quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Teatro: The Pillowman - O Homem Travesseiro (Cia. Os Limítrofes)


Sempre que me proponho a escrever um texto sobre uma peça de teatro – a tal da crítica – fico preocupada com sua possível influência e com o poder das palavras que escolho. A crítica não é isenta de parcialidade, claro; seu forte está longe de ser a objetividade. Acontece que, apesar de a subjetividade ser a tônica de qualquer texto crítico e o gosto pessoal influenciar muitíssimo na confecção do próprio texto, ele pode parecer às vezes fruto de uma objetividade à toda prova, resultado de um saber que é, antes de tudo, suposto.
Pensar na responsabilidade do “crítico” em relação às suas opiniões parece embromação, mas tudo isso tem algo a ver com a temática do excelente espetáculo “The Pillowman – O Homem Travesseiro”, que a Cia. Os Limítrofes acaba de estrear no Teatro Poeirinha, em Botafogo, com a ótima direção de Bruno Guida (que também traduziu o texto do original de Martin McDonagh, além de atuar na peça) e Dagoberto Feliz. Afinal, o texto teatral que comento aqui gira em torno dos efeitos que uma criação artística pode ter e das implicações do autor com as consequências (também supostas) de sua obra.
Assim, em The Pillowman – O Homem Travesseiro, Katurian é o escritor julgado por seu texto, por suas quatrocentas histórias, da qual apenas uma foi publicada, como diz, ironicamente, o detetive que o interroga. Alguns assassinatos de crianças ocorreram pela cidade e os contos de Katurian apresentam uma semelhança significativa com os acontecimentos que se busca desvendar. Ele também descobre, já no meio do interrogatório, que seu irmão, que tem uma deficiência mental, está sendo interrogado pela mesma razão. Mas a verdade é que Katurian deve se provar inocente, no que se constitui em uma inversão nada incomum (é-se considerado culpado, até que se prove o contrário).
Katurian, vivido por Flavio Tolezani, não sabe o que está acontecendo, mas deve se explicar por sua obra. O que levanta a inevitável pergunta: terá, o escritor, responsabilidade diante de sua criação literária? E, se sim, até que ponto, em que medida? Qual é a responsabilidade do artista em relação à sua obra? Essa é a pergunta que está presente, de modo tácito, no texto de McDonagh. Volto então à pergunta inicial: e o “crítico”, qual é a sua responsabilidade em relação aos efeitos de sua crítica? Qual é a sua função? Será essa uma pergunta pertinente?
O presente questionamento que ora faço começou a surgir também quando, no intervalo de dez minutos na peça, conversei com uma amiga com quem fui assistir, e qual não foi nossa mútua surpresa quando nos demos conta de que o que mais apreciei foi o que ela menos gostou, e o que mais despertou interesse nela foi o que menos me prendeu. Nossas impressões em relação aos elementos dramatúrgicos eram simétrica e exatamente opostas. Diante disso, como escrever uma crítica sem levar em consideração essas diferentes opiniões (e por que a minha seria a mais certa?).
Feita essa advertência sem pretender esgotar a questão, o que quero dizer, além de parabenizar a equipe inteira pelo cuidado com que trabalharam a temática e pelo rigor do estudo realizado e que se vê no resultado no palco, é que identifiquei três momentos na peça. E que gostei muitíssimo de dois deles, o primeiro e o último, quando os cinco atores estão no palco (Bruno Autran, Bruno Guida, Daniel Infantini, Flavio Tolezani e Wandré Gouveia) e a cena gira em torno do interrogatório do escritor acerca do conteúdo de suas histórias. Nesses dois momentos, os diálogos são afiadíssimos e a estética grotesca que a equipe escolhe adotar torna tudo a um só tempo repulsivo e muito interessante.
Aqui faço um parêntesis importante para dizer que a equipe começou a estudar a linguagem do bufão para melhor entender texto e personagens e fez oficina de bufão comBete Dorgan e oficina de contação de histórias com Luciana Viacava, o que também é fundamental, uma vez que algumas histórias são contadas ao longo do espetáculo.
