sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Espera


Desde o dia em que resolveu tornar todas as experiências intensas, vividas na carne e milimetricamente no pensamento, tentando absorver todos os aspectos que cada vivência continha, ainda que banal, quotidiana, ou tão rara quanto uma expedição trágica em qualquer canto da Terra, Tatiana tornou-se menos amarga até mesmo com o sofrimento, porém mais obsessiva no trato com os ocorridos diários. Tudo era passível de virar um ritual. Tudo ganharia contornos diversos e o fato de imprimir uma iluminação diferente a cada vivência torná-las-ia, ela queria acreditar, muito diferentes do que poderiam ser.
Tatiana estava à espera de alguém, naquele sábado à noite. E mesmo aquela espera era peculiar. Pois ela não tinha certeza absoluta de que chegaria, embora o provável fosse que sim. Tratava-se, nesse caso, de uma espera incerta. Entretanto, a espera, por definição, já traz em si muitas camadas de incerteza. A espera é inerentemente vaga. Enquanto você espera, nada acontece, ou tudo acontece. Bem, de fato, nada acontece. Enquanto se espera, pode-se empreender uma série de tarefinhas que, no entanto, são quase um arremedo de comportamento e vida. Um engodo a si mesmo e ao tempo talvez. Você espera o trem e tudo o que você quer e deve e necessita fazer é voltar para casa. Não há mais nada além disso: a volta. E, não obstante, encontra-se há quarenta minutos esperando e, enquanto isso, se tem um telefone celular na bolsa, pode discar para algumas pessoas e tornar aquele tempo menos perdido do que é. Mesmo as esperas longitudinais, como a de uma viagem que ocorrerá dentro de muitos meses, torna toda a vida anterior um inegável apanhado de pequenas ações desprovidas de qualquer significado maior. Tatiana sabia disso e sabia que só lhe restava esperar, e que uma espera como aquela era ainda pior, se fosse vista sob o prisma do bom e do ruim. Tatiana era também ciente de que quase toda espera carrega em si certa ânsia, que pode ser amenizada com as distrações fúteis ou maximizada se o foco é unicamente o momento esperado. Tatiana, entretanto, queria intensificar a vida e extrair o sumo de cada acontecimento. Até mesmo se o acontecimento fosse a própria espera.
Estava em seu apartamento, sozinha, e o clima era típico de abril: um pouco abafado, poder-se-ia dizer. Também não estava cansada, pois havia acordado tarde e a semana não comportara grandes agitações. Agitação, se havia alguma, era aquela que podia se encontrar guardada dentro de Tatiana, nos tecidos conjuntivos de seu corpo e nos espaços disjuntivos das suas faculdades de juízo, raciocínio e sentimento. Estava esperando, ora bolas! E quem suporta por muito tempo uma espera? O que restava a Tatiana era justamente preparar o momento, decorá-lo propriamente, sem fugir da sobriedade e sem cair na mesmice diária. Desde o dia em que Tatiana passou a desejar que sua vida fosse menos comum, tudo deveria ter um preparo diferenciado. Mesmo que ninguém soubesse. Ela não queria performances, menos ainda aplausos. Não queria exclamações de supostas platéias, nem opiniões favoráveis ou desfavoráveis. Não pretendia escrever uma autobiografia, menos ainda seguir qualquer espécie de filosofia de vida pré-determinada. Tatiana não queria uma história pra contar e assunto pra mesa de bar, ela não se engrandecia com nada aquilo e achava todas aquelas conversas tão sem sentido quanto sopas de letrinhas. A experiência, ela sabia, era impossível de compartilhar. Ela queria apenas tornar mais substanciais os momentos de sua vida, fossem eles felizes ou não. Em seu apartamento, naquela noite no final de abril, enquanto esperava alguém que talvez não viesse jamais, apagou todas as luzes, desligou as máquinas, escancarou as janelas, trocou a roupa de cama, sentindo o perfume das fronhas e lençóis bem lavados e amaciados. Tomou um longo banho morno, secou-se lentamente, deitando-se sobre a cama, despida. Os sons que podia ouvir eram todos externos à sua vida e à sua vontade. Ao longe, podia ouvir o vizinho que arranhava alguma música no saxofone e alguém que escutava Maria Bethania em um volume tímido. Alguns barulhos difusos de talheres denunciavam algum preparo culinário. O ar soprava algum movimento de maneira irregular. Pouca luminosidade provinha da rua. Não havia nada que pudesse prever, além da quietude do apartamento. Aquilo que estava acontecendo não seria mais um prelúdio de acontecimento, mas o acontecimento em si. Não seria coadjuvante, seria a meta. A espera seria um dos elementos de um conjunto de vários, todos com igual peso, e não apenas o preâmbulo ansiogênico de algo que é mais importante. Naquela noite, de olhos fechados, deitada e só, o que Tatiana queria era apenas esperar.

