quinta-feira, 16 de junho de 2016

que vida é essa?

que vida é essa, hein? que vida é essa em que quase não se dorme por dias semanas meses, só pra ganhar uma grana duas granas três granas pra conseguir uns selfies com neve ou vulcão ou selva atrás e dizer que tá de férias mas, se piscar, elas acabam? mas que vida é essa, agamben? fala pra mim.

parasita

minha língua continua hospedeira de um gosto de cobre. moléculas estrangeiras se espraiam na minha boca, angústia parasita que sabe de cor a cartografia de túneis orgânicos insuspeitos. o bicho sobe do peito à garganta, instala-se na saliva espessa, forma cuspe azedo que, se calhar, lanço no chão gelado. azia é a roupagem de um drama que falho em nomear.

eu, no melhor dos mundos possíveis

a, os relógios seriam brandos, as rupturas, amenas. No melhor dos mundos possíveis, não haveria, no fim do dia, essa sensação de que falta muito para alcançar tudo o que falta, porque tudo o que falta não seria tanto assim e estaria sempre ao alcance da mão. No melhor dos mundos possíveis, não haveria um governo golpista, e ainda que houvesse um tal de Temer na presidência do país, ele seria digno o suficiente para respeitar sua condição de interino. Mas dignidade nunca foi o forte de quem conspira. E, que eu saiba, ainda não pisei no chão do melhor dos mundos possíveis.

gramática do fracasso

a gramática do fracasso estava ali mesmo enroscada no pão com ovo que a esquina oferecia generosa. perambulava por ela como se vírgulas não causassem tropeço, como se pontos não causassem engasgos. era apenas isso que almejava: uma gramática sem finalidade. um pão murcho que só se come na esquina.

fracasso

é o aço do fracasso o que entope a goela nua. tusso. é erro crasso tentar. continuar. vilipendio minha sola do pé toda vez que ando. raspo a pegada do chão ralo. cuspo meu passo e manco. engulo o choro rascante ácido. paro. olhos bordejam o fato. pulmões inférteis sem ar.

cheiro

é tão bonito o cheiro do café.

asfalto

sai da consulta com a dor alojada entre as costelas e nenhuma possibilidade de seu escoamento. a dor não é líquida, é substância gasosa, alastra-se por itinerários corporais impensáveis. é hábil na locomoção visceral, descobre atalhos, aprecia curvas. e traz maus presságios, nunca se esgota nela mesma. sai da consulta e se perde pelas ruas de copacabana como se nunca tivesse pisado nesse chão. o asfalto é seu refúgio.

luva

estou de acordo comigo mesma. sem combates quaisquer, por enquanto. cabendo como uma luva em mim.

auto-ficção dominical



você quer sair de você. porque é domingo, porque faz sol, porque não faz sol, porque não é mais domingo. você quer sair de você porque odeia domingos, porque odeia. então inventa. corre, anda, vai, volta, fala, escuta, liga, desliga, escreve, apaga. o computador – aquele notebook aberto espreitando os movimentos da casa – te espera, risonho. há um riso de escárnio em sua tela. você quer fechar o notebook mas antes passa um pano molhado no chão da casa, que quer fugir de você, que te expulsa com seus cheiros e poeiras acumulados. a casa quer sair da casa, porque é domingo, porque o silêncio entorpece suas paredes já prestes a cair. suas paredes, há muito bambas, com rachaduras invisíveis, querem sair de si, e não há motivo. você se olha no espelho e ainda percebe manchas do lápis de olho e do rímel que passou ontem. fica melhor no dia seguinte. esse efeito, o do dia seguinte, é o mais bonito. o dia seguinte é sempre uma promessa, mesmo que não se cumpra. você então resolve sair de casa, deixando tudo como está, e está tudo uma bagunça. você carrega sua bagunça embrulhada e esburacada dentro do estômago, desce a rua, um passo no asfalto depois de outro passo no asfalto, até alcançar a esquina. percebe que o movimento é escasso, o que reitera que é domingo, e comprova que a vida é uma lesma preguiçosa esturricando ao sol. você resolve então – já que enfim conseguiu sair de você – deitar-se ao sol, ao lado da lesma esturricada, em plena esquina da sua rua com aquela outra. você se deita, sentindo o asfalto morno, porque o sol havia batido ali há pouco. você e a lesma, deitadas, na esquina de sua rua, livre de sua casa (como uma epiderme morta que deixou pra trás com alívio), ouvindo o barulho dos carros esporádicos que passam em busca de alguma fuga longínqua. você sabe que alguns desses carros terão êxito, conseguirão fugir, outros terminarão o dia decepcionados consigo mesmos, mas sabê-lo não torna você menos infeliz. você pede os óculos escuros da lesma emprestados, ela cede sem pestanejar, ainda que o sol não esteja incidindo diretamente sobre você. você quer sair de você, a lesma quer continuar nela mesma, estão lado a lado contemplando o vazio, não há mais nada a fazer ainda que haja muita louça na pia pra lavar. você dá de ombros porque conseguiu sair de você por alguns instantes e deve aproveitá-los ao máximo. não é sempre que se consegue a liberdade de um descanso no asfalto. mas isso tampouco torna você menos infeliz, apenas menos cansada. e só um pouco. você fecha os olhos, ingrata. a vida não te leva a nada.

