quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Inauguração (conto para o Clube da Leitura de 2 de fevereiro de 2016)




Que eu soubesse, que eu lembrasse e que me dissessem, nunca havia matado ninguém. Não à vera, ali, no concreto da arma na mão, da faca decepando peles, ligas, tendões, miolos, não no concreto da vontade que faz com que os músculos se fortaleçam em um só golpe, ou em vários, tanto faz, mas certeiros, provocando o resultado de uma morte, que, de resto e como todas, é irreversível. Não, que eu soubesse, que me dissessem, que minha memória me sinalizasse, eu nunca havia matado ninguém, não ainda, não até ali.

Há um momento de inauguração na vida de todo mundo. E em qualquer âmbito dela. E, depois da inauguração, é a vez do inventário. Inventário de escolhas passadas.

Éramos casados há dezenove anos. “Dezenove anos não é nem tanto tempo, vai.” Essa foi minha consciência falando para uma parte dela mesma. “Não dá tempo de os ressentimentos se tornarem ressecados, mas doídos. Não dá tempo de tragédias inúmeras terem se amontoado entre as colchas e as fronhas da cama de casal, de acontecerem em cadeia deslealdades bem maiores que traições.” Minha consciência 1 tentava argumentar, mas a outra parte dela, a consciência 2, podia retrucar dizendo que o tempo é relativo. Que o ressecamento de um ressentimento é sempre subjetivo, e muito inexato, impossível de medir ou calcular.

Pois bem. Eu o conheci, meu ex-marido, com treze anos. Ele tinha quinze e já me paquerava. Era da turma do meu irmão mais velho. Eu o ignorava porque ainda brincava de Barbie. Depois ele sumiu. Eu o reencontrei na prova de vestibular. Ele não havia passado para medicina. Na falta de opção, de não saber o que fazer da vida pelo resto da vida, eu tentava comunicação, e ele também, na falta de sucessos anteriores. Passamos para a mesma faculdade. Na choppada, uma tentativa malfadada de me seduzir. Eu o ignorei, mas lá pelos últimos períodos, nos beijamos pela primeira vez. Gostei. Ficamos saindo. Mas eu não pretendia nenhum tipo de elo duradouro, ele não era tanto, não me bastava. Foi só aos 24 anos que começamos a namorar. Neste inventário que procuro fazer, não sei apontar o motivo que me persuadiu a namorá-lo. Talvez eu estivesse cansada de outras tantas histórias anteriores que me desgastavam a pele, a nuca, a vontade, o desejo, a crença no ser humano, a boca, a língua, histórias prévias que me usurpavam as digitais dos dedos de carinhos que não mereciam o destino que os recebia, homens cafajestes ou abertamente imbecis. Por que não tentar com ele já que, se não era isso tudo, beijava bem? E foi aos 27 anos que resolvemos casar. Portanto, aos 46 anos de idade, eu tinha 19 anos de casada, mas meu percurso com ele contava 33 anos, uma convivência extenuada. Tratava-se, eu sei, de uma aritmética que fazia mais sentido para a consciência 2, aquela que mataria sem dó, mas que não convencia a consciência 1, aquela que se horrorizava consigo mesma. 

Mas não era só a convivência extenuada. Era vê-lo agindo no mundo, gabando-se de feitos bambos, roubando frases que outras pessoas haviam dito, assumindo ideias geniais que não, não, não eram suas, reclamando com os garçons e sendo grosseiro ainda que controlado, sem contar o fato de ser um jornalista que escrevia bem mas que havia se acovardado diante do desejo antigo de cursar medicina, e o ronco à noite, a apnéia do sono, a flatulência aos domingos, mas não que cada uma dessas coisas fosse motivo suficiente para não querê-lo perto de mim, nem que todas essas coisas juntas constituíssem um rol de motivos necessários. Ele também havia ficado com a Marcela, minha ex-melhor amiga, num revéillon que passamos em seu sítio, e havia cortejado a Luana, que teve uma conversa sincera comigo. E quando o fez - quando eu soube - ele já era uma presença irreversível na minha vida, já era quase impossível renunciar a ele, pois de todos era o que melhor beijava, era aquele cuja pele melhor se adequava à minha, e cujo cheiro me fazia falta quando ele viajava a trabalho, era aquele que insistiu por anos e, quando conseguiu, inverteu a ordem das urgências, das necessidades e dos desejos. Ele representava a única possibilidade, mesmo que eu dissesse que não. Ele era uma espécie de beco sem saída. Um arremedo de felicidade que eu havia construído em minha própria vida, que dizia me amar e que, eu soube dias antes dessa última declaração, havia comido a dona Ester, síndica do nosso prédio. Puta que pariu!

Nada disso justificava, por mais que a consciência 2 se esmerasse em explicar à consciência 1, o motivo de seu afã em acabar com tudo aquilo. O mais certo seria pedir o divórcio. O mais óbvio, o mais rápido. Mas o divórcio não mata uma história. Não dá conta de decepar um nó górdio, não extirpa tumor nenhum de canto algum. O divórcio e a lei não bastam. E não inauguram um rompimento que, às vezes, mesmo que inexplicável, é a única possibilidade de uma vida e é o único desaguadouro legítimo de uma paixão. Um rompimento que requer uma tesoura afiada.

Que me dissessem e que eu acreditasse, antes daquele dia, não havia matado ninguém. Mas quando aconteceu, não parecia uma inauguração. Foi como se eu sempre soubesse o caminho, como se tivesse nascido para aquilo, como se sempre soubesse a melhor forma de executar o procedimento. Foi sem demora, sem volta e sem arrependimento. 

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