terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Livro: Caralho A4, de Sara Victoria


“Difícil é competir com a realidade”. Esta é a frase de Sara Victoria que abre o Caralho A4, livreto cujo texto é ladeado pelas ilustrações da própria autora. Sara nasceu em Berlim, na então Alemanha Oriental, e veio para Salvador, onde se fixou, depois de passar por Londres e São Paulo. É artista plástica, e Caralho A4 é sua estreia literária. Aliás, o livro, enquanto objeto que se pega na mão, se toca e se manuseia, já é interessantíssimo por si só. Pertence à coleção Cartas Bahianas, é do tamanho e formato de um envelope, e sua capa é vermelhíssima. Foi lançado em 2014, em Salvador, pela P55 Edições e é um convite à leitura, pelo menos para quem gosta de livros de bolso, como eu, que os prefiro mil vezes a qualquer belíssimo e lustroso livro de capa dura.
Os contos que Sara nos apresenta são mesmo árduos, quase tanto quanto a realidade, e pode-se dizer que têm em comum com ela, a realidade, certo aniquilamento existencial e psíquico diante de uma vida que se parte em restos. Essas narrativas curtas são árduas sim, mas não deixam de ser engraçadas e surpreendentes a um só tempo, porque se a realidade sempre está no pódio ocupando os três lugares, ela também faz rir e surpreende. É absurda, irônica e hilária, ainda que aniquiladora. Portanto, Caralho A4 é um livro leve, e nisso ganha da realidade, ouso dizer.
O tema do resto e a presença do cigarro são uma constante nesse opúsculo carmesim. O primeiro conto, o genial ‘O Cara vale’, trata exatamente de um resto de vida e do valor dos restos fisiológicos, bioquímicos e físicos, digamos assim, do corpo humano. O protagonista que nos guia em sua saga parece estar nas últimas de si mesmo. Ele é o resto em si, o puro resto, o arquétipo que condensa todas as sensações que poderiam ser ligadas a esse conceito vago e sofrível. “Sentindo-se um resto de ser, com resto de café, resto de cigarro, deparava-se com um resto de jornal”. O jornal aos restos que o Cara encontra largado traz boas novas: então algumas enzimas suas podem valer dinheiro? Há substâncias biológicas que circulam em seu corpo que podem ser traduzidos em valor monetário? Talvez haja uma solução no fim desse tão comprido túnel, e ele, o Cara, corre atrás dela, entusiasmado, alcançando insights em cascata em seu percurso até a clínica que pesquisa as enzimas através de testes e mais testes. Esse protagonista que espera recuperar sua vida vai imaginando seu valor no corpo: “Temos um preço, viva a ciência!”.
É possível dizer que esse primeiro conto, com sua veia de humor e desespero (aliás, um humor que só é passível de caber no desespero, e cuja função precípua é afrouxar a camada de espinhos que todo desespero contém), é uma espécie de crônica dos nossos tempos: a vida difícil e sem sentido que muitas vezes levamos (tão próxima à vida nua, de que nos fala Agamben, em seuHomo Sacer), uma vida que só adquire significado através de um preço, o qual, por sua vez, está diretamente relacionado à ciência, ao concreto, àquilo que se toca, que se mede, que se pode decupar em números e unidades, que se pode catalogar em manuais fáceis de ler e, de preferência, resumidos, poucas páginas, poucas linhas, texto em formato de lista. E, mais ainda, o valor que confere sentido à vida-resto que levamos, que o Cara leva, ele, seu cigarro e seu jornal, é dado pela medicina, pelo saber médico, sem simbolismo algum. Há trechos brilhantes especificamente sobre esse ponto: “Até que chegou a hora dos resultados. Estava feliz. Saberia finalmente o seu valor exato, tabelado por uma junta médica da mais alta competência.” O motor que move o personagem e o faz correr atrás de alguma coisa é o dinheiro que seu corpo (ou as substâncias que ele produz) pode adquirir. Não é estranho? Ou já faz parte da normalidade? Ou estranha sou eu?
Para dar mais um exemplo específico da literatura de Sara Victoria, tenho de mencionar o quarto conto de Caralho A4. O texto, que ajuda a constituir essa unidade literária cujo mote é o miserê em que a alma humana às vezes se atola, traz um operário exausto que não se reconhece em sua família, seus filhos, sua casa. Há um estranhamento que o leva a se perguntar quem são aquelas pessoas ao seu redor, quem é aquela mulher que o recebe afetuosa, há um estranhamento que o faz abaixar a cabeça, na falta de reação melhor e de afeto recíproco. A narrativa, aqui, é permeada pelo incômodo como resultado do que encontramos de tão propriamente nosso refletido no outro. A mulher é um estranho familiar, tão próprio do Unheimlich freudiano. No texto traduzido para o português como O Estranho, Freud nos fala da estranheza familiar que encontramos no outro e que nos assusta, por ser um irreconhecível que nos pertence, que é tão inequivocamente nosso, um irreconhecível que seria reconhecível se não fosse tão assustador. O personagem de Sara Victoria não sabe mais quem é essa mulher com quem divide a vida, a família, a casa e os filhos, essa mulher que engordou tanto e que pode ter se tornado outra pessoa. Mas, à medida em que se torna outra, ela acaba por indicar a possibilidade de que ele já não seja mais o mesmo. A mulher é um índice do que ele pode ter se tornado, tão ele, tão outro. “Toda a poeira da casa começava a se incrustar em mim. Será que hoje me pareço com eles?”, é o que se pergunta, desolado, enojado, o protagonista.
Eu dizia, à guisa de conclusão, que o cigarro é uma constante nos contos de Caralho A4, junto com a temática do resto. Sim, o cigarro está sempre presente, sobretudo fechando algumas das histórias. Ele é frequentemente uma solução, uma companhia ou o galho que nos impedirá de afundar entre as mágoas guardadas e a vida que nos pertence mas que não mais reconhecemos como nossa. Deve ser por conta desse miserê, da realidade sempre ganhadora (e avassaladora), do vazio que emoldura o território sobre o qual caminhamos, e também por conta de certos inventários que por vezes fazemos de nossas vidas e que levam a frustrações frequentes, deve ser por conta desses elementos, distribuídos pelo livro com ironia e humor, que o cigarro está sempre perto. Ao alcance da mão ou como objeto a ser procurado na vizinhança. O cigarro que sempre fumamos, que nunca havíamos fumado e que iremos, por que não?, acender pela primeira vez. Resumo da ópera: leiam Caralho A4. Dói absolutamente menos do que a realidade.