sexta-feira, 29 de abril de 2016

Crítica: A cuíca do Laurindo (teatro)


Em 1935, Noel Rosa criou o personagem Laurindo na letra de seu samba Triste Cuíca e, posteriormente, outros sambistas de peso, como Herivelto Martins, Wilson Baptista eHeitor dos Prazeres, lançaram mão do personagem em suas composições. Laurindo então ganhou vida e, aproveitando a ideia e enriquecendo mais ainda a história iniciada por Noel Rosa, Rodrigo Alzuguir idealizou e montou a comédia musical A cuíca do Laurindo, em cartaz no Teatro I do CCBB até 15 de maio. Alzuguir também assina o texto, a dramaturgia e faz parte do elenco da peça, que tem como pano de fundo a fictícia Lira do Amor, escola de samba do morro da Mangueira, no Rio de Janeiro da década de 40.
Trata-se de um musical delicioso, com bela direção de Sidnei Cruz e direção musical deLuis Barcelos. Nele, acompanhamos a trama e as reviravoltas que envolvem os vários personagens em torno do cuiqueiro Laurindo, companheiro de Zizica e presidente da dita escola de samba do morro da Mangueira. Os personagens que compõem o espetáculo foram retirados do anedotário e de letras de samba do período. Esse é o caso do personagem Dodô, braço-direito de Laurindo, citado no samba Desperta, Dodô, de Herivelto Martins, interpretado pelo cantor e compositor Marcos Sacramento.
O enredo, com suas intrigas, paixões, brigas, revelações, alianças e deslealdades, é pontuado por quarenta canções interpretadas pelos atores com um conjunto de cinco músicos permanentemente ao fundo do palco: Yuri Villar, Luis Barcelos, Magno Julio, Marcus Thadeu e Rafael Mallmith. É importante frisar que músicos e atores estão excelentes, com destaque para o próprio Rodrigo Alzuguir e também para Hugo Germano, engraçadíssimo no papel de Tião e em suas demais aparições no palco, dono de uma energia que parece inesgotável. Completam o elenco Alexandre Moreno, Vilma Melo, Claudia Ventura e Nina Wirtti, todos inspiradíssimos.
O texto consegue manter o interesse da plateia pelos personagens cativantes, de modo a intercalar com propriedade os sambas elencados para o espetáculo, além de trazer o contexto da época em que a história se passa, em meio à Segunda Guerra Mundial,  e fazendo alusão às próprias mudanças no carnaval carioca e nas escolas de samba, que passaram a ficar cada vez maiores, com exigências típicas de espetáculo turístico: carros alegóricos imensos, exigindo paulatinamente modificações no próprio andamento dos sambas. O personagem de Laurindo mostra sua insatisfação com essa mudança, festejada pelos demais.
O cenário de José Dias reproduz as subidas íngremes, escadarias e vielas do morro e merece destaque, permitindo diversos ambientes e favorecendo a dinâmica da movimentação dos personagens pelo palco. A iluminação de Aurélio de Simoni também está excelente, e esse conjunto, somado aos figurinos caprichados assinados por Flavio Souza, torna o espetáculo um deleite não apenas para os ouvidos, no caso de quem gosta de samba, mas também para os olhos. Quando as cortinas se abrem, já temos uma imagem belíssima dos atores em cena junto aos músicos.
O único senão a ser apontado é que, apesar de não comprometer a qualidade tanto do texto quanto da trama, o espetáculo acaba ficando um pouco longo. Acredito que algumas músicas a menos, principalmente no final, poderiam torná-lo mais enxuto e no ponto certo, sem provocar nenhum tipo de desfalque no entendimento da história. A despeito disso, para quem gosta de samba e de musical, o espetáculo é um ótimo programa.
Ficha Técnica
Idealização e texto: Rodrigo Alzuguir
Direção: Sidnei Cruz
Cenário: José Dias
Figurinos: Flavio Souza
Iluminação: Aurélio de Simoni
Direção musical: Luis Barcelos
Direção de movimento e Preparação Corporal: Ana Paula Bouzas
Preparação Vocal: Marcelo Rodolfo
Elenco: Alexandre Moreno, Vilma Melo, Claudia Ventura, Marcos Sacramento, Rodrigo Alzuguir, Hugo Germano e Nina Wirtti
Músicos: Yuri Villar, Luis Barcelos, Magno Julio, Marcus Thadeu e Rafael Mallmith
Assistente de direção: Patrícia Zampiroli
Coordenação de Projeto: Carol Miranda
Direção de Produção: Ana Lelis e Marcelo Mucida
Produção Executiva: Joana D’Aguiar – Sopro Escritório de Cultura
Assistente de Produção: Renata Celidônio
Realização: Marraio Cultural

