domingo, 6 de julho de 2014

prazo


ela só não queria morrer antes do prazo certo. havia um prazo. a ser dado por ela mesma no futuro e que só saberia no momento de. a gente sempre sabe, era o que ela dizia quando lhe perguntavam como ela iria saber o momento de. intuição? não, ela dizia, cansada de mesmices. intuição é explicação rápida, rasa, raquítica. por causa das mesmices e de muito raquitismo, saiu do facebook. não tinha mais tempo, nem paciência, as redes sociais reproduziam em excesso a vida social ao vivo, facebook era sua agrura, vida social era seu horror. pra que mais? pra que tanto? não, não queria cansar dos amigos mais do que poderia se cansar deles na vida real, saiu do facebook, pôs-se a escrever poesia ou, melhor, pôs-se a escrever o que torcia (dedos cruzados) para que poesia fosse. no caderninho azul que denise havia trazido da inglaterra, fez um diário da dor, esse sim nada poético. mas cru. um diário milimétrico, obsessivo, minucioso, espantoso. ela perquiria sua dor, passo a passo. depois, toda sexta-feira, lia o inventário em letra de mão. criava a si mesma por intermédio dos itinerários da dor. vez ou outra, acordava no meio da noite resfolegando. teria corrido alguma maratona num desses pesadelos cujo conteúdo a gente esquece mas cujo tom permanece? o tom do pesadelo impedia que adormecesse novamente, às vezes se levantava. lavava as mãos, sem pressa. na sala, acendia a luz, olhava ao redor. o caderno azul sobre a mesa, as dores ali encerradas. só não queria morrer antes do prazo certo, mas aquelas dores, todas elas, agrupadas, separadas, intermitentes, insistentes, quentes e frias, dores que embaralhavam o entendimento de seu próprio corpo, todas elas faziam com que temesse um adiantamento qualquer. contanto que fosse deliberado, tudo bem. 
mas assim, à sua revelia, fora de seu controle, isso não estava certo.

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