Livro: Enquanto nossos meninos dormem, de Renato Lemos


Enquanto nossos meninos dormem, lançado pela Editora Oito e meio em 2015, é genial. Essa é a palavra que, a meu ver, melhor o define. Renato Lemos, estreando em livro de contos, estava inspirado quando os escreveu.
O livro reúne histórias cujos protagonistas, em sua maioria homens descasados, tentando aproximações às vezes desajeitadas com os filhos, as filhas, que metem os pés pelas mãos com frequência, carregam um quê de cinismo e olhar aguçado da vida e de si. E é por isso que são textos que fazem rir. Ou sorrir largamente. São personagens que se assumem enquanto cínicos e frágeis, se envolvem em situações complicadas e nem sempre conseguem sair delas facilmente. Os diálogos têm a medida certa e são muito bem-feitos, o que é outro mérito que se pode apontar na obra.
Assim, temos por exemplo o personagem que é servidor público de cartório e que está sendo investigado em esquema de ilicitude. Ele é condenado a certo opróbrio dentro do próprio trabalho, os colegas, em sua maioria, abaixam a cabeça quando ele passa (isso quando não acontece de passarem à agressão verbal), os policiais querem que ele entregue mais informações do que ele diz ter, tudo conspira contra ele. No entanto, em meio a essa crise pessoal e pública, da qual ele tenta poupar sua mulher, o personagem não economizará esforços para proteger o enteado de um bullying violento que o menino vem sofrendo no colégio.
Com a máscara de carnaval da Dilma Rousseff, é capaz de dar uma lição a quem está direta ou indiretamente envolvido no esquema de constrangimento diário a que é submetido o filho de sua esposa. Ou, então, em outro conto, temos um homem cujo pai começa a mostrar os sinais de uma demência que coloca muitas memórias em risco, mas não aquela que consagra a um lugar especial, único e incomparável em termos de beleza, certa região muito particular do corpo de sua mãe.
Algumas homenagens literárias também compõem essa obra, como a William Blake e Adélia Prado, mas o penúltimo conto do livro traz a mais engraçada e brilhante homenagem: a que Renato Lemos faz a Rubem Fonseca. O conto, cujo título já começa muito bem, No cu, pardal (ou o amor segundo Rubem Fonseca), temos um personagem absolutamente obcecado pelo romancista, um advogado que também se permite suas aventuras literárias e que acalenta o sonho de se tornar reconhecido por sua criação ficcional, a qual deseja imensamente compartilhar com seu ídolo. Mas todo amor e toda devoção podem também se transformar em ódio, e o final de No cu, pardal é absolutamente sensacional. Aliás, este conto e Adélia Prado fecham com chave de ouro essa obra que merece destaque entre os lançamentos nacionais mais recentes.
Enfim, os doze contos de Enquanto nossos meninos dormem são dinâmicos e seus personagens são interessantíssimos. Não há enrolação no que eles têm a nos dizer. Os personagens vão diretamente ao ponto, não seguem o ideário politicamente correto que, por vezes, corrói as nossas vidas e a liberdade de pensamento. E, acima de tudo, trata-se de personagens que vão tentando seguir em frente, aos trancos e barrancos, um passo depois do outro, deslize atrás de deslize.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Por que assistir a Táxi Teerã, do iraniano Jafar Panahi?


O novo filme do diretor iraniano Jafar Panahi (O Balão BrancoCortinas Fechadas) é um emblema de como criar estratégias para dar continuidade àquilo que deve ser feito, mesmo que uma proibição estapafúrdia o queira impedir.
Panahi, condenado à censura em seu país, primeiro não pôde filmar e sair de casa. Havia contornado o problema filmando Isto não é um filme (2011), que tematizava exatamente o impedimento de uma potência de vida, muito mais forte por conter a proibição da própria vida somada à proibição da criação que, neste caso, é o único ofício de um homem, o sentido de sua vida. Proíba um escritor de escrever, proíba um desenhista de desenhar, proíba um cuidador de cuidar, proíba qualquer pessoa de falar, e veja o que acontece. Proíba um cineasta de fazer filmes e ele fará Isto não é um filme, como é o caso de Panahi, que, com isso, conseguiu veicular sua história para além das fronteiras rígidas de seu país.
Com Táxi, ele pode sair, circular, interagir, ver a cidade, retomar os percursos de vida que qualquer um tem a cumprir (e quer cumprir), e aproveita para criar um filme interessante, que se apresenta como um documentário, inicialmente, para, não muito depois, mostrar-se novamente um filme metalingüístico que coloca em questão sua definição, mas que, em aliança com o espectador, define-se claramente como ficção. Uma singular ficção.
Assim, o diretor improvisa um táxi e, pelas ruas de Teerã, vai pegando passageiros aleatórios para, na seqüência, transportar pessoas conhecidas. São encontros interessantes, rápidos e cômicos. São encontros fortuitos plenos de mensagens, com referências a filmes do próprio autor e a dilemas do país.
Uma discussão política, um vendedor de filmes piratas que questiona o próprio filme em que é personagem (real ou fictício?), um acidente e a quase-morte, mulheres absurdas transportando um aquário caricato com dois peixes, mulheres essas que devem cumprir um determinado ritual que, se não for realizado, pode significar a morte de ambas (referência a O Balão Branco). E uma mulher bonita, advogada, que carrega flores bonitas para outras mulheres, presas por tentarem ir a um estádio. Antes de partir, ela deixa uma rosa no táxi de Panahi e a dedica a todas as pessoas que amam cinema. A rosa, a partir daí, vira a moldura da tela no itinerário final do táxi-filme, cuja câmera volta-se para as ruas que estão sendo percorridas, mostrando agora a visão do motorista.
Nesses caminhos percorridos pela câmera, Panahi levanta alguns problemas essenciais: a censura na criação de filmes no país (que representa a censura em todos os outros âmbitos da expressão e da comunicação humanas), a situação das mulheres iranianas, a excessiva e adoecedora crença religiosa, as proibições que assolam o país, as punições direcionadas àqueles que burlam as regras e as formas que são encontradas para delas (das proibições) escapar, quais sejam: greve de fome, filme no táxi, venda de filmes piratas e por aí vai.
Desse modo, o filme mostra, sem precisar escancarar sua temática, a questão básica da ausência de liberdade. E que diante de uma ausência maior de liberdade política e coletiva, é a liberdade interior, de pensamento e de afetos, de sua expressão, da fabricação de subterfúgios que propiciem sua veiculação, é justo essa liberdade interior o que pode construir microcosmos de pequenas liberdades que permitem que a vida se sustente tolerável entre uma proibição e outra. Que se sustente, acima de tudo, vivível.
E é por essas razões e pela veia política de Panahi, uma marca que acompanha o diretor há algum tempo, que devemos assistir a esse interessantíssimo Táxi Teerã, que levou o Urso de Ouro no último Festival de Berlim. E também por sua cena final, que enfatiza o fato assustador de que a liberdade de expressão é sempre algo que se pode perder quando menos se espera, em qualquer lugar, quando nem se pode imaginar, e não apenas no Irã. Talvez pudéssemos pensar que a perda iminente da liberdade seja um aspecto inerente ao conceito geral de liberdade. Liberdade é aquilo que sempre pode nos ser tirado.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Filme: o excelente 45 anos