SERVIÇO
Espetáculo: A cuíca do Laurindo 
Temporada: 24 de março a 15 de maio de 2016
Dias e horários: Quarta a domingo, às 19h
Local: CCBB Rio – Teatro 1 (Rua Primeiro de Março 66 – Centro)
Capacidade: 175 lugares
Classificação indicativa: 12 anos
Gênero: Comédia musical

Crítica: Myrna sou eu (Teatro)


Myrna. Esse era o pseudônimo de Nelson Rodrigues em suas crônicas no Correio da Manhã, voltadas a assuntos sentimentais, geralmente femininos. Assim, o divertidíssimo monólogo Myrna Sou Eu – Consultório Sentimental de Nelson Rodrigues, com direção, adaptação e roteiro de Elias Andreato, surge exatamente dessa personagem, que responde às perguntas das ouvintes no programa de rádio Consultório Sentimental.
O ator Nilton Bicudo alcança êxito ao construir uma dramática e engraçadíssima Myrna, uma Myrna que se entrega verdadeiramente às questões trazidas pelas mulheres (e alguns homens) que lhe escrevem, que se envolve e que está ali de corpo e alma. É desse modo que a Myrna de Bicudo se ofende com insinuações contidas nas cartas, se espanta com as histórias ali narradas, se emociona, deixando até mesmo escorrerem algumas furtivas lágrimas, e se surpreende com as revelações e os problemas existenciais com os quais se depara. E as respostas que tem a oferecer, quando propõe à ouvinte para “raciocinar junto” com ela, não são nada óbvias.
Na verdade, Nelson Rodrigues, como o gênio inegável que foi e como, ao mesmo tempo, um homem de sua época, consegue encarnar o paradoxo (tão presente em outros gênios, como Freud, por exemplo) de se antecipar à e ir além da visão consensual muito própria do contexto em que viveu e, a despeito disso, construir pensamentos que não deixam de ser embebidos nesse mesmo contexto ao qual é tantas vezes hábil em ultrapassar. Em suma, pode-se dizer que ele está, a um só tempo, dentro e fora da cultura, imerso nela e além dela.
E é esse aspecto o mais interessante no texto que embasa as falas de Myrna, adaptado por Andreato: ela é uma mulher de sua época sim, que defende a paixão da mulher, a entrega total na relação afetiva e a supremacia do amor, mas que reconhece (e defende) uma série de outros dilemas que fogem a qualquer tipo de clichê.
Assim, ela recomenda à mulher feia que seja difícil em relação às investidas de um homem bonito que está no seu encalço, porque é desse modo que ele vai passar a achá-la ‘lindíssima’; ela recomenda a traição, quase um remédio para evitar o divórcio, e nesses e em outros conselhos, Myrna vai transitando em uma área fronteiriça entre os costumes morais arraigados de seu tempo e as transgressões quotidianas e secretas a esses mesmos costumes.
O interessante na personagem de Myrna e toda a sua dramaticidade é justamente não derivar nem para um paroxismo do politicamente correto, nem, no entanto, se desfazer completamente de alguns motes básicos da moral e dos bons costumes típicos da época. E é exatamente por isso que o monólogo se torna extremamente interessante e Myrna, com toda a sua franqueza e tons proféticos, cativa o público imediatamente.
A peça retrata um dia na programação de Consultório Sentimental, e o cenário (também assinado por Elias Andreato) reconstrói o ambiente da rádio de onde nossa protagonista fala. O espetáculo intercala as respostas que a personagem oferece às ouvintes com os intervalos e ‘reclames’ da programação da época, que ajudam a construir uma atmosfera anacrônica e nostálgica do contexto da era do rádio.
A peça fica em cartaz no Teatro Poeira até 25 de maio.

