quarta-feira, 14 de julho de 2010

ou lá ou cá

Alguém comentou uma fala do Chico Buarque outro dia e que era mais ou menos assim: quando ele estava dedicado a um livro, não conseguia compor. E se compunha, não tinha espaço para a escrita. Quem dera a dona do Vuvu, o gato lindíssimo ao lado, fosse do nível do Chico Buarque, mas agora que está aprendendo a tocar bateria e quer se desenvolver no baqueteamento da caixa, e quer aprimorar sua coordenação motora, não está, de fato, conseguindo escrever nem mesmo n - n sobre 0.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Pra não esquecer como se escreve

- Fica-se um tempão parado em frente ao computador, com as mãos sobre os teclados, os dedos sobre as teclas e, se monitor fosse espelho, aquela que ali estava deparar-se-ia, fatalmente, com um olhar sem vida (ou seria perplexo?) de quem desaprendeu alguma coisa por momentos. Apenas momentos. Que dariam lugar a outros momentos, e que ela não sabia muito bem quando viriam. Mas, ao menos, naqueles momentos em que as mãos sobre o teclado e os dedos sobre as teclas nada faziam de produtivo, ela relembrava que havia um modo de operar nela mesma que dizia respeito àquela posição: dedos, teclas, monitor, silêncio na casa.

- Esquecida de si mesma, ela só sabe agora viver os encontros voláteis, as circunstâncias sem continuidade, os elos perdidos, desfeitos, frágeis. Ela não sabe mais construir uma frase que preste.

- Nada acontece. Apenas a constatação de que o momento é outro. Mas ontem ela teve uma conversa sobre o que é mais importante em um texto (e conversar sobre isso talvez seja quase como escrever um texto): a trama ou as idéias; a forma ou o conteúdo. E ela, apesar de não saber mais como se escreve, continua achando o que achava antes. O mais importante, num texto, é...

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Algarismos


Lia queria esquecer os oito algarismos do número do celular do mentecapto com quem saíra por um mês, pois apesar de haver dois meses que não tinha notícias dele, que não sabia de seu paradeiro, que não escutava sua voz, ainda conseguia saber exatamente qual era o número, mesmo tendo deletado o contato de seu aparelho o mais rápido que pôde. Ao contrário: Lia lembrava-se daquele número como nunca, ainda que não tivesse mais serventia alguma. Espantava-se com a força de sua memória, que funcionava à sua revelia: ela memorizara aquela odiosa sequência numérica além de todas as outras cifras (senhas, documentos, cartões, datas de aniversários, endereços) que a vida impingia à sua consciência. E era tão estúpida e tão irônica e tão trocista e tão anárquica, e também maquiavélica, ardilosa, irritante, insana e absurda, a sua faculdade de memorizar, que quando Lia precisou ir ao banco no domingo chuvoso para sacar 50 reais fundamentais à sobrevivência na tempestade, esqueceu sua senha de oito algarismos. No entanto, era só pensar no celular do sujeito mentecapto que imediatamente a imagem dos números piscava como se gargalhassem, dançassem e fizessem cosquinha nas têmporas de Lia. E se o pensamento perdurasse, virava melodia: Lia pegava-se cantarolando aqueles números que não acessavam sua conta, apenas remetiam a um mentecapto entre tantos outros.

Rabisco: Vivian.
Garatuja computadorizada: Johandson

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Garganta (de Vivian e de Johandson, texto e garatuja)



