domingo, 6 de dezembro de 2009

Até quando?

O Carlinhos foi recolher a louça e passar um pano na mesa 4 e deu de cara com aquele papel dobrado com minúcia e zelo. Olhou para os lados, ressabiado. Não parecia lixo. Alguém esquecera um documento. Olhou para os lados, ressabiado. Recolheu o papel e levou a louça para a cozinha. Na volta, foi atender a mal-humorada da mesa 8, que queria agora um bolo de laranja. Olhou para os lados, ressabiado. Meteu o papel no bolso, curioso, ansioso. Levou o bolo de laranja. Aturou as grosserias. Quis meter-lhe a mão na cara, estapear aquela velha, espalhar suas rugas pelo chão inteiro do café, distribuir sua idade mal-amada por todos os cantos do lugar e destroçá-la em pedacinhos diminutos, para, no final das contas, ser aplaudido de pé e ruidosamente. Olhou para os lados, ressabiado. Sentiu o volume do papel apalpando a calça na altura do bolso. O casal da mesa 1 pediu a conta. Olhou para os lados, ressabiado. Queria superfaturar aquela conta e levar uns quinze reais pra casa. Lembrou de Joana. Grávida de seis meses. Vinte anos. Lembrou de seu salário, sua família, seu futuro. Olhou para os lados, ressabiado. Por que ela não tirara a criança? E aquele papel, dobrado em seu bolso? Pediu a conta da mesa 1 para o Orlando e depois levou para o casal, que contou moedinhas, e ele teve vontade de ajudá-los com seu ordenado. O casal se levantou decente e a coroa da mesa 8 fez novo sinal. Olhou para os lados, ressabiado. Não queria ouvir a voz da coroa chata mas foi até ela, respirando fundo, ressabiado. Desconfiado. Mal-humorado, ele também. Queria retorcer aquela voz e arrebentá-la de um puxão, dar um soco naquele nariz proeminente e espirrar sangue para todos os lados, ressabiado. Ser ovacionado. Foi até ela. A mulher tinha a voz rouca, remela nos olhos, gorduras sobrando. Reclamou do bolo. Reclamou do café. Reclamou do atendimento. Reclamou da vida. Ele escutou, afastou-se, fechou as mãos com força, foi até a mesa 5, anotou os pedidos, voltou, foi novamente chamado, escutou os clientes, levou café, levou chá, levou coca-cola, levou pão de queijo, levou torradas, levou a conta, olhou para os lados ressabiado, sentiu o papel no bolso, coçou a cabeça, riu com o Orlando de um cara engraçado que lia um livro no canto do café, levou mais contas e mais cafés e distribuiu mais tapas nos chatos que o perseguiam, ressabiado, encafifado, irritado, engajado em reprimir o seu mal-humor, e no dia seguinte também, acordando cedo, pensando em Joana, pensando no filho, pensando na vida, levando cafés, limpando mesas, aturando grosserias, todos os dias, e no fim do mês o salário, e ele então lembrou que esquecera um bilhete dobrado no bolso da calça (que Carlinhos só lavava de quinze em quinze dias ou mais para economizar sabão em pó), abriu-o no ônibus no caminho para o café na Zona Sul, pela longa trilha de uma hora e meia da Av. Brasil, olhou para os lados, ressabiado, e todos dormiam, menos ele, quando então pôde ler: 'Até quando as coisas vão continuar como estão?'. E ele já não sabia mais se fora outra pessoa ou se fora ele mesmo que escrevera aquele bilhete, ressabiado.

2 comentários:

danielle schlossarek disse...

estou adorando a continuidade dos destinos dos bilhetes e, em especial, na forma os personagens estão sendo construídos. Percebi que este post é mais focado no novo personagem criado e não no bilhete encontrado por ele. Mudar o foco (do bilhete para o segundo personagem) sem perder a linearidade da história foi uma solução ótima, com certeza.

Sama disse...

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