SERVIÇO

Local: Teatro Poeira – R. São João Batista, 104 – Botafogo
Temporada: de 06 de abril a 25 de maio
Terças, quartas às 21h.
Duração: 70 minutos.
Classificação indicativa: 12 anos.
Ingressos: R$ 50,00 (inteira) e R$ 25,00 (meia).
Vendas: Ingresso.com e Bilheteria: 3ª a sábado de 15h às 21h e domingo de 15h às 19h (21) 2537-8053
Clientes Porto Seguro + 1 acompanhante tem 50% de desconto

FICHA TÉCNICA

Texto: Nelson Rodrigues
Adaptação, Roteiro e Direção: Elias Andreato
Diretor Assistente: André Acioli
Interpretação: Nilton Bicudo
Trilha Sonora Composta: Jonatan Harold
Figurino: Fabio Namatame
Visagismo: Allex Antonio
Cenografia: Elias Andreato
Fotos: João Caldas
Projeto Gráfico: Vicka Suarez
Produção: Solo Entretenimento
Assessoria de Imprensa: Lu Nabuco Assessoria em Comunicação

Crítica: Volúpia da Cegueira (teatro)


Após os momentos iniciais do espetáculo, em que atores exploram corpo, espaço, objetos e movimentos no palco, a luz se apaga e o teatro fica por alguns instantes imerso na escuridão. O tempo vai passando e nada acontece, apenas breu. O que percebo, na sequência, é certo zunzunzum: algumas pessoas da plateia falando, bem baixo, como se aquilo não fizesse parte da proposta, como se fosse um intervalo sem relevância a ser utilizado de qualquer maneira para que passe rápido. Entretanto, o propósito de Volúpia da Cegueira é exatamente trazer à tona as temáticas do ver e do não/ver, do sexo e da cegueira e das diferentes formas de lidar com isso.
Depois de um tempo, a voz da atriz ressoa, certeira: “Incomoda, né?”. Sim, acho que é difícil lidar com o escuro quando estamos em um lugar onde o que iremos fazer depende principalmente da visão: quem vai ao teatro, vai para ver uma peça, mesmo que outros sentidos e experiências estejam envolvidos. Parece haver uma primazia definitiva da visão. Além disso, nossa forma de lidar com o mundo, de apreendê-lo e de tentar conferir algum sentido a ele, é, no caso dos que têm a visão preservada, através do olhar.
‘Volúpia da Cegueira’, com texto de Daniel Porto e direção de Alexandre Lino, acaba de estrear no Teatro Municipal Maria Clara Machado, no Planetário, e traz quatro atores, entre eles dois deficientes visuais, que, no intuito de trabalhar exatamente essas temáticas, encarnam situações e personagens distribuídos em fragmentos e relatos, cujos dilemas giram em torno da cegueira e da sexualidade: desde uma mãe que descobre o filho, adolescente e cego, se masturbando no quarto, e não sabe o que fazer diante disso, até um casal em que o marido perde a visão e diz que, ao perdê-la, perdeu também sua virilidade, não aceitando a bengala que sua mulher compra.
Dando vida a esses personagens, Moira Braga, Aléssio Abdon, Felipe Rodrigues e Max Oliveira transitam por um palco com piso tátil que permite a movimentação dos atores que são deficientes visuais e, logo que entramos, eles já estão explorando o espaço e os objetos ali dispostos: uma banheira, bancos, uma cadeira e uma mesinha com dois copos cheios de líquidos distintos. É entre esses objetos e com auxílio dessas marcas que eles costuram esses fragmentos e promovem um diálogo de corpos e toques que salienta outras formas de relação e conhecimento de si e do mundo.