Andrew Haigh, diretor e roteirista britânico de 45 anos, retrata com paciência o dia a dia da semana que precede a festa de comemoração dos 45 anos de casamento de Kate (Charlotte Hampling) e Geoff (Tom Courtenay). Tudo começa bem e rotineiro: caminhadas com o cachorro, a rotina dos remédios, idas à cidade, compras, mas uma carta muda a vida do casal. Geoff recebe a notícia de que uma antiga namorada, morta em acidente nos Alpes suíços, tem seu corpo congelado redescoberto. Geoff tem a opção de ir à Suíça ver o corpo, desaparecido há mais de 45 anos. Tudo o que ressurge a partir da carta e a mudança visível no jeito como Geoff leva a vida – como se ele também tivesse sido redescoberto ou pudesse finalmente, e por gosto, redescobrir-se – é que poderá se tornar um divisor de águas do relacionamento nessa semana tão crucial para o casal.
Muitas perguntas são suscitadas por esse mote: há 45 anos Geoff convive com essa lembrança paralela à vida compartilhada do casal ou ela foi desenterrada só agora de algum escaninho empoeirado de sua memória, como um doente acamado que sai do coma e volta à vida querendo recuperar todo o tempo perdido? Os segredos que Geoff mantêm escondidos de Kate (e que ela vai aos poucos, silenciosamente, descobrindo) seriam uma traição? Talvez Geoff nunca tenha saído ou flertado com uma mulher durante dos 45 anos de relacionamento com Kate, mas o que cultivou em relação à Katya, a moça morta que se torna idealizada desde então? Kate, como atual esposa e viva, está sempre à sombra da primeira mulher amada, morta? E, finalmente, Kate está comemorando exatamente o quê nessa festa de 45 anos? Se era certa, anteriormente, que se tratava de uma celebração da vida a dois, de um percurso significativo de companheirismo e amor, agora já não podemos ter certeza, Kate já não pode estar segura em relação a isso.
Há, além de tudo, a expectativa dos amigos em relação à festa, ao discurso de Geoff e às emoções que ele deixará ou não visíveis. A amiga de Kate a relembra o tempo todo das lágrimas de seu marido na festa de 40 anos e está convicta de que o mesmo ocorrerá com Geoff, porque os homens acabam sendo os primeiros a se emocionarem, segundo ela.
Alguns spoilers daqui em diante
O que Kate vai percebendo, sem, no entanto, ter coragem de expressar verbalmente ao marido, é que tudo o que eles não tiveram (e as escolhas que fizeram a dois nesse percurso de quase 50 anos), pode ser fruto das escolhas anteriores de Geoff com Katya. Afinal, Kate se dá conta de que eles não têm fotografias dos momentos marcantes ou cotidianos de suas vidas, mas no sótão da casa descobre as fotos que ele tirou, incansavelmente, de Katya. A quantidade de fotos que ela descobre denunciam quase a sacralização (ou devoção) de Geoff em relação à mulher morta. Mas por que será que Geoff nunca se preocupou em tirar fotos de Kate?
Além disso, Katya aparece grávida em uma delas, e Kate nunca poderá ter certeza (mas a probabilidade é grande) de que o filho seja de Geoff. Um filho que nunca nasceu e que talvez esteja congelado com Katya nas montanhas geladas da Suíça. E, finalmente, um detalhe que não é mencionado no filme mas que fica como mais um indicativo de que uma está à sombra da outra, e que tudo na vida do casal é secundário ao breve relacionamento anterior e de trágico final: trata-se da semelhança de nomes entre as duas. Katya é a primeira amada, idealizada, jovem, congelada, desaparecida, mãe de um filho de Geoff. Kate é a segunda, atual, viva, companheira, sem filhos, que zela por sua saúde e que quer brindar a vida a dois.
Trata-se de um filme excepcional, que permite o acompanhamento das minúcias a vida desse casal e das mudanças ínfimas, mas significativas, na percepção que um tem do outro.
O casal de atores britânicos foi premiado com as melhores interpretações do último Festivalde Berlim, o que de fato é merecido. Charlotte Hampling consegue se manter sua personagem em uma periclitante posição que mescla contenção de emoções, ciúme que mal consegue disfarçar e uma crescente insegurança. Já Tom Courtenay consegue manter seu personagem vago em relação ao que sente atualmente em relação às suas memórias, àquilo que viveu com  Katya e a sua consideração face à atual mulher.
Para um final tenso, em que não se sabe a que se devem as lágrimas do marido no discurso da mulher: ele de fato ama Kate (é o que provavelmente ela se pergunta, e que talvez já tenha certeza de que não), e chora por isso, por esse amor, ou chora pela saudade e por tudo o que viveu com Katya, há 45 anos? Qual é o significado dessa festa para cada um deles, Geoff e Kate? Luto ou renovação dos votos?

