sexta-feira, 29 de abril de 2016

Crítica: Volúpia da Cegueira (teatro)


Após os momentos iniciais do espetáculo, em que atores exploram corpo, espaço, objetos e movimentos no palco, a luz se apaga e o teatro fica por alguns instantes imerso na escuridão. O tempo vai passando e nada acontece, apenas breu. O que percebo, na sequência, é certo zunzunzum: algumas pessoas da plateia falando, bem baixo, como se aquilo não fizesse parte da proposta, como se fosse um intervalo sem relevância a ser utilizado de qualquer maneira para que passe rápido. Entretanto, o propósito de Volúpia da Cegueira é exatamente trazer à tona as temáticas do ver e do não/ver, do sexo e da cegueira e das diferentes formas de lidar com isso.
Depois de um tempo, a voz da atriz ressoa, certeira: “Incomoda, né?”. Sim, acho que é difícil lidar com o escuro quando estamos em um lugar onde o que iremos fazer depende principalmente da visão: quem vai ao teatro, vai para ver uma peça, mesmo que outros sentidos e experiências estejam envolvidos. Parece haver uma primazia definitiva da visão. Além disso, nossa forma de lidar com o mundo, de apreendê-lo e de tentar conferir algum sentido a ele, é, no caso dos que têm a visão preservada, através do olhar.
‘Volúpia da Cegueira’, com texto de Daniel Porto e direção de Alexandre Lino, acaba de estrear no Teatro Municipal Maria Clara Machado, no Planetário, e traz quatro atores, entre eles dois deficientes visuais, que, no intuito de trabalhar exatamente essas temáticas, encarnam situações e personagens distribuídos em fragmentos e relatos, cujos dilemas giram em torno da cegueira e da sexualidade: desde uma mãe que descobre o filho, adolescente e cego, se masturbando no quarto, e não sabe o que fazer diante disso, até um casal em que o marido perde a visão e diz que, ao perdê-la, perdeu também sua virilidade, não aceitando a bengala que sua mulher compra.
Dando vida a esses personagens, Moira Braga, Aléssio Abdon, Felipe Rodrigues e Max Oliveira transitam por um palco com piso tátil que permite a movimentação dos atores que são deficientes visuais e, logo que entramos, eles já estão explorando o espaço e os objetos ali dispostos: uma banheira, bancos, uma cadeira e uma mesinha com dois copos cheios de líquidos distintos. É entre esses objetos e com auxílio dessas marcas que eles costuram esses fragmentos e promovem um diálogo de corpos e toques que salienta outras formas de relação e conhecimento de si e do mundo.
Alexandre Lino tem êxito em dirigir os atores nessa proposta corajosa que mistura visão e não-visão, imprimindo dinamismo, aproveitando o espaço e construindo belas cenas do ponto de vista imagético. O excelente trabalho de iluminação de Renato Machado tem um papel fundamental nessas imagens e no jogo entre o ver e o não-ver. Não resta dúvida de que se trata de um espetáculo cuja importância é exatamente trazer à tona temas que ainda são considerados como tabu e que encontram pouco lugar de debate na sociedade e na cultura, apesar dos constantes avanços em termos de leis e implementação de políticas de acessibilidade e de inclusão social.
No entanto, senti falta de personagens mais bem marcados e do desenvolvimento mais aprofundado de alguns dos fragmentos contidos no espetáculo. Os relatos vivenciados pelos quatro atores são bem interessantes, despertam a vontade de uma aproximação maior com as dificuldades narradas.
É exatamente por encontrarmos poucas oportunidades de debate cultural dos temas propostos por ‘Volúpia da Cegueira’ que, além de um inventário mais amplo dos problemas concernentes à visão e à falta dela, seria muito bem-vindo um mergulho maior em tais relatos e sua exploração mais apurada. Há cenas interessantíssimas, como a do já mencionado casal que deve lidar com a cegueira do marido e outra questão que ele levanta para a esposa: “até quando você vai aguentar cuidar de mim?”. Ou seja, como fica o casal quando um deles perde a visão?
Assim, são situações que já trazem em si um potencial significativo de conflito que poderiam ser mais bem desenvolvidas. Há muitos caminhos possíveis num espetáculo como esse, cujo conceito oportunamente trazido precisa ganhar ainda mais espaços de discussão na sociedade, e talvez um deles seja o de adentrar mais profundamente em algumas dos ricos dilemas trazidos pelos personagens.
FICHA TÉCNICA
Direção: Alexandre Lino
Texto: Daniel Porto
Elenco: Moira Braga, Aléssio Abdon, Felipe Rodrigues e Max Oliveira
Direção Musical: Alexandre Elias
Iluminação: Renato Machado
Cenário e Figurinos: Karlla De Luca
Direção de Movimento: Paula Feitosa
Design Gráfico: Guilherme Lopes Moura
Fotógrafo: Janderson Pires
Telas do cenário: Alexandre Elias
Assessória Jurídica: André Siqueira
Direção de Produção: Alexandre Lino
Produção Executiva: Daniel Porto
Assistente de Produção: Samuel Belo
Argumento e Idealização: Documental Cia
Realização: Cineteatro Produções
SERVIÇO:
Teatro Municipal Maria Clara Machado
Endereço: Av. Padre Leonel Franca, 240 – Gávea
Informações: (21) 2274-7722
Capacidade: 120 lugares
Temporada de: 07 de abril a 15 de maio
Dias e horários: de quinta a domingo, às 20h
Ingressos R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia)
Duração: 70 min
Classificação indicativa: 16 anos
Gênero: Drama

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