Alexandre Lino tem êxito em dirigir os atores nessa proposta corajosa que mistura visão e não-visão, imprimindo dinamismo, aproveitando o espaço e construindo belas cenas do ponto de vista imagético. O excelente trabalho de iluminação de Renato Machado tem um papel fundamental nessas imagens e no jogo entre o ver e o não-ver. Não resta dúvida de que se trata de um espetáculo cuja importância é exatamente trazer à tona temas que ainda são considerados como tabu e que encontram pouco lugar de debate na sociedade e na cultura, apesar dos constantes avanços em termos de leis e implementação de políticas de acessibilidade e de inclusão social.
No entanto, senti falta de personagens mais bem marcados e do desenvolvimento mais aprofundado de alguns dos fragmentos contidos no espetáculo. Os relatos vivenciados pelos quatro atores são bem interessantes, despertam a vontade de uma aproximação maior com as dificuldades narradas.
É exatamente por encontrarmos poucas oportunidades de debate cultural dos temas propostos por ‘Volúpia da Cegueira’ que, além de um inventário mais amplo dos problemas concernentes à visão e à falta dela, seria muito bem-vindo um mergulho maior em tais relatos e sua exploração mais apurada. Há cenas interessantíssimas, como a do já mencionado casal que deve lidar com a cegueira do marido e outra questão que ele levanta para a esposa: “até quando você vai aguentar cuidar de mim?”. Ou seja, como fica o casal quando um deles perde a visão?
Assim, são situações que já trazem em si um potencial significativo de conflito que poderiam ser mais bem desenvolvidas. Há muitos caminhos possíveis num espetáculo como esse, cujo conceito oportunamente trazido precisa ganhar ainda mais espaços de discussão na sociedade, e talvez um deles seja o de adentrar mais profundamente em algumas dos ricos dilemas trazidos pelos personagens.
FICHA TÉCNICA
Direção: Alexandre Lino
Texto: Daniel Porto
Elenco: Moira Braga, Aléssio Abdon, Felipe Rodrigues e Max Oliveira
Direção Musical: Alexandre Elias
Iluminação: Renato Machado
Cenário e Figurinos: Karlla De Luca
Direção de Movimento: Paula Feitosa
Design Gráfico: Guilherme Lopes Moura
Fotógrafo: Janderson Pires
Telas do cenário: Alexandre Elias
Assessória Jurídica: André Siqueira
Direção de Produção: Alexandre Lino
Produção Executiva: Daniel Porto
Assistente de Produção: Samuel Belo
Argumento e Idealização: Documental Cia
Realização: Cineteatro Produções
SERVIÇO:
Teatro Municipal Maria Clara Machado
Endereço: Av. Padre Leonel Franca, 240 – Gávea
Informações: (21) 2274-7722
Capacidade: 120 lugares
Temporada de: 07 de abril a 15 de maio
Dias e horários: de quinta a domingo, às 20h
Ingressos R$ 40 (inteira) e R$ 20 (meia)
Duração: 70 min
Classificação indicativa: 16 anos
Gênero: Drama

Crítica: Memórias de Adriano (Teatro)