manejos sutis de mínimos brilhos

e é uma pena que as pessoas não percebam os manejos sutis (de mínimos brilhos) dos processos de privatização que assolam todos os âmbitos dessa nossa vida coletiva. não percebem que as Organizações Sociais (vulgo OS) e as terceirizações no serviço público são maneiras de privatizá-lo que avançam pelas beiradas, pelas bordas, pelos cantos, como quem não quer queimar a língua ao comer o mingau da tarde, e é sempre assim como quem não quer nada, e com os piores dos argumentos, sobretudo aqueles que usam a população. e a população - eu, tu, ele, nós, vós, eles - reforça inocentemente toda essa prática sonsa dizendo que a UPA de perto de casa sempre funcionou muito bem e não tem do que se queixar ou de que a Clínica da Família está funcionando. não sabem da rotatividade de funcionários porque, mesmo ganhando mais, é uma merda trabalhar pelos contratos das OS que administram as contratações dessas clínicas. a saúde do trabalhador que tem contrato nesses cantos vai pro brejo e ninguém vê. e é um pena que no serviço público, mesmo sem privatização direta e voraz, é definitivamente uma pena que as pessoas cada vez mais se comportem com a lógica das empresas, porque têm medo de falar e porque são manipuladas. o medo é tão explícito que dói nos olhos de quem vê. minha vista fica cansada antes dos quarenta. e as pessoas, muitas, muitas, muitas, não entendem que a estabilidade de um servidor público serve para evitar perseguições e a perseguição se faz por qualquer razão e acontece. é uma pena que ainda haja quem defenda qualquer tipo de serviço privatizado ou os cegos e surdos (quem dera fossem mudos) que nada enxergam, e é exatamente por isso tudo que fiquei tão feliz com essa notícia de que a UFRJ está montando grupos de trabalho para discutir a tragédia de Mariana e adjacências, isto é: a tragédia do Brasil. é a universidade pública, não privatizada mas com processos sorrateiros de privatização através de terceirizações impublicáveis, é exatamente ela que está tentando discutir a tragédia do Brasil

resumo de 2015

resumo: está todo mundo louco, todo mundo fala cuspindo de ódio, os perdigotos de saliva, quando se acumulam, ficam enormes e espessos e enormes e espessos, e impedem a visão, e a visão, quando distorcida, atrapalha a audição, a audição é muito mais leitura labial do que qualquer outra coisa, então a consequência lógica imediata de uma produção massiva de perdigotos de alta densidade é que, não, ninguém se vê e ninguém se escuta, e o som chega com ruídos.

solução: desligar a tevê, não comentar nenhum post no facebook, virar a cara para qualquer capa de revista jornal tablóide, sorrir sempre, dizer 'obrigado', 'por favor', 'deus lhe pague', sorrir muito e largamente mesmo que a cor do sorriso seja amarela, e sugere-se também colocar freshtears nos olhos para abrir os caminhos do enxergamento, e dormir bem, muito bem, no ar condicionado de preferência, com blecaute na janela e, se possível, bem mais do que oito horas, essa média de oito horas só pode ser invenção do capital que quer que você durma pouco para trabalhar muito, e que se sinta culpado caso tenha sono após oito horas de sono (quer um segredo de brinde? - oito horas é sempre pouco diante do esmagamento diário a que somos, nossos perdigotos e nossas vidas, submetidos, oito horas não dão conta da reciclagem existencial que eu tu ele carecemos diariamente), então durma durma durma bem mais do que oito horas, pelo menos dez, no mínimo doze, pouco sono aumenta a cegueira que aumenta a raiva que aumenta a surdez que aumenta a produção de saliva que aumenta o volume dos perdigotos que aumentam a probabilidade de ninguém se entender.

no mais: boa noite.

a lista de 2015


eu queria fazer uma lista, qualquer lista, que fosse dos dez melhores livros deste ano, mas não li dez livros inteiros e, se os li, seriam todos juntos os melhores, então talvez as dez melhores peças, quem sabe os dez melhores filmes, os dez melhores encontros ou os dez melhores reencontros de 2015, ou então as dez melhores notícias ou, por que não?, as dez melhores piadas. as dez melhores tardes de sábado, e dessas haveria muitas, ou quem sabe as dez perguntas que ficaram sem resposta. poderia ser uma lista das dez noites menos angustiantes ou os dez contos que eu gostaria de ter escrito. poderia ser uma lista das dez brigas mais contundentes, ou das dez discussões de ideias mais proveitosas. quem sabe os dez posts que mais me marcaram? os dez dias mais longos, as dez sextas-feiras mais empolgantes, as dez manhãs mais insuportáveis, quem sabe os dez momentos mais intrigantes vividos em 2015. eu queria fazer uma lista que condensasse o ano de coisas boas e inteligíveis, ou de coisas marcantes e incompreensíveis, uma lista que o resumisse pra mim de forma precisa, uma lista que tivessse a pretensão de me dizer o que sou, quem sou, quem não posso deixar de ser, uma lista que me definisse em 2015, e de forma clara, dicção perfeita, caligrafia irretocável. mas não dá, não consigo uma lista homogênea. fiz então uma lista que incluíam 15 coisas quaisquer, as 15 melhores quaisquer coisas de 2015, e entre elas havia filmes, peças, momentos, lançamentos, encontros, viagens, mas não seria justa, alguém ficaria de fora e eu me ressentiria com meu próprio esquecimento. se garimpasse na memória com rigor, talvez em outro momento encontrasse 15 outras quaisquer coisas. não, não há como condensar, então apaguei a lista e vou tomar um café. nada melhor do que tomar um café quando nos encontramos em um impasse irrisório, besta, desimportante.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Teatro: Marco Zero, de Neil Laboute



Neil Laboute é o autor desse Marco Zero, peça cuja história se passa em Nova Iorque, com pano de fundo do fatídico 11 de setembro de 2001. O elenco é composto por Tarik Puggina e Letícia Isnard, atores que fazem parte da premiada companhia Os Dezequilibrados e que vivem um casal em conflito, um casal que precisa tomar uma decisão e discutir sobre a sua vida a dois. Essa discussão, no entanto, se dá exatamente nesse dia que ficou marcado na história mundial e, sobretudo, na dos americanos. Não é um dia qualquer e há, no texto, um entrelaçamento entre o drama pessoal dos protagonistas e a tragédia que acomete o planeta. O cerne da questão são os rumos que se seguirão a partir dos impasses individuais e coletivos. É preciso pensar neles com cautela. A fraqueza humana, as escolhas anteriores, as futuras, o horror diante do que fazemos para nos defendermos de um sofrimento possível, tudo isso está em pauta. 

