incomensuárvel aquela dor - quando ele tentava gritar ou sussurrar e o que saía era um bafo sem cheiro. E xingar ele também não sabia, porque dependeria de voz e de vocabulário. Ele também não sabia esmurrar, porque não tinha punho. E também não tinha mãos e movimentos finos e grossos para retorcer e em seguida produzir o picadinho daquilo que foi tão bem retorcido como um quadro do Francis Bacon. Ele tampouco sabia se vingar, pois para isso era preciso raciocínio e frieza, e ele jamais possuira um cérebro e tampouco temperatura. Ofender e assassinar também estavam fora de seu alcance, pois era preciso ter corpo e palavras, e ele não tinha voz, gramática ou corporeidade. Riscar também não sabia, pois já vimos que era desprovido de punho e mãos. E ele não mordia porque não tinha boca, dentes, caninos, saliva. Ele não tinha fome.

E o que restava a ele?
O desprezo. Se soubesse desprezar.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Olhos vidrados mais uma vez

Se ela queria?
Aqueles olhos vidrados novamente. Um pouco menos, mas olhos vidrados sempre se tornam cada vez mais vidrados. O que você vai fazer no banheiro no intervalo de tudo, que volta com os olhos mais vidrados ainda?
Mas ele estava envergonhado. Quando avistou Ana Luísa e Vitória, sorriu tímido. Pegou as mãos das duas, uma por vez, beijou-as e não se aproximou. Ele sabia que as havia assustado uma semana antes, mas elas sabiam que ele não era má pessoa. Apenas que tinha os olhos vidrados e quando começava a falar não parava mais. Além de tudo, arregalava aqueles olhos e se sentia discriminado e falava mal da polícia, dos bandidos, dos burgueses, dos flamenguistas e dos ladrõezinhos da Lapa. Apesar daqueles olhos, ele era vegeteriano. E tocava bateria, mas foi expulso da banda, justamente porque olhos vidrados beiram o descontrole quase toda noite.
Agora Ana Luísa e Vitória estavam com amigos. Inclusive alguns que haviam conhecido naquela mesma noite. Pois não tinha jeito: toda vez que saíam, conheciam várias pessoas dos mais variados formatos e das mais diversas embalagens. Era engraçado de uma certa maneira, pois algumas se transformavam em continuidade, ainda que curta. E ficaram ali conversando, enquanto o homem dos olhos vidrados papeava com outras pessoas por perto. Mas a música ia melhorando cada vez mais, enquanto as duas amigas dançavam, felizes. Até que ele puxou a amiga e dançaram e não teve jeito, ele tirou Vitória para dançar. Ela gostava de homens que sabem dançar. Homem havia que ter pegada e havia que ter um certo rebolado e aquele homem tinha. Apesar de as ter assustado sete dias atrás, agora ele estava suave. E dançaram. Bastante. Mais de uma vez. Mas os olhos dele não tinham cura: ficavam vidrados, cada vez mais, e junto com aquilo, uma fala que não se interrompia, um fluxo de idéias que não estagnava, e um certo desespero também. E aquele desespero era o que havia de mais assustador nele.