(O Clube da Leitura ocorre quinzenalmente às terças no Sebo Baratos da Ribeiro, em Copacabana, e este conto foi feito para um desses encontros. O tema era relacionado à espera, mas acabei elaborando outro, Uma Ciência do Atraso, que acabei levando naquela noite. Está no blog do clube da leitura, no site do sebo. No fundo, no fundo, os contos, embora diversos no início, têm o mesmo princípio.)

sábado, 3 de setembro de 2011

Crime Inafiançável


Na aldeia em que vivo, os poetas, músicos, desenhistas e artistas em geral são condenados à prisão perpétua quando acusados de seu crime, muito bem tipificado em nosso código penal. Alguns tentam ser mártires, e por medo de serem assassinados pela falta de sentido da vida, clamam suas obras de arte sem medo das penas a que terão de se sujeitar, pois castigo ainda mais cruel seria se adequar aos ditames da sociedade em que vivemos e o conseqüente banimento de si mesmos. Outros tentam, mas não conseguem não manifestar sua arte, tal como deixar de respirar voluntariamente é impossível. Se o desenhista, portanto, não contém seus impulsos primitivos de desenhar mesmo que no canto de uma folha solta de papel – na tentativa de ser comedido em suas necessidades básicas e julgando estar sozinho sem ninguém a observá-lo – será em poucos minutos açoitado, algemado, incriminado, acusado. Crimes hediondos, na terra em que vivo, são as manifestações, quaisquer que sejam, da arte; são também as manifestações do pensamento original; tipificadas ainda como infrações graves ao bem comum e à moral são as discordâncias de idéias oficiais por meio do humor (embora as penas para este último ilícito sejam um pouco mais brandas, uma vez que nossos legisladores crêem que a massa humana raras vezes capta a crítica que subjaz à piada).
Já o poeta: esse é o pior dos criminosos. Sua arte consiste em crime inafiançável e insuscetível de qualquer espécie de perdão. Aqui, são absolutamente proibidos versos, poemas, poesias, e aqueles que traficam esse tipo de material também são julgados com rigor, de modo que não se pode trazer livros, revistas ou quaisquer textos de outras terras. E um poeta, de modo geral, adoece na tentativa de esconder seus dons poéticos, pois acaba por contrair couraças que impedem a linguagem de se manifestar e aniquilam sua vida. Sua língua deve enrijecer, assim como seu olhar. Pena perpétua e, dependendo do caso, pena de morte, é o que está destinado àquele que reiteradamente insiste na poesia, como autor, leitor ou entusiasta.
É por isso que fui me tornando cada vez mais uma pessoa retraída, sem ousar compartilhar com quem quer que seja meu segredo (aqui não se pode confiar nem mesmo nos padres e nos neopsicanalistas, estes últimos com a única missão de apaziguar desejos inviáveis e administrar desejos infindáveis). Pergunto-me: quantos como eu passam por essa sina de esconder do mundo o que lhes é mais natural? Quando cruzo o olhar com estranhos na rua, estarei mirando um poeta camuflado como eu ou alguém que me estapearia ao ouvir uma metáfora? E como conciliar a vida como um todo com a proibição da minha poesia, essencial e atual em mim? O resultado é uma vida vivida em parcelas exíguas, atitudes plenas de hesitação, restando a condição de incompleto e ineficaz que se aproxima apenas das beiradas da vida, evitando o cerne, pois todo cerne é explosão poética.
Foi dessa forma que passei a desenvolver sintomas corporais compatíveis com todas aquelas renúncias. Aos dezoito anos desenvolvi a gagueira. Aos poucos, já não me era possível enunciar frases completas. Aos vinte e um anos, comecei a mancar da perna esquerda. Nenhum ortopedista encontrou causa orgânica para o fato, assim como não haviam encontrado problema de natureza física na minha incapacidade de fala. Aos vinte e seis anos, não conseguia mais executar movimentos finos, tais como escrever. Tempos depois, desenvolvi um tique nervoso na pálpebra esquerda que me fazia piscar várias vezes por minuto. Tornei-me cada vez mais inadaptado à vida e a mim mesmo, perdendo as funções do corpo, tornando-me um incapacitado, um desqualificado, um perdedor. Um vegetal. Enquanto meu sonho era poder ser poeta livremente, acabava por, ao contrário, seguir os preceitos de um muito antigo poeta português, adaptando-os à minha realidade: o que eu mais tinha que exercitar era a qualidade de fingidor que todo o poeta deve ter se quer sobreviver na aldeia em que vivo. E esculpir – a dor e a poesia – mais do que completamente, porém apenas dentro de si e cobrindo-a de silêncio. Meu fim não podia ser diferente: aos quarenta e nove anos, mal e mal consigo respirar, tenho escaras cobrindo a pele do tórax e dos calcanhares, dependo de remédios para dormir e para acordar, e minha vida reduziu-se ao murmúrio de meu corpo sobre a cama do sanatório.

(Conto para o clube da leitura cujo mote foi poesia, do primeiro trimestre de 2011.)