Laboute, no texto que nos é disponibilizado no programa da peça, diz que “Em Marco Zero (The Mercy Seat) estou tentando examinar o ‘marco zero’ de nossas vidas, aquele buraco em nós que tentamos tapar com roupas da GAP, (...) com bolsas de mão da Kate Spade”. Isso foi escrito em 2002 e talvez pudéssemos traduzir essas tampas e remendos para selfies nas redes sociais, fotos e mais fotos no instagram e overdose de afazeres alegres nas folgas e nos finais de semana. Em Marco Zero, há uma pergunta crucial, como nos aponta o autor: “Por que estamos tão dispostos a correr cem quilômetros pra fugir de simplesmente dizer a alguém, ‘eu não sei se te amo mais’?”.

O espetáculo, em cartaz no Teatro de Arena da Caixa Cultural, tem direção de Ivan Sugahara e co-direção de Simone Beghinni. A tradução é de Gustavo Klein e a idealização é de Tárik Puggina. Tárik vem pesquisando, desde 2010, textos e autores contemporâneos que tragam questionamentos sobre certos ‘ismos’, tais como o individualismo, o consumismo, o egoísmo. Seu personagem, Ben Harcourt, talvez seja um emblema de tal individualismo exacerbado em meio ao caos de um momento único e crítico da contemporaneidade.



O cenário, muito interessante, é um cômodo do apartamento da personagem vivida por Letícia Isnard. Aurora dos Campos consegue transpor para esse cômodo a devastação que parece ter tomado conta tanto da cidade quanto das vidas dos protagonistas, que não sabem mais o que fazer delas. A poeira que toma conta dos objetos e móveis, e que parece vir das explosões nas imediações, também lembram a máxima segundo a qual “varremos a poeira para debaixo do tapete”. Nesse caso, a poeira não cabe mais debaixo do tapete (e há um tapete mesmo no centro do cenário), ela escapa e recobre tudo. Há mais poeira do que todo o resto.

Letícia Isnard está ótima na interpretação de Abby Prescott, uma personagem que está cansada da própria vida e das mentiras que se vê obrigada a sustentar. Há alguns anos ela tem perguntas que não consegue formular, respostas que talvez tenha medo de ouvir, mas é justamente quando tudo vem abaixo (literalmente) que ela vai, com revolta e mágoa, colocando as cartas na mesa. Assim, o texto e o diálogo da peça vão crescendo, na medida em que vai ficando claro que relação é essa que os protagonistas mantêm e na medida também em que vai ficando clara a dinâmica que move seu relacionamento. 


FICHA TÉCNICA
Texto: Neil Labute
Tradução: Gustavo Klein
Direção: Ivan Sugahara
Co-direção: Simone Beghinni
Elenco: Leticia Isnard e Tárik Puggina
Direção de produção: Aline Mohamad
Produção executiva: Amora Xavier 
Cenário: Aurora dos Campos
Figurino: Flávio Souza
Direção musical: Rodrigo Lima
Iluminação: Paulo Cesar Medeiros
Fotos: Dalton Valério
Marketing Digital: Laura Limp
Projeto gráfico: Luciano Cian
Administração financeira: Amanda Cezarina
Realização: Nevaxca Produções
Idealização: Tárik Puggina

SERVIÇO
Temporada: 27 de novembro a 20 de dezembro
Local: Caixa Cultural Rio de Janeiro – Teatro de Arena (Av. Almirante Barroso, 25 - Centro)
Telefone: (21) 3980-3815
Horário: terça a domingo, às 19h. Em dezembro, sessão extra nos dias 12 e 19 (sábado), às 17h.
Ingressos: R$20,00
Gênero: Drama
Duração: 75 minutos
Capacidade: 170 lugares
Classificação: 16 anos
Bilheteria: a partir das 10h

Teatro: Mamãe, belíssimo espetáculo de Álamo Facó



Em uma ficha de 18 de julho de 1978, Roland Barthes escreveu: "A cada um seu ritmo de sofrimento". Algumas semanas mais tarde, escreveu o seguinte trecho, datado de 1 de agosto: "Horrível figura do luto: a acídia, a secura de coração: irritabilidade, impotência para amar. Angustiado porque não sei como recolocar a generosidade em minha vida - ou o amor. Como amar?". Esses curtíssimos excertos foram reunidos em um belo livro chamado Diário de Luto, que consiste em fichas que Barthes foi escrevendo, após a morte de sua mãe, Henriette Bingerem 25 de outubro de 1977. Os textos que compõem esse Diário ajudam a elaboração do luto vivido por Barthes, logrando colocar em palavras certas vivências dolorosas cujos ganchos com o léxico conhecido são às vezes frágeis, outras vezes, inexistentes.

Talvez se possa dizer que a peça Mamãe, interpretada por Álamo Facó, seja uma espécie de elaboração de luto ou de construção de ganchos com o sentido. O espetáculo, dirigido por ele em conjunto com César Augusto, é completo. E muito tocante.

O texto foi escrito a partir de um processo de criação que Álamo denominou de "A síntese do relevante", e nisso se assemelha muito às fichas escritas por Barthes após a morte de Henriette. Originou-se após o diagnóstico de tumor cerebral de sua mãe, Marpe Facó, e seu falecimento cem dias depois.