Esta não será uma resenha isenta, é impossível não mencionar os fatos recentes da triste política nacional. Não depois de uma farsa levada a cabo na Câmara dos Deputados, onde políticos sabidamente corruptos aprovam o impedimento de uma presidente eleita legitimamente e onde um dos deputados dedica seu voto a um torturador da ditadura de 64, como se uma desfaçatez como essa pudesse ficar por isso mesmo.
Na véspera da farsa, de um julgamento que deveria ser legal e não político, e já num clima muito propício, tive o prazer de assistir ao monólogo Memórias de Adriano, com direção de Inez Vianna, primeira montagem brasileira do romance de Marguerite Yourcenar,publicado pela primeira vez na França, em 1951. Será impossível escrever esta crítica, na semana da votação esdrúxula do impedimento em Brasília, sem, junto, me posicionar.
E essas memórias de Adriano, que adquirem forma de carta no espetáculo, têm tudo a ver com governo, poder, lealdade, amizade e, sobretudo, inventário da própria consciência, tarefa essa que poucos são capazes de empreender. A peça tem belíssima adaptação dramatúrgica de Thereza Falcão e uma interpretação contundente de Luciano Chirolli,que, neste ano histórico de 2016, completa 30 anos de carreira.
Adentramos o teatro em busca de nossos lugares e já temos um impacto com a cena que espera o início do espetáculo. O protagonista está deitado de olhos fechados em uma banheira no centro do palco e, ao redor dele e a tudo permeando, um clima sombrio de abandono, uma lúbrica atmosfera. Logo que o espetáculo começa, Adriano se levantará e fará um apelo à plateia: ajudem-me a morrer. Nesse momento, escancara-se a proximidade do fim.
É com essa força inicial, presente ao longo do texto e na atuação de Chirolli, que acompanharemos o inventário da própria vida, feito em forma de uma carta que é pautada pela franqueza dos que têm de se haver com a finitude. Trata-se de um inventário que enumera os movimentos de alma que acompanham (pelo menos é o que esperamos) os movimentos políticos de um soberano.
Ele fala de suas decisões, de estratégias de poder, de gestos políticos, mas não deixa de lado a força motivadora que a tudo sustenta. Acompanha Chirolli o músico Marcello H, cuja participação confere ainda mais beleza e lirismo ao monólogo.
A franqueza das palavras de Adriano, ao falar da doença que paulatinamente corrói seu corpo, é outro aspecto relevante do texto. Há uma frase interessantíssima: “É difícil continuar imperador diante de um médico. Aliás, é difícil continuar sendo homem”. Qualquer poder, qualquer soberania, qualquer nobreza se curva diante de um corpo enfraquecido, dolorido e cansado que deve ser entregue aos cuidados de um outro capaz de enxergá-lo melhor que nós. Qualquer dignidade fica, então, entre parêntesis.
Assim, a temática trazida pelo vigoroso monólogo, guardadas características específicas, é extremamente atual. A lealdade está em jogo na política nacional quando temos de acompanhar, estarrecidos, os jogos conspiratórios do poder. Assistindo à peça, não é possível não pensar nesses deputados que, no dia 17 de abril, falaram tanto de suas famílias, esposas e Deus para justificar votos corrompidos de saída.
Memórias de Adriano proporcionou em mim um jogo de pensamento que foi o de imaginar esses deputados e o atual presidente da Câmara no momento em que, como o Adriano construído por Chirolli, se depararem mais intimamente com a dor do corpo, no momento em que não puderem ignorar as limitações que a vida traz a todos nós, na ocasião, enfim, em que um inventário da consciência não puder mais ser contornado.
E será que, quando esse momento chegar para eles (afinal, chega para todos nós), eles conseguirão fazer esse escrutínio do próprio reflexo tal qual vemos no texto adaptado do romance de Yourcenar? O corrupto, que vota como se santo fosse, como se atualmente não tivesse alma, conseguirá olhar para o espelho e sustentar o olhar? O que acontecerá então?
A peça fica em cartaz até 15 de maio.

Ficha Técnica

Idealização: Felipe Lima
Adaptação Dramatúrgica: Thereza Falcão
Direção: Inez Viana
Diretora Assistente: Marta Paret
Elenco: Luciano Chirolli
Músico: Marcello H
Direção de Produção: Mariana Serrão
Cenografia: Aurora dos Campos
Iluminação: Tomás Ribas
Trilha Sonora: João Callado e Marcello H
Figurino: Juliana Nicolay
Arte Gráfica: Flavio Albino
Fotos: Renato Mangolin
Preparação Corporal: Márcia Rubin
Assessoria de Imprensa: Bianca Senna e Paula Catunda
Consultoria Histórica: Claudia Beltrão
Produção Executiva: Arilson Lucas
Assistência de Produção: Carlos Darzé
Assistência de Figurino: Camila Cunha
Estagiária de Produção: Luiza Martinez
Gestão das Leis de Incentivo: Natália Simonete
Realização: Sevenx Produções Artísticas e A Coisa Toda Produções

Serviço

EspetáculoMemórias de Adriano
Temporada: De 15 de abril a 15 de maio de 2016
Local: Espaço Sesc (Sala Multiuso)
Endereço: Rua Domingos Ferreira, 160 – Copacabana
Informações: (21) 2548-1088
Dias e horários: De sexta a domingo. Sexta e sábado, às 19h. Domingo, às 18h.
Capacidade: 60 lugares. Acesso para deficientes físicos.
Ingressos: R$  20 (inteira) e R$  10 (meia).
Duração: 60 minutos.
Classificação indicativa: 16 anos.
Gênero: Drama.

