quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

o final

Todo final era nauseabundo. De uma certa forma. De todas as formas possíveis. Todo final era violento. Camila estava deitada em sua cama, olhando para o teto. Naquele penúltimo dia de ano, decidiu que o melhor era não se mexer. Ou não se mexer muito. Mais ou menos como os jainistas, que andam devagarzinho-devagarzinho pra não pisar nas formigas que porventura aparecessem pelo caminho.

No que Camila não queria pisar? Em muitas coisas talvez. Em nada. O chão de seu quarto era o seguinte: sandálias espalhadas, uma almofada, um saco plástico com as roupas que comprara na véspera, um outro saco plástico com um celular que o pai havia dado há dois anos e ao qual ela não havia dado a mínima bola, um cortador de unhas, a calça que usara três dias atrás e que jurara que ia colocar para lavar. Formigas, não havia nenhuma, ao que soubesse. Mas ela ficaria lá, pois a náusea crescia dentro das suas partes internas. Quanto às partes externos - epiderme, talvez? - ela sentia um calafrio de vez em quando percorrendo a extensão dos braços.

Camila pensou: amanhã é trinta e um de dezembro. Está acabando.
Estará acabado. E foi rápido. Ligeiro. Lépido. Fagueiro. Tudo bem, depois de amanhã recomeça. Começa outra coisa, embora muitos achem que tudo é uma grande e absurda continuidade, tudo se trata de um dia após o outro. Mas Camila sentia diferente e continuaria imóvel pelo resto do dia se precisasse. Porque algo acabava e ela não sabia o que viria a partir daí. Um ano que acaba não é pouca coisa. Um ano é um conceito. Um conceito que contém muitos outros, enormidade de elementos muito bem identificados (alguns) e absurdamente vagos (tantos outros), todos fundamentais. Espécie de conjunto fechado. E as interseções são apenas as lembranças de outros anos, se é que havia aquilo de interseção - e se é que poderia representar por símbolos um ano inteirinho que passa e que, quer se queira, quer não, chega ao seu final.

A prima bateu na porta do quarto: tudo bem aí? Camila, com esforço, juntou todo o ar que cabia em si, e respondeu, com a voz fraca: tudo! Mas ela não disse 'tudo bem', ela disse tudo. E a continuação podia ser toda e qualquer uma. Tudo acaba um dia. Tudo indo. Tudo mal. Tudo imóvel. Tudo se volta para o teto branco. Tudo tem que recomeçar. Tudo faz parte do que está ausente. Tudo que sobe desce. Tudo que entra sai. Tudo tudinho mesmo. Tudo o que eu queria é que hoje não fosse hoje. Ela então sentia as mãos geladas e o suor aumentou. Porque quando pensava que hoje era um dos últimos dias do ano e que, se o ano fosse uma ampulheta, a areia do compartimento superior (o ano atual) estaria já no seu finalzinho, como um prazo que está correndo e que vai acabar e que fará muita coisa dar errado inevitavelmente, quando pensava nessas coisas todas, era desmaio inevitável o que vinha a seguir.

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