sábado, 3 de setembro de 2011

Crime Inafiançável


Na aldeia em que vivo, os poetas, músicos, desenhistas e artistas em geral são condenados à prisão perpétua quando acusados de seu crime, muito bem tipificado em nosso código penal. Alguns tentam ser mártires, e por medo de serem assassinados pela falta de sentido da vida, clamam suas obras de arte sem medo das penas a que terão de se sujeitar, pois castigo ainda mais cruel seria se adequar aos ditames da sociedade em que vivemos e o conseqüente banimento de si mesmos. Outros tentam, mas não conseguem não manifestar sua arte, tal como deixar de respirar voluntariamente é impossível. Se o desenhista, portanto, não contém seus impulsos primitivos de desenhar mesmo que no canto de uma folha solta de papel – na tentativa de ser comedido em suas necessidades básicas e julgando estar sozinho sem ninguém a observá-lo – será em poucos minutos açoitado, algemado, incriminado, acusado. Crimes hediondos, na terra em que vivo, são as manifestações, quaisquer que sejam, da arte; são também as manifestações do pensamento original; tipificadas ainda como infrações graves ao bem comum e à moral são as discordâncias de idéias oficiais por meio do humor (embora as penas para este último ilícito sejam um pouco mais brandas, uma vez que nossos legisladores crêem que a massa humana raras vezes capta a crítica que subjaz à piada).
Já o poeta: esse é o pior dos criminosos. Sua arte consiste em crime inafiançável e insuscetível de qualquer espécie de perdão. Aqui, são absolutamente proibidos versos, poemas, poesias, e aqueles que traficam esse tipo de material também são julgados com rigor, de modo que não se pode trazer livros, revistas ou quaisquer textos de outras terras. E um poeta, de modo geral, adoece na tentativa de esconder seus dons poéticos, pois acaba por contrair couraças que impedem a linguagem de se manifestar e aniquilam sua vida. Sua língua deve enrijecer, assim como seu olhar. Pena perpétua e, dependendo do caso, pena de morte, é o que está destinado àquele que reiteradamente insiste na poesia, como autor, leitor ou entusiasta.
É por isso que fui me tornando cada vez mais uma pessoa retraída, sem ousar compartilhar com quem quer que seja meu segredo (aqui não se pode confiar nem mesmo nos padres e nos neopsicanalistas, estes últimos com a única missão de apaziguar desejos inviáveis e administrar desejos infindáveis). Pergunto-me: quantos como eu passam por essa sina de esconder do mundo o que lhes é mais natural? Quando cruzo o olhar com estranhos na rua, estarei mirando um poeta camuflado como eu ou alguém que me estapearia ao ouvir uma metáfora? E como conciliar a vida como um todo com a proibição da minha poesia, essencial e atual em mim? O resultado é uma vida vivida em parcelas exíguas, atitudes plenas de hesitação, restando a condição de incompleto e ineficaz que se aproxima apenas das beiradas da vida, evitando o cerne, pois todo cerne é explosão poética.
Foi dessa forma que passei a desenvolver sintomas corporais compatíveis com todas aquelas renúncias. Aos dezoito anos desenvolvi a gagueira. Aos poucos, já não me era possível enunciar frases completas. Aos vinte e um anos, comecei a mancar da perna esquerda. Nenhum ortopedista encontrou causa orgânica para o fato, assim como não haviam encontrado problema de natureza física na minha incapacidade de fala. Aos vinte e seis anos, não conseguia mais executar movimentos finos, tais como escrever. Tempos depois, desenvolvi um tique nervoso na pálpebra esquerda que me fazia piscar várias vezes por minuto. Tornei-me cada vez mais inadaptado à vida e a mim mesmo, perdendo as funções do corpo, tornando-me um incapacitado, um desqualificado, um perdedor. Um vegetal. Enquanto meu sonho era poder ser poeta livremente, acabava por, ao contrário, seguir os preceitos de um muito antigo poeta português, adaptando-os à minha realidade: o que eu mais tinha que exercitar era a qualidade de fingidor que todo o poeta deve ter se quer sobreviver na aldeia em que vivo. E esculpir – a dor e a poesia – mais do que completamente, porém apenas dentro de si e cobrindo-a de silêncio. Meu fim não podia ser diferente: aos quarenta e nove anos, mal e mal consigo respirar, tenho escaras cobrindo a pele do tórax e dos calcanhares, dependo de remédios para dormir e para acordar, e minha vida reduziu-se ao murmúrio de meu corpo sobre a cama do sanatório.

(Conto para o clube da leitura cujo mote foi poesia, do primeiro trimestre de 2011.)

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