Crítica: Adélia (teatro)


Inspirado na poesia de Adélia Prado, o espetáculo Adélia, com direção de Renato Farias, vai chegando ao final de mais uma temporada no Rio de Janeiro, na Sede das Cias. Três atrizes em cena, Bela Carrijo, Fernanda Boechat e Gaby Haviaras, acolhem o público enquanto as pessoas vão chegando e se sentando, em um cenário aconchegante e intimista, rodeado por varais onde estão estendidos panos e roupas, tal qual um quintal de cidade do interior, em referência a Divinópolis, cidade natal de Adélia Prado, que completa 80 anos este ano.
Nesse começo, uma massa de bolo que está sendo preparada é oferecida àqueles que chegam e, durante o espetáculo, ela será assada e, já em formato de bolo, será novamente oferecida, ao final, à platéia. A receita foi criada especialmente para o espetáculo pelo chef Fréderic Monnier. A companhia Teatro Íntimo busca exatamente criar esse clima mais intimista, de proximidade entre atrizes e público.
Ao final da peça, ainda há lugar para uma breve e informal conversa entre elas e aqueles que querem falar. Aqui, há um trabalho da companhia de receber a platéia como se fosse uma visita conhecida e querida, como um anfitrião que zela pelo conforto dos que vêm de fora.
Os pontos altos do espetáculo são o texto poético e o cenário. As atrizes intercalam a interpretação do texto enquanto interagem com velas, candelabros, laranjas, chuchus, panos, bebidas e água. Já o cenário, assinado por Melissa Paro, e belamente realçado pela ótima iluminação de Rafael Sieg, é o responsável pelo tom de proximidade e aconchego que as atrizes constroem junto com as ofertas de cachaça e outros detalhes ao público. A temática afetiva e carregada de sensualidade e sedução do texto de Adélia é então sublinhada por todos esses aspectos que ajudam a conferir uma moldura estética agradável à encenação.
A ressalva fica para o uso do elemento água: apesar de podermos compreender a tentativa de trabalhar ao máximo os sentidos e as texturas, o texto poético inspirado em Adélia não é qualquer texto. Trata-se de poesia singela e densa, é algo que requer certa atenção, tipo de texto que, se lido em casa, exigiria algumas pausas para imersão, e que transita entre uma ironia debochada bem-vinda e momentos mais sofisticados de uso da linguagem.
Acontece que o cenário já traz uma quantidade de informação considerável e o uso da água em cena acaba exagerado, resultando em estímulos em demasia. Perde-se um pouco da atenção necessária ao texto, e a água, além disso, acaba por tornar o cenário, que trazia uma harmonia aconchegante inicialmente, um pouco caótico ao final de tudo.
A peça fica em cartaz até 25 de abril.

FICHA TÉCNICA

Direção: Renato Farias
Elenco: Bela Carrijo, Fernanda Boechat e Gaby Haviaras
Direção de Arte/Palco: Thiago Mendonça
Cenário: Melissa Paro
Iluminação: Rafael Sieg
Trilha original: Rafael de Barros de Castro
Produção: Gaby Haviaras
Fotos: Carol Beiriz
Visagismo: Ezequiel Blanc
Assessoria de Imprensa: Gabriel Mello

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Inauguração (conto para o Clube da Leitura de 2 de fevereiro de 2016)




Que eu soubesse, que eu lembrasse e que me dissessem, nunca havia matado ninguém. Não à vera, ali, no concreto da arma na mão, da faca decepando peles, ligas, tendões, miolos, não no concreto da vontade que faz com que os músculos se fortaleçam em um só golpe, ou em vários, tanto faz, mas certeiros, provocando o resultado de uma morte, que, de resto e como todas, é irreversível. Não, que eu soubesse, que me dissessem, que minha memória me sinalizasse, eu nunca havia matado ninguém, não ainda, não até ali.

Há um momento de inauguração na vida de todo mundo. E em qualquer âmbito dela. E, depois da inauguração, é a vez do inventário. Inventário de escolhas passadas.

Éramos casados há dezenove anos. “Dezenove anos não é nem tanto tempo, vai.” Essa foi minha consciência falando para uma parte dela mesma. “Não dá tempo de os ressentimentos se tornarem ressecados, mas doídos. Não dá tempo de tragédias inúmeras terem se amontoado entre as colchas e as fronhas da cama de casal, de acontecerem em cadeia deslealdades bem maiores que traições.” Minha consciência 1 tentava argumentar, mas a outra parte dela, a consciência 2, podia retrucar dizendo que o tempo é relativo. Que o ressecamento de um ressentimento é sempre subjetivo, e muito inexato, impossível de medir ou calcular.

