quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

ruídos

- Oi.
- Oi.
- E aí?
- E aí pergunto eu: e aí?
- Queria te ver...
- Ah, sim, era isso?
- E te ouvir...
- Sei.
- Te cheirar, talvez.
- Realmente, você não tem jeito.
- Te tocar, na verdade. Assim: - sua mão pousou delicadamente sobre a dela. Ela não retirou a sua. Apenas olhou o gesto e as duas mãos, estáticas. A sua estava fria. A dele, quente. Suas mãos costumavam ser frias. Era seu destino ter as mãos frias. Continuou olhando os dedos dele, até que a voz dele (que nada mudara) a retirou da pura percepção: - Tudo bem?
- Tudo indo.
- Comigo também.
- A gente se enrosca nos eventos da vida, né? Nos acontecimentos. Nas pessoas que aparecem a torto e a direito aqui, ali, lá, acolá, nas ruas paralelas, nas transversais, nas ladeiras e escadarias, na Tijuca, na Lapa e em Copacabana. A gente se enrodilha na multueira de coisas que vão acontecendo umas atrás das outras e vai vivendo. De repente, esqueci que você existe. Mas lembro toda tarde.
- Eu idem. Também me enrosco. E me enrodilho. E me confundo. É tanta coisa, né? Tanta imagem e tanta gente falando e tanta palavra que se ouve e tanto barulho de carro e buzina e guarda apitando... A vida é barulho. Mas não estarei mentindo se disser que também me recordo de você toda tarde, apesar de não saber mais muito bem de que luzes e sombras seu rosto é feito. A vida é barulho e eu esqueço as imagens.
- Eu prefiro o silêncio - ela opinou.
- Eu prefiro o inverno.
- Eu prefiro a solidão. Mas nem sempre.
- Nem sempre...
- Por onde você anda, afinal?
- Você nem queira saber...
- Mas, olha, tem certos momentos em que eu daria muito pra saber o que aconteceu com você após todos esses anos. Já se vão quantos? Seis?
- Quase seis anos.
- Mudou alguma coisa dentro de você nesse tempo? E aquela barba enorme com trança, você ainda a cultiva ou está aí por acaso? Quanto a mim, muito mudou e muito permaneceu. E não sei se o que mudou era o essencial a ser mudado. Mas sabe: não sou mais aquela de seis anos atrás. Ali eu era jovem e tinha mais vontade. Mais impulso. Não sou velha, e nem você. Mas eu era outra e esperava outras coisas. Outros pensamentos eu tinha, planos diferentes dos que tenho hoje, outro temperamento também. Você lembra como eu brigava? Ah, mas eu brigava... - tudo isso ela ia dizendo enquanto se perdia, enquanto percebia que não tinha o que dizer ou que o trajeto das palavras acertadas e assertivas tornava-se turvo e longínquo.
- Você é de câncer, né? Todo canceriano é meio arretado. De alguma forma, tantas brigas nos separaram, mas gosto de você até hoje e rio daquelas brigas quando, à tarde, naquele momento diário que não existe bem, me recordo de alguma particularidade sua. Você sabe disso. Você leu isso.
- Eu talvez tenha lido isso em você, mas já faz tempo. E as páginas viram. Os livros a gente dá, porque é feio guardar pra sempre - ela concluía. -  A vida é barulho e eu esqueço as palavras.

3 comentários:

MauriciodeAssis disse...

Solidão com palavras soltas... muito nostálgica a necessidade de se desprender de fragmentos emocionais que vem e vão contra a nossa vontade e os nosso afetos e desafetos... mãos frias com luvas e luvas e luvas não se acalentam mais...

Jana Tavares disse...

"A gente se enrosca nos eventos da vida, né?"

Achei a frase perfeita para o (meu)momento!

nuito bom!

danielle schlossarek disse...

É mesmo. O parágrafo que inicia com "a gente se enrosca nos eventos da vida..." é totalmente representativo da nossa geração. É exatamente assim que a gente vive.