Álamo Facó vive ele mesmo, no papel de Lázaro, e sua mãe, que é Marta. A interpretação de alguns momentos cruciais dessa vivência de despedida, perda e dor é tão exata que podemos sentir o desespero que toma conta dos personagens, pontuado pelo humor possível em situações como essa. Se não fosse dar spoiler desses momentos, eu os descreveria, mas apenas mencionarei  aquele em que a personagem de Marta está com a consciência rebaixada e alterada, momento em que os pensamentos e a percepção da realidade são distorcidos e mesclados com ideias aparentemente sem sentido ou sem conexão imediata com o contexto ao redor. A excelência da interpretação de Álamo é tal que é como se estivesse guiando a nossa própria consciência (no que tem de volátil, imaterial e ilógica). De fato, lembra aquelas ocasiões em que estamos adormecendo, e um pé nosso está na vigília, o outro está avançando para o mundo onírico, e tudo se confunde.




A atuação de Álamo como Lázaro e como Marta está irretocável, assim como o cenário, de Bia Junqueira, que remete ao hospital em que Marta está internada e também ao quarto ou à casa de Lázaro. A trilha sonora, assinada por Álamo Facó e Rodrigo Marçal, é também excelente, assim como a direção de movimento/co-direção, de Luciana Brites, e a direção musical, de Rodrigo Marçal.

A peça é, portanto, um deleite em todos os sentidos: texto, direção, atuação, experiência estética e tudo o que movimenta em termos de emoções e reflexões no espectador, porque não há quem não tenha perdido um ente querido ou que tenha participado, de modo mais ou menos próximo, de uma perda vivida por alguém querido.


Acredito que essa belíssima Mamãe corrobora, de algum modo, aquilo que Barthes tenta compreender acerca dos sentimentos mobilizados pela perda de Henriette, sua mãe. Ele diz, em outro trecho de 1 de agosto de 1978: "Minha tristeza é inexprimível, mas, apesar de tudo, dizível. O próprio fato de que a língua me fornece a palavra 'intolerável' realiza, imediatamente, certa tolerância". A arte, arrisco, é aquilo que torna dizível o que periga se tornar intolerável.

Ficha Técnica
Texto e atuação: Álamo Facó
Direção: Álamo Facó e Cesar Augusto
Direção de produção: Carlos Grun
Direção de movimento/ co-direção: Luciana Brites
Direção Musical: Rodrigo Marçal
Cenário: Bia Junqueira
Luz: Felipe Lourenço
Trilha Sonora: Álamo Facó e Rodrigo Marçal
Direção Musical do Performer: Lan Lanh
Figurino: Ticiana Passos
Preparação Vocal: Sonia Dumont
Fotos: Julio Andrade e Miguel Pinheiro
Assessoria de Imprensa: Lu Nabuco Assessoria em Comunicação
Projeto gráfico: Mary Paz
Produção e Realização: Bem Legal Produções e Álamo Facó
Parceria: Sábios Projetos
Colaboração Artística: Dandara Guerra, Fernando Eiras, Remo Trajano, Julio Andrade, Tamara Barreto, Lidoka Martuscelli, Andrucha Waddington, Lully Villar, Marina Viana, Victor Garcia Peralta, Cristina Flores e Renato Linhares

SERVIÇO
Espetáculo:   MAMÃE
Local:  Espaço SESC – Sala Multiuso (Rua Domingos Ferreira, 160 – Copacabana/ RJ 25470156)
Texto e atuação: Álamo Facó
Categoria: Drama
Elenco: Álamo Facó
Estreia:  03 de dezembro
Temporada: de quinta a domingo até 20 de dezembro de 2015
Horário:  de quinta a sábado às 19h, domingo às 18h00 
Preço: R$ 20,00; e R$ 5,00 associados SESC e R$ 10,00 estudantes e idosos
Bilheteria: terça a domingo das 15hs às 21hs
Duração: 70min

Classificação:  12 anos

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Teatro: Hilda e Freud


Começo com uma advertência: não é fácil fazer esse texto sobre a peça Hilda e Freud abdicando-me totalmente da minha condição de psicanalista. Minha apreciação (e a emoção que senti em alguns específicos momentos da peça) está completamente ligada ao fato de ser analista, de me identificar com Freud (uau!) aqui e ali, em talvez compreender o sentido de certas palavras e certos impasses sutis pelo fato de ocupar o lugar de analista. Sim, me emocionei e me arrepiei e posso dizer que gostei muito.

Feita essa advertência, podemos começar. E, dessa vez, vou partes.

Trata-se, o tema da peça, da análise da poeta e escritora Hilda Doolittle com Freud, na época em que o nazismo começava a crescer perigosamente, momento também em que Freud já tinha criado e desenvolvido amplamente sua teoria psicanalítica e estava às voltas com a urgência de sair de Viena por causa das ameaças da guerra.

Assim, reitero que o tema de Hilda e Freud é muito interessante por diversas razões. Interessa a mim, pelo motivo já explicitado na advertência, mas creio que deve interessar a todos. Àqueles que fazem ou já fizeram análise ou outro tipo de terapia, mesmo a cognitivo-comportamental, ou a reichiana, ou a Gestalt, até para que indagações sejam despertadas sobre os diferentes tipos de processos terapêuticos e analíticos que podem existir. Não só por isso, mas pela temática humana que se propõe a contemplar, principalmente no que se refere à teoria da supermente que a personagem de Hilda tenta desenvolver, como se esse supermente fosse uma instância psíquica que não se aloja em nenhum lugar palpável e que explicaria a fonte da inspiração e da arte, a fonte da criatividade humana de modo geral.

O texto, do psicanalista Antonio Quinet, que também assina a direção junto com Regina Miranda, e que está contracenando com Bel Kutner no papel de Freud, é fantástico. Ao mesmo tempo em que nos coloca em contato com as ideias de Hilda Doolittle sobre sua vida e sobre a arte, é também didático ao falar de alguns dos conceitos básicos da psicanálise (como a transferência e a mudança na teoria freudiana das pulsões, para citar dois exemplos), sem contar as vinhetas clínicas de momentos cruciais de qualquer análise, muito bem pinçados e representados: o início (e todo o estranhamento que lhe é próprio e que deveria ser, imagino, ainda maior, sendo Freud o analista em questão, nem tão alto, nem tão jovem), o convite a deitar no divã, interpretações de sonhos, imagens e associações livres e o término (interminável?) dessa específica experiência analítica que foi a de Hilda no contexto perturbador do início de uma guerra.

