terça-feira, 7 de abril de 2015

Débito


Foto: Aline Germano

O máximo grau do esquecimento, a poeira sobre objetos cansados, o pó, o chão, de tudo aquilo, o que eu era? Utensílios sem sentido, sentido sem gancho, um emaranhado de coisas sem nome, um esparramado de dúvidas abertas. A sobra de tudo, o resto disforme pronto pra uso, a tinta seca, o desenho sem cor, e que mais?, e que mais?, e até quando?, e até quando? Eu era, quem sabe, e aí sim fico na dúvida, uma paisagem desconexa, o desejo de fazer coisas impossíveis, a própria impossibilidade das coisas. Mas também, e mais que tudo, o desejo atrelado ao chão, o chão derramado na cidade inteira, eu era interinamente a cidade raspada da geografia oficial. Eu era, sem dúvida alguma, era só dizê-lo assertivamente, eu era o relógio que engolfa em sua bocarra de ponteiros insanos o tempo cada vez mais anêmico. E não se trata do meu tempo, do seu tempo, do nosso tempo, o tempo não se sujeita a pronomes possessivos. Meu eu obsoleto, esse sim assujeitado, perdido entre a anemia que palpita em cada uma das coisas inertes, meu eu, menor que o tempo, magrinho, bambo, trouxa, meu eu, até que se prove o contrário, é a lona em cujo regaço tudo descansa, um monte de troços podres e trôpegos pedindo perdão. E não só, mas também: a espera por um destino melhor, a ânsia pelo desejo de alguém, a bolsa vazia, o vazio da bolsa, o fecho estragado. O caos, o desinteresse dos transeuntes perdidos, a lata de lixo mais próxima, o cenário triste de um comércio decadente. A decadência assumida e irrestrita, era isso o que eu talvez fosse e (pasme, mas pasme em silêncio) negociava, esse eu escancarado, esse eu desdentado, pedaços perdidos de mim, partes esfaceladas, unhas roídas. Eu era a incerteza confessa, o horror aos guardados imundos. 

Eu era, e agora falo sério goste-se ou não, a capacidade de jogar tudo fora. Eu era, e falo sem ironia, a capacidade de dar as costas a tudo. Se alguém perguntasse, eu diria, convicta, sem delongas, que sim, sim, com certeza: aceito cartão de débito. E divido em cinco vezes.

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