Fechando o parêntesis, nos momentos do interrogatório temos a oportunidade de ver a interação entre atores excelentes: Flavio Tolezani, o acuado Katurian, o tempo inteiro em cena, Bruno Guida, ótimo como o policial que é misto de sentimentos mal resolvidos e uma raiva incontida, Bruno Autran, o irmão do escritor, que traz leveza e graça à interpretação e que tem espaço no momento em que está só com Tolezani em cena, e finalmente Wandré Gouveia, que arranca risadas em um dos momentos finais do espetáculo, mas Daniel Infantini merece mais uma vez destaque pois, apesar de seu personagem ser verdadeiramente detestável e de seus trejeitos poderem provocar aversão contínua, seu carisma faz com que gostemos dele, sobretudo quando tenta mostrar ao escritor interrogado que também é capaz de criar histórias e complexos títulos para elas. Nos momentos em que o detetive flerta com o ridículo, o perdoamos como se se tratasse de ingenuidade.
Assim, nesses dois momentos do interrogatório, os dois policiais (vividos por Infantini e por Bruno Guida) manipulam as palavras e as perguntas de um modo a deixar o réu confuso, o que nos remete à falácia implícita no ditado muitas vezes repetido segundo o qual “quem não deve, não teme”. Depende! Katurian, o escritor, deve sim temer ter sido capaz de criar histórias pavorosas, ainda que não se saiba se matou ou não alguém, se tem algo a ver com os crimes investigados e mesmo se sua criação literária teria o poder de influenciar comportamentos (um nexo causal dificílimo de estabelecer).
Pois bem, esses dois momentos em que a investigação se desenrola debaixo de uma luz fria e com cadeiras e mesa metálicas ao redor, e que foi o que mais gostei, causou certo incômodo em minha amiga, o que talvez seja um efeito positivo da estética grotesca em que a violência anda de mãos dadas com a comédia, como nos aponta Bruno Guida no texto do programa: “as raízes comuns entre a comédia e a violência são reveladas” . Mas há outro momento, no meio da peça, em que os dois irmãos estão em cena (Flavio Tolezani e Bruno Autran) e isso foi o que mais cativou a minha amiga, porém foi o que menos me interessou, apesar da graça da interação entre os atores e alguns trechos em que discutem sobre a versão e os fatos (houve mesmo os assassinatos sobre os quais falam os policiais, houve tais crimes segundo o alarde dos jornais?). Enfim, por que estou aqui fazendo questão de juntar à minha apreciação o que achou a minha amiga? Pelo simples fato de que ninguém poderá dizer o que é melhor na peça: os cinco atores juntos ou os dois que fazem os irmãos encurralados pela justiça. Confesso que acabei me distraindo na cena dos irmãos, em certos momentos, mas foi a parte da peça em que minha amiga mais se envolveu.
Mas, a despeito de diferentes impressões sobre a mesma montagem, e afinidades maiores ou menores em relação aos seus diversos momentos, não há como não aplaudi-la de pé e com vontade. O texto é denso, o espetáculo é forte tanto no que diz respeito à experiência estética que proporciona ao público quanto na reflexão que brilhantemente ocasiona, e a equipe está em cartaz paralelamente com a excelente In Extremis no mesmo Teatro Poeirinha, o que significa que estão de terça a domingo em diferentes tramas. E, com tudo isso, há um trabalho sofisticadíssimo de encenação e de dramaturgia, teatro da melhor qualidade em curta temporada.
Ficha Técnica:
Texto: Martin McDonagh
Direção: Bruno Guida e Dagoberto Feliz
Elenco: Bruno Autran, Bruno Guida, Daniel Infantini, Flavio Tolezani e Wandré Gouveia
Figurinista: Daniel Infantini
Confecção de Figurinos: Glória Coelho
Cenário: Ulisses Cohn
Iluminação: Aline Santini
Fotografia: João Caldas
Oficina de Contação de Histórias: Luciana Viacava
Oficina de Bufão: Bete Dorgam
Designer Gráfico: Fernando Bergamini
Assistente de Produção: Juliana Mucciolo
Produtores Associados: Bruno Guida e Edinho Rodrigues
Direção de Produção: Brancalyone Produções Artísticas (Edinho Rodrigues)
Produção Rio de Janeiro: Lis Maia
Realização: Pitaco Produções e Brancalyone Produções Artísticas
Assessoria de Imprensa: Lu Nabuco Assessoria em Comunicação.

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