A atuação de Bel Kutner, como Hilda, também é muito boa: é possível entender a dificuldade de ser quem era, com os conflitos existenciais próprios de uma poeta, de uma artista, e as inúmeras perdas que sofreu, sua relação afetiva com o irmão, morto na Primeira Grande Guerra, suas reflexões sobre a criação artística e sua agitada e corajosa vida amorosa. Hilda estava muito à frente de seu tempo naqueles dias dos anos 30 do século passado. Hilda estaria à frente de seu tempo se vivesse hoje, em plena era de redes sociais e poli-amor. A peça tem o mérito de instigar nossa curiosidade sobre essa personagem histórica do século XX.



O que há de problemático no espetáculo e que, se fosse modificado, talvez permitisse um melhor aproveitamento do texto naquilo que tem de beleza e sensibilidade é a atuação de Quinet, que, tudo bem, não é ator. É psicanalista e corajoso o suficiente para subir ao palco e contracenar. Mas não é ator, e o tempo todo nos lembramos disso. Suas falas, belíssimas no que se refere ao conteúdo, acabam ficando visivelmente automáticas e robotizadas quando ele as pronuncia. A beleza de seu conteúdo é ofuscada pela deficiência de sua forma. Eu, como estava fascinada pelo texto (conteúdo) e pelos fragmentos que de fato me emocionaram, consegui relevar essa falha. Mas o espectador que quer ver uma peça, que sai de casa querendo gostar e se surpreender e que talvez não seja nem tão exigente, esse espectador hipotético não-analista que espera um texto interessante e uma atuação à altura do texto, talvez não releve tanto e se incomode mais do que eu me incomodei. E assim, um texto ótimo acaba por perder um pouco do brilho que possui. Quinet poderia fazer outra escolha dramatúrgica, enquanto diretor, com o fito de valorizar o texto que tem em mãos e do qual é o autor: a escolha de outro ator que possa fazer o papel do pai da psicanálise.

Quanto ao cenário, clean, senti falta também de um divã verdadeiro, de uma poltrona verdadeira, de talvez uma escrivaninha com livros, escritos e algumas estatuetas que representassem o consultório onde Freud atendia seus pacientes. O recurso das projeções é belíssimo e poético, sobretudo quando concatenadas às falas de Hilda sobre suas teorias da mente. As imagens projetadas na parede branca não devem ser desperdiçadas, mas a ausência de alguns objetos no cenário, neste caso, também acabam por aproximar a peça mais de uma leitura dramática do que de uma dramaturgia mais complexa. Às vezes um cenário com decoração minimalista pode ser muito acertado, mas, neste caso, algo fica faltando e não é preenchido pelo texto e pelas projeções. E acredito que essa falta nada tem a ver com a falta de que a psicanálise tanto trata.

Finalmente, outro ponto que devo mencionar diz respeito ao teatro: a acústica, infelizmente, não é tão boa. A fala dos atores, quando viram de costas para a plateia, acaba por ser prejudicada. É difícil ouvir o que dizem, embora isso aconteça poucas vezes, felizmente. O som, nessas ocasiões, fica muito abafado. Consegui ouvir tudo, mas senti que o público se esforçava para não fazer nenhum movimento e preservar o silêncio absoluto, justamente porque a peça é muito interessante e ninguém queria perder uma fala ou outra por não conseguir escutar. Talvez os atores, enquanto a temporada for neste teatro, devam ter o cuidado de falar virados para o público, para que nada se perca.


De resto, recomendo vigorosamente, sobretudo para quem tem curiosidade com os assuntos ligados à psicodinâmica e às relações humanas. A temática é ótima, o texto é excelente, os personagens são maravilhosos e as falhas que mencionei apenas diminuem as qualidades inerentes à peça e são fáceis de modificar em uma próxima temporada. Enfim, levarei o programa da peça na minha próxima sessão de análise e recomendarei à minha analista.

FICHA TÉCNICA

Texto: Antonio Quinet
Elenco: Bel Kutner e Antonio Quinet
Direção: Antonio Quinet e Regina Miranda
Direção de arte e cenografia: Analu Prestes
Videocenografia: Mídias Organizadas
Iluminação: Fernanda Mantovani e Tiago Mantovani
Trilha Sonora: Regina Miranda sobre a obra de Rodolfo Caesar
Figurino: Beto de Abreu
Visagismo: Uirande Holanda
Preparação vocal: Rose Gonçalves
Fotografia: Flavio Colker
Programação visual: Mary Paz
Assessoria de imprensa: Lu Nabuco Assessoria em Comunicação
Comunicação em mídias sociais: Radha Barcelos
Direção de produção: Alice Cavalcante e Conrado Lima - Sábios Projetos
Assistência de produção: Luísa Reis e Marcio Vigna
Co-produção: Sábios Projetos e Atos e Divãs 
Realização: Cia Inconsciente em Cena 

  
Serviço
Espetáculo: Hilda e Freud
Estreia: 21 de novembro
Temporada até 20 de dezembro
Horário: Sábados, às 20h e domingos, às 19h
Local: Cidade das Artes – Sala Eletroacústica (Av. das Américas, 5300, Barra)
Bilheteria: ter a dom de 13h às 19h. Em dias de espetáculo de 13h até 30 min antes do início do espetáculo
Ingressos: R$60,00 (inteira) / R$30,00 (meia)
Duração: 60 minutos
Gênero: Drama
Classificação: 12 anos
Capacidade do Teatro: 80 lugares

segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Teatro: Radiofonias Brasileiras



Segundo Diego Molina, diretor artístico desse ótimo Radiofonias Brasileiras, “isto não é um musical”. Como ele explica no programa do espetáculo, “A música (...) não comenta, não repete (...), não alegra, não adjetiva a cena. Ela é a cena”. E é exatamente isso.

Radiofonias Brasileiras, cuja autoria é de Bosco Brasil, em cartaz no Teatro Alcione Araújo, dentro da Biblioteca Parque Estadual (e com quatro sessões com acessibilidade, como se pode conferir no Serviço, mais abaixo), tem um enredo instigante que se sustentaria sem qualquer intervenção musical, mas ainda a tem, e na medida certa. Chuto arriscar que talvez seja essa mistura o que o torna um espetáculo completo: um pano de fundo histórico e importante da vida política brasileira, a justa medida musical e muito bem interpretada pelos atores e pela banda e, finalmente, a ficção envolvente dos bastidores de uma rádio que, aos poucos, vai perdendo espaço e talentos para a televisão.

