quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Sobre BOYHOOD e a difícil continuidade de cada dia



Somos contínuos. Não é incrível? Somos contínuos. Não é terrível?

Pelo lado do otimismo e da alegria de viver, sermos contínuos é algo incrível. Ou melhor, é sempre incrível que os outros que nos acompanham, pais, mães, filhos, namorados, amigos, sejam contínuos. Que bom que a maioria daqueles que me cercam são contínuos e me acompanham em minha continuidade. Torço ardentemente para que sejam muito mais contínuos do que eu. Para que me ultrapassem em sua continuidade. Mas, vendo Boyhood, talvez pela lente do meu eventual pessimismo, cheguei à conclusão de que ninguém é feliz, salvo honrosas exceções. E que podemos até pensar: somos contínuos, não é terrível?

Esse é um texto que não combina com a véspera de natal e me desculpem aqueles que tiveram um ano feliz no facebook e colocam aí essa foto circular com a legenda 'o ano de fulana - obrigada por fazer parte dele'. Não é um texto propício, não é um texto alvissareiro, mas é preciso falar sobre continuidade e interrupção vendo Boyhood. Trata-se de um filme adequadíssimo (existe superlativo de adequado? ou adequado é tão adequado que é fixo nele mesmo?) a um fim de ano, momento em que muitos pensam e repensam suas vidas. Momento em que a continuidade é colocada em questão, tratada como objeto manipulável. Enfim, vendo Boyhood e vendo aquela mulher interpretada pela Patricia Arquette, não há como não pensar que ninguém está satisfeito, salvo quando estamos no facebook colocando selfies alegrinhos.



Aquela mulher venceu na vida enquanto mulher e mãe. Aquela mulher soube criar os filhos, passando por perrengues sem conta, educou-os lindamente como o pai não foi capaz de fazer, porque ao pai cabiam os finais de semana, as férias, as eventualidades prazerosas e prazenteiras, ao pai cabiam as celebrações, mas à mãe, surpreenda-se agora ou nunca mais: cabia o todo dia, cabia a continuidade, cabia o café-almoço-e-janta, cabiam as contas, cabia tentar ser feliz no amor dando conta de duas crianças, cabia renunciar ao prazer egoico, mais uma vez, em nome de duas crianças, cabia retomar a faculdade e tentar não pagar dois aluguéis ao mesmo tempo, cabia marcar na parede a altura do Mason e sua irmã enquanto cresciam, cabia a solução para a dislexia do menino, e ela conseguiu, e ela os fez crescer vivos, contínuos, sãos, salvos, ela conseguiu retomar a faculdade e se formar, ela conseguiu se tornar professora universitária, e como ela mesma diz à certa altura do filme, ela conseguiu passar metade da vida comprando uma casa para passar a próxima metade se desfazendo dela. Ela conseguiu milagres diários impensáveis. E, enfim, quando essa grande mulher envia o caçula à faculdade, há aquela crise de choro e desespero porque o tempo urge, porque somos contínuos apenas até a nossa descontinuidade, até o colapso de algo que se chama vida, e a vida é essa continuidade exasperante que uns amam, muitos outros odeiam. Maldita continuidade que queremos e que odiamos. Essa mulher - a mãe do adorável Mason - se dá conta de que o próximo evento de sua vida só pode mesmo ser a morte. E ela achava que haveria um pouco mais. Uma fatia do bolo onde houvesse algum recheio. No entanto, ela pergunta, e com razão, e com desespero: o que sobrou para ela?

Essa mulher que se desespera no momento em que o último filho sai de casa é uma mulher que eu admiro, essa mulher nós todos admiramos, nós todos invejamos, porque ela não atirou no colo de ninguém os efeitos de suas causas, as consequências de suas escolhas. Ela deixou de ir ao cinema inúmeras vezes e talvez não seja tão culta, embora saiba muitíssimo bem sobre behaviorismo. Ela educou dois filhos e não morreu ao mesmo tempo.

Mas não está feliz. A personagem de Patricia Arquete está tão infeliz quanto eu às vezes estou, e eu não seria capaz de ser como ela. Mas ela? Ah, ela foi lindamente capaz de ser como ela. Mas não, não está feliz. Porque não há ninguém feliz, não há ninguém satisfeito, salvo honrosas exceções, já disse ali em cima, e essas exceções são aquelas que se sustentam com a cerveja nossa de cada dia, o escitalopram nosso de cada noite ou a religião nossa de cada esquina.

Mas é um belo filme. Mesmo que em algum ponto o Mason adolescente pergunte: what's the point? E o pai, o Ethan Hawke, diz: sei lá. O objetivo é talvez o improviso. Isso ele diz.

Donde deduzo que: a vida é jazz.




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