Pois bem. Eu o conheci, meu ex-marido, com treze anos. Ele tinha quinze e já me paquerava. Era da turma do meu irmão mais velho. Eu o ignorava porque ainda brincava de Barbie. Depois ele sumiu. Eu o reencontrei na prova de vestibular. Ele não havia passado para medicina. Na falta de opção, de não saber o que fazer da vida pelo resto da vida, eu tentava comunicação, e ele também, na falta de sucessos anteriores. Passamos para a mesma faculdade. Na choppada, uma tentativa malfadada de me seduzir. Eu o ignorei, mas lá pelos últimos períodos, nos beijamos pela primeira vez. Gostei. Ficamos saindo. Mas eu não pretendia nenhum tipo de elo duradouro, ele não era tanto, não me bastava. Foi só aos 24 anos que começamos a namorar. Neste inventário que procuro fazer, não sei apontar o motivo que me persuadiu a namorá-lo. Talvez eu estivesse cansada de outras tantas histórias anteriores que me desgastavam a pele, a nuca, a vontade, o desejo, a crença no ser humano, a boca, a língua, histórias prévias que me usurpavam as digitais dos dedos de carinhos que não mereciam o destino que os recebia, homens cafajestes ou abertamente imbecis. Por que não tentar com ele já que, se não era isso tudo, beijava bem? E foi aos 27 anos que resolvemos casar. Portanto, aos 46 anos de idade, eu tinha 19 anos de casada, mas meu percurso com ele contava 33 anos, uma convivência extenuada. Tratava-se, eu sei, de uma aritmética que fazia mais sentido para a consciência 2, aquela que mataria sem dó, mas que não convencia a consciência 1, aquela que se horrorizava consigo mesma. 

Mas não era só a convivência extenuada. Era vê-lo agindo no mundo, gabando-se de feitos bambos, roubando frases que outras pessoas haviam dito, assumindo ideias geniais que não, não, não eram suas, reclamando com os garçons e sendo grosseiro ainda que controlado, sem contar o fato de ser um jornalista que escrevia bem mas que havia se acovardado diante do desejo antigo de cursar medicina, e o ronco à noite, a apnéia do sono, a flatulência aos domingos, mas não que cada uma dessas coisas fosse motivo suficiente para não querê-lo perto de mim, nem que todas essas coisas juntas constituíssem um rol de motivos necessários. Ele também havia ficado com a Marcela, minha ex-melhor amiga, num revéillon que passamos em seu sítio, e havia cortejado a Luana, que teve uma conversa sincera comigo. E quando o fez - quando eu soube - ele já era uma presença irreversível na minha vida, já era quase impossível renunciar a ele, pois de todos era o que melhor beijava, era aquele cuja pele melhor se adequava à minha, e cujo cheiro me fazia falta quando ele viajava a trabalho, era aquele que insistiu por anos e, quando conseguiu, inverteu a ordem das urgências, das necessidades e dos desejos. Ele representava a única possibilidade, mesmo que eu dissesse que não. Ele era uma espécie de beco sem saída. Um arremedo de felicidade que eu havia construído em minha própria vida, que dizia me amar e que, eu soube dias antes dessa última declaração, havia comido a dona Ester, síndica do nosso prédio. Puta que pariu!

Nada disso justificava, por mais que a consciência 2 se esmerasse em explicar à consciência 1, o motivo de seu afã em acabar com tudo aquilo. O mais certo seria pedir o divórcio. O mais óbvio, o mais rápido. Mas o divórcio não mata uma história. Não dá conta de decepar um nó górdio, não extirpa tumor nenhum de canto algum. O divórcio e a lei não bastam. E não inauguram um rompimento que, às vezes, mesmo que inexplicável, é a única possibilidade de uma vida e é o único desaguadouro legítimo de uma paixão. Um rompimento que requer uma tesoura afiada.

Que me dissessem e que eu acreditasse, antes daquele dia, não havia matado ninguém. Mas quando aconteceu, não parecia uma inauguração. Foi como se eu sempre soubesse o caminho, como se tivesse nascido para aquilo, como se sempre soubesse a melhor forma de executar o procedimento. Foi sem demora, sem volta e sem arrependimento.