quinta-feira, 7 de maio de 2009

De esguelha

Não tinha coragem de sair de casa. Morava em uma vila, numa das primeiras casas. E quem saía era sua avó, que comprava comida, que pagava contas, que ajeitava o quintal, que dava suas caminhadas vespertinas. Mas ela não saía de casa. Apenas espreitava o mundo. Cheirava-o, e bem de longe. Não era raro ir até a janela e, numa fresta da cortina, ver o movimento de crianças que havia no pátio da vila, ver a chegada do carteiro, sempre simpático e cantarolante, observar a ida dos moradores para o trabalho e sua chegada, todos eles meio exauridos e esvaziados. Ela não saía. Mesmo com as insistências da avó, que tentava de tudo e uma vez deu de chamar um médico para que ele a convencesse de sair. Era um médico proctologista, mas simpático, com dom de cuidar do outro, e ainda que aquela não fosse sua especialização profissional, aceitou de bom grado o que a velhinha lhe pediu e, uma vez lá chegando, nada conseguiu, nenhuma persuasão ou convencimento foi capaz de fazê-la sair de casa, nenhuma receita e nem os anos e anos de faculdade e estudo. Porque ela - ela olhava o mundo muito de esguelha. Via televisão e sabia das coisas do mundo também por esse canal. Comia bastante, assistia novelas e telejornais e observava o movimento do mundo de esguelha. Assim era melhor. Assim era prudente. Ela não ousaria colocar os pés para fora de casa e dar de cara com o turbilhão que o mundo é. Não ainda.

(texto publicado no número 4 da revista digital Rabiscos e Afins).

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