quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

O que desejaria?

Era assim, ó:
- ela desejava, para o ano que viria, reencontrar um velho amigo que usava uma enorme barba, e desejava falar pra ele tudo o que não pudera falar nos tempos em que se encontravam sempre, e de quebra acariciar aquela barba, como há muito tempo não fazia, e dizer a ele que, se ela fosse homem, também usaria barba, assim como óculos escuros, e perguntar a ele o que ele usaria ou deixaria de usar se fosse mulher, e ouvir dele um 'depende' naquela voz macia e convicta (apesar de um 'depende') e, nesse caso de encontrá-lo, o que pretendia era fazer tudo diferente: não brigaria, não discutiria, não entraria em questões intermináveis, concordaria com tudo e, no caso de discordar, apenas discordaria, sem querer convencê-lo de quem tinha a razão e de quem era a espertalhona;
- ela desejava ir a um lugar onde nunca havia ido antes, talvez do outro lado do Oceano Atlântico, e dizer às pessoas algumas palavras em português que ela apreciava bastante, como 'sarapintado' ou 'trivial' ou 'pluvial' ou 'fluvial', elaborar frases inteiras se estivesse com fôlego como "o que é sarapintado nem sempre é trivial, mas talvez seja uma mistura bélica de fluvial com pluvial" e repetir devagarzinho para que os ouvidos estrangeiros pudessem ter a graça de entender: 'plu-vi-al'; poderia até mesmo dizer 'ronronar' ou então 'trapézio', e quem sabe "bagaceira", mas tudo dependeria da vontade do momento; cantaria também uma música dos Secos e Molhados que falava sobre o Amor (tendo ensaiado antes inclusive com seu ganzá e quem sabe seu pandeiro também), e a música dizia assim (e ela seria paciente e didática para explicar a quem não entendesse): 'leve como leve pluma muito leve leve pousa, muito leve leve pousa'... E as pessoas iriam gostar e iriam pedir para que repetisse ou para que continuasse e ela repetiria e continuaria com certeza: 'na simples e suave coisa, suave coisa nenhuma'; ficaria horas conversando com um gringo na língua em que inventassem sobre a ontologia da suave coisa nenhuma e, certamente,chegariam a múltiplas conclusões (era daquele tipo de conversa que ela gostava, afinal).
- e ela desejava algo mais: surpresas. De preferência boas. Pois parou pra pensar, fazendo uma retrospectiva menos espetacular que a da televisão, e de fato o ano que passara fora um ano de surpresas, boas e ruins. Talvez ela só tivesse focado as ruins e, assim, tivesse criado um juízo do ano: ano ruim. Ano merda. Ano puta que pariu. Ano cruz credo. Ano escrotidão. Ano palavrões todos juntos, emaranhados, enovelados, reverberando sem parar. Mas se ela tivesse prestado atenção nas adjacências das surpresinhas ruins, talvez encontrasse uma série de surpresas boas, às quais ela não havia dado a devida atenção.
- para o próximo ano ela almejava fazer uma nova receita e chamar todos os seus amigos para degustarem-na, mas, por outro lado, ela sabia que a nova casa onde iria morar e que estava esperando por ela ansiosa por acolhê-la não comportaria todos os amigos (e, no entanto, uma voz bem miudinha perguntava baixinho: se você fala de amigos, talvez a casa comporte); e ela desejava que todos os móveis coubessem em seus devidos lugares e que as ondas pluviais e sarapintadas de qualquer céu apenas servissem para deixar o clima um pouco mais ameno em janeiro e fevereiro, aqueles meses devastadores, vorazes, assustadores que vinham correndo saltando os obstáculos do caminho.
- ela desejava saltar na Riachuelo, atravessar a rua, enveredar pelo Lavradio, encontrar uma pessoa que não via há três anos e beber um cerveja, atualizando-se das novidades, e então levantar-se, encontrar a amiga na esquina da Gomes Freire com a Mem de Sá, ouvir música e dançar um pouco, fazer amizade com os filósofos rústicos de mais de trinta anos, sair dali para a rua de trás, esquivar-se dos ruins e almejar os imprescindíveis, dar a volta e cair no depósito, mas fugir dali rapidamente, para retornar ao outro lado, conversar um pouco mais, rir sem parar e pegar um ônibus de volta, caso já fossem seis da manhã.

Ora, ora, o que ela desejava para o ano vindouro? Nem ela sabia mais.

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