sexta-feira, 30 de outubro de 2009

o incomunicável

Rogério e Maria ficaram longo tempo, um perto do outro, sem nada dizer, sem nada olhar, ainda que os olhos não estivessem cerrados. No mesmo quarto, ele sobre a cama dela, ela na cadeira, às vezes mexendo numa ou noutra coisa, o computador milagrosamente desligado. Os ruídos que seus movimentos promoviam também eram quase inexistentes. E uma bolha parecia guardar aquele recinto, tornando-o auspicioso, de uma certa maneira. Aquele silêncio era quase o breu pelo qual Rogério ansiava. Ficar assim sem dizer nada era privilégio de poucos. Raridade que devia aproveitar ao máximo, tateando-a, conferindo-lhe concretude.
E se perguntava por que nadava para a corrente contrária àquela que a civilização inteira fatalmente buscava. Ele se sentia contra a civilização inteira e isso era um peso tão grande, mas tão grande, que apenas ficar deitado ali na cama, sem ter que nada dizer, poderia, muito talvez, trazer um certo e diminuto alívio. Muito talvez.
Por outro lado, pensou, de repente, sentindo a ardência que um tapa na cara pode provocar, mas agora oriundo, aquele ardor, do insight misterioso: achava-se um tanto quanto melhor e maior que tudo, não? Odiava quando seu pensamento zombava dele, quando seu pensamento exibia um meio sorriso de escárnio. Era uma parte de si que estava sendo sarcástica consigo mesmo, que ria igual hiena, enquanto a outra parte, ele todo, permanecia sério e bobo! E não podia negar absolutamente aquele pensamento de que se achar nadando contra a corrente de uma inteira civilização era sentir-se bom demais.

Quis comunicar aquilo tudo à irmã, que estava sentada de costas para ele. Quis dizer para ela o quão complexo era seu sentimento-pensamento. Quiz dizer-lhe o seguinte: a ambigüidade me povoa. Quis gritar-lhe: você já sentiu o paradoxo navegando dentro de você? Mas não sabia nem como nem por onde começar, apesar de todo aquele silêncio ser o momento mais propício às comunicações desordenadas. E, quando abriu a boca, foi para dizer:
- Maria, que horas são mesmo?

Um comentário:

MauriciodeAssis disse...

Se Rogério vivesse na China Medieval, naquele exato momento, ele teria criado um Koan! E, quem sabe, não teria alcançado o Chan (Zen)?
Longo e sinuoso é o hiato entre o fora e o dentro, entre a superfície e a profundidade, onde em muitas circunstâncias onde navega o paradoxo, ambas tornam-se indistinguíveis, porém, nunca comunicáveis.