A direção musical é de Tato Taborda e o espetáculo faz releituras de importantes músicas da época, como “Wave”, de Tom Jobim, “Marginália 2”, de Gilberto Gil e Torquato Neto, “Parque Industrial”, de Tom , para citar apenas algumas entre inúmeras outras. A história ocorre entre os anos de 1963 e 1973, cenário do Golpe de 64, em que a influência dos militares nos meios de comunicação era absoluta. O medo, as alianças, as traições, os favores e algumas paixões acontecem em meio às novelas de rádio, aos jingles, às opiniões políticas.

O grupo (sete atores e quatro músicos, estes últimos da Banda Hétera), que nos guiará pelas intrigas e reviravoltas do enredo, já nos seduz de cara, abrindo o espetáculo em modo-fanfarra e entrando por trás, pela mesma porta por onde nós, espectadores, entramos.

A peça começa alegrando para, em seguida, dar lugar a certa introspecção do que seria mais uma madrugada de trabalho do autor de novelas Amílcar Maranhão (Reinaldo Gonzaga, excelente, carismático até quando apenas acompanha as cenas e as falas dos colegas com quem divide o palco). 
Após sua morte, ele é convidado pelo diabo, Maíra Lana (também ótima, conseguindo mesclar, em sua atuação, um misto de sedução, ironia e fina superioridade), a pinçar fatos de sua memória em ordem opcional (ela faz essa concessão ao protagonista, mas está sempre por perto para fazer ajustes necessários, questionar, ironizar e pontuar a ausência de veracidade dessa memória pouco confiável em alguns momentos).

O enfoque dessa rememoração derradeira se dá sobre seu trabalho nos últimos anos da Rádio Nacional, no Rio de Janeiro. Pedro Lima, que representa o poderio antipático dos militares da década de 60 e seguintes, também está muito bem no papel (e o ator também assina a preparação vocal da peça), assim como Luciana Bollina, também ótima no papel de Nice, outra funcionária da redação que vai alçando voos maiores em sua carreira. Todo o elenco (Adriana Seiffert, Alessandro Brandão, José Mauro Brant e George Luis Prata) nos emociona com um trabalho de equipe fantástico e atuações vibrantes (quase todos interpretam mais de um papel).

A peça é dinâmica, seus personagens são sólidos e tudo é pontuado pela música que nunca é demais. Há momentos surpreendentes, outros de graça (como os da novela de rádio) e alguns outros de beleza tocante (em especial, a cena que agrega Nice, a autora de novelas, cantando com a máquina de datilografar sobre os joelhos e dois personagens dançando de modo comovente a Ave Maria dos Namorados).

É importante dizer, finalmente, que a luz de Aurélio de Simoni ajuda a compor lindamente o dinamismo da peça e está irretocável, e a direção de movimento de Sueli Guerra permite que se explore ao máximo e harmonicamente o ótimo cenário assinado por Aurora dos Campos, que, por seu turno, além de proporcionar o aproveitamento do espaço do palco, permite vários planos interessantes de diálogos entre os atores, colocando-os em posições diferenciadas de poder e dominação, ainda que tais posições sejam sempre fluidas e passíveis de mudança.

Bosco Brasil e Diego Molina comemoram dez anos de parceria neste musical, cuja temporada vai até 19 de dezembro, contando ainda com duas sessões com acessibilidade para pessoas com deficiências auditiva e visual.



FICHA TÉCNICA
Texto:
Bosco Brasil
Direção Artística
Diego Molina
Direção Musical
Tato Taborda
Elenco
*Todos os atores interpretam mais de um personagem, exceto os dois protagonistas. Aqui estão destacados os principais de cada um.

Músicos em cena
Reinaldo Gonzaga (Amílcar Maranhão), Adriana Seiffert (duas Fúlvias – Melíflua e Magnífica), Alessandro Brandão (Zero Ponto), George Luís (Cacique), Luciana Bollina (Nice), Maíra Lana (Diabo), Pedro Lima (Villarino), Zé Mauro Brant (Tetê).

Antonio Ziviani, Breno Góes, Felipe Ridolfi e Pedro Leal David (Banda Hétera)
Cenário
Aurora dos Campos
Figurino
Colmar Diniz
Iluminação
Visagismo
Adereços
Assistente de Direção
Preparação Vocal
Aurélio De Simoni
Diego Nardes
Tuca
Carolina Godinho
Pedro Lima
Preparação Corporal
Sueli Guerra e Priscila Vidca
Fotos e Vídeos
Ananda Campana
Programação Visual
Thiago Sacramento
Intérpretes de Libras
Audiodescrição
Jdl Acessibilidade
Nara Afonso Monteiro
Assessoria de Imprensa
Assistente de Assessoria de Imprensa
Assistente de Cenografia
Direção de Produção
Produção Executiva
Daniella Cavalcanti
Fernanda Miranda
Paula Tibana
Maria Alice Silvério
George Luis, Janaina Avila, Thamires Trianon e Valéria Alves
Realização
2bb2 Produções Artísticas


SERVIÇO
Temporada: 06 de novembro a 19 de dezembro
Local: Teatro Alcione Araújo da Biblioteca Parque Estadual (Av. Presidente Vargas, 1261 -  Centro)
Telefone: (21) 2232-7225
Horário: quintas e sextas, às 19h, e sábados, às 18h. Em dezembro, sessão também às quartas (dias 02, 09 e 16/12), às 19h
Ingressos: R$30,00
Gênero: musical
Duração: 120 minutos
Capacidade: 195 lugares
Classificação: 16 anos
Bilheteria: abre 1 hora antes do espetáculo

Sessões com acessibilidade:
21/11 (sábado) e 12/12 (sábado) - sessões com audiodescrição para pessoas com deficiências visuais (haverá também o programa digital)
14/11 (sábado) e 16/12 (quarta-feira) - sessões com intérpretes de Libras - a língua brasileira de sinais - para pessoas com deficiências auditivas