quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Outras coisas

Era um cacto e não era deserto, era sol e não fazia calor, éramos três pessoas caminhando solitárias e havia companhia, eram nuvens também, era um dia depois do outro trazendo um dia depois do outro, eram dias e dias seguidos uns dos outros, eram dias de mãos dadas que já nem se olhavam mais.
Eu enveredava pelo suor do cacto, imaginando como seria para um cacto suar. Eu enveredava pela lógica do sono imaginando como era penoso para o sono acordar. Eu enveredava pela estrutura da letra tentando entender o que ela fazia no mundo, a letra, qualquer letra, todas as letras, o que elas compunham, além do cacto, além do sol, além das nuvens, além de dias desérticos, além de dunas e areias, "isto não é um cachimbo" e isto aqui também não é uma letra.
Éramos três pessoas caminhando de olhos bem abertos e pestanas bem fechadas e sobrancelhas estritamente arqueadas e não falávamos mais nada do que se pudesse ouvir, sussurrar também não sussurrávamos, mas nos enroscávamos em nossas próprias digressões, fiéis que éramos ao nosso estar conosco mesmos, e éramos felizes em meio a toda a nossa tristeza que se acumulava há décadas. Era uma tristeza de décadas que não cabia em si.
Era um dia depois do outro, um passo seguido de outro, uma paisagem dando lugar a outra, eram outros os nossos eus que ali estavam, era outra coisa o que queria relatar, mas enveredei por isso mesmo e agora não me largo mais daqui.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Quanto ao ofício da vida, o que dizer?

Ando questionando o ofício, qualquer que seja, porque não perco essa mania do ponto de interrogação.

(Se cada frase na minha cabeça mudasse a pontuação, a vida teria mais claridades. Claridades como Clara Nunes e Clarice Lispector e clara de ovo com sal. Mas no final de cada frase na minha cabeça, constante mesmo é a interrogação, antes intercalada com dez exclamações. Ou grito ou pergunto. Preciso aprender a sussurrar...)

Ando questionando o ofício, uns ofícios, tais ou quais ofícios, ofícios quaisquer e quantos. O do médico, o do psicanalista, o do engenheiro, o do gatinho doméstico com ração à espera. O ofício de ser gato não é lá dos mais difíceis, mas só sendo gato pra saber. Ando questionando o ofício de escrever, de desenhar, de pintar, de datilografar, de costurar uma blusa. E o ofício de viver é aquele maior, de onde resultam todos os outros. Sendo que também é a fonte de todas as questões, enquanto no final de cada frase minha vier o ponto de interrogação mais redondinho do que nunca.

(Se cada frase minha fosse escrita em letras menores do que as minúsculas e privilegiassem as reticências, mas as reticências brandas, não as reticências duvidosas e angustiantes, minha vida teria mais claridades...)

O que dizer do porquê da vida? Há muitos ofícios e muitas pontuações. E quanto a este, que comentários posso ter e que frases posso formular? Com que pontuação no final de tudo?