quinta-feira, 21 de março de 2013

Isso é tudo ficção

Você me desculpa. É que quando eu sonhava, eu esquecia tudo. Era isso ou acordar com tantas imagens misturadas na cabeça, que equivalia a não lembrar nada. Eu não conseguia traçar minimamente um percurso do sonho, e os meus verbos perdiam a conjugação. Você então me desculpe, que dessa vez tive que agir diferente. Tive de segurar o sonho, com as garras que ainda mantenho intactas. Foi preciso alguma agressividade (confesso, foi preciso muita agressividade). Com as mãos, tive de enlatá-lo dentro de mim mesma, o sonho que insiste em me fugir da memória, e parece que tive sucesso (ao menos por enquanto). E eu sonhei com aquele prédio e aquele bairro e aqueles tempos e aquela gente. Tenho a certeza de que foi isso, mas se eu não tivesse capturado a imagem, jamais poderia dizê-lo agora a você, com tamanha precisão. Serve assim desse jeito? Posso especificar mais e dizer que eu não me via no sonho, embora talvez houvesse morado naquele prédio. Não sei se fiz parte da história, mas um daqueles quartos era meu. Tampouco posso afirmar que tenha dito uma frase de efeito (ainda que um lapso, um chiste ou a pior das anedotas), mas a minha voz ecoava naquelas paredes. Era o último andar. De lá eu via a parte feia da cidade. Não tinha mar algum, mas céu azul até acontecia vez ou outra. Era a Zona Norte, em seu esplendor de cimento, e por que não? No meu sonho (que eu apertei tão bem que cheguei a esmagá-lo), havia as pessoas do passado (mistura de avós com tios, irmãos com primos), os sentimentos inglórios (mistura de ódio com mágoa, vergonha com solidão), os cenários primitivos (mistura de berço com quarto, playground com salão), e havia também o que agora não há verbo que possa definir (é, meu problema primário é com verbos, apenas isso). Esse sonho eu consegui guardar, e todo dia eu o repasso, em sua sequência que me parece exata, mas que se distancia da lógica e que muda a cada dia. Você me desculpe, mas pode ser que não seja nada disso. Pode ser que eu tenha inventado aquela imagem antiga do lugar onde morei para poder puxar historinhas baratas que todo mundo quer contar ao analista. Pode ser que a fabulação domine o meu modo de pensar as coisas. Pode ser que você não deva confiar em mim. Você me desculpa, mas acho que mais do que mentira, tudo isso é ficção. 

(Texto escrito para o coletivo Caneta, Lente, Pincel, inspirado em imagem intrigante de Paula Sancier.)

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