Há tanto tempo não via o sujeito que chegava a ser descabida qualquer resposta para a pergunta “o que manda de novo?”, que ele lhe lançara sem aviso prévio. Se fazia meses, anos ou séculos que não o via, muita coisa de novo acontecera na periferia da vida, embora o cerne continuasse igual, mas como falar daquilo? Se exigido assim de chofre, todo assunto ficaria fora do eixo, sem contexto e avulso. Resolveu então falar sobre a sua tosse. Tossia tanto, mas tanto, nos últimos dez dias, que era capaz de morrer naquelas crises de tosse que duravam trinta minutos e ameaçavam arremessar sua goela longe, estraçalhar o céu da boca e romper outras frágeis estruturas do palato. O que mais lhe acontecia, ultimamente, era aquela tosse estonteante. Falou, então, pro sujeito que, enquanto tossia, o mundo era garganta. Só garganta. E apenas a sua, cheia de atrito e de alguma gosma. A tosse vinha sendo sua única vida naquela última semana, a melhor das vidas possíveis, a única cabível, porque, de resto, a vida era a mesma, embora outra. Depois de falar tanto de sua tosse, sentiu-se ruborizar. O quão ridículo podia ser uma pessoa que, de novidade, só tem a tosse? (Mas não era só aquilo. Era sobretudo o fato de o mundo ter se transformado em garganta ou, mais que isso, a sensação corporal de sua própria garganta pulsátil; será que ele alcançaria aquele achado?). Depois de falar e se constranger ouvindo a própria voz rouquenha, pigarreou de leve e, numa manobra que considerou sutil, devolveu a pergunta: “E você, o que manda de novo?”. Após breves momentos e algum rubor, o sujeito disse, incerto: “Tenho espirrado horrores e o mundo é só nariz quando isso acontece”.

Desenho do Johandson.
Texto da Vivian.

domingo, 7 de março de 2010

o comprimido

Tinha que ser assim tão doloroso o processo e o caminho e o conflito de produzir uma síntese de si mesma? Quando chegasse lá - no resultado - a dor diminuiria? E valeria a pena o resultado? Existiria, em algum momento, o resultado? E aquelas sensações inteiramente novas que vinha sentindo há tantas semanas, elas cessariam?

Por que não conseguia mais estar consigo mesma? Assim, numa tarde nublada, de vento azulado, de quietude nas ruas que podia enxergar da janela, não conseguia mais estar apenas com sua própria companhia. E se era noite de sexta ou sábado, aí sim é que seria insuportável.

Aquele tema da busca era um clichê dos mais antigos, mas era esse o tema e era essa a síntese. Ou, melhor dizendo: a síntese passava por esse tema clichê e inexorável. Por isso ela não se incomodaria de sair de casa às dez da noite e zanzar, sozinha que fosse. Sabia as ruas, os degraus, as vielas, os bares. Sabia quem encontrar em cada lugar e conhecia a possibilidade de não encontrar ninguém. E aquelas pessoas que ela encontraria eram como cerveja. Só serviam para o momento em que o líquido estivesse no copo e alguns minutos seguintes. Pois no outro dia ela continuaria achando insuportável estar consigo mesma, na quietude, no vento arroxeado quase, no domingo esvaziado.

Não. Definitivamente.
O melhor era tomar o comprimido.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Você achava dizia e pensava

Você achava que estava no domínio da situação mas o outro é sempre uma incógnita maior do que você poderia medir ou avaliar. Você achava que seria bom dali pra frente, mas toda vez é uma estranheza mais alargada do que antes se mostrou. Você pensava que, se no início não era paixão, depois poderia se transformar em algo agradável. Você gostava da companhia dessa mesma pessoa há sete ou oito anos atrás, quando não a conhecia bem. Você gostava da companhia desse mesma pessoa quando não estava a sós com ela. Você de repente tem medo de falar o que pensa e ser mal-interpretada e ofender e irritar. Você sabe que agora você não é mais como era e não se leva mais tão a sério. Você não sabe se isso que você produz agora - se essa síntese de si mesma - é o melhor caminho, mas tem sido o único possível. Você tosse dia e noite sem parar e tem medo do que isso possa significar. Você achava que valeria a pena e continua achando, porque o Fernando Pessoa disse que, não sendo a alma pequena enfim. Você pensava que poderia ir levando mas é o vento frio de março que te leva pra cama, pra febre, pras dores. Você acorda porque os pensamentos não te deixam mais dormir e você dormiria bem mais, mas bem mais! Você não sabe muito bem o que você quer pensar e se quer pensar. Você digita Marcelo Adnet no youtube pra dar umas gargalhadinhas antes de enfrentar o dia. E você conclui que nunca ninguém está no domínio nem de si mesmo.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Nosso Carnaval

No Brejeiro a Vivian encontrou a Mariana do mestrado e foram juntas, no meio da multidão, cantando alalaô! Depois esbarrou na Juliana e no Chico, que reencontrou depois, e ouviu piadas malévolas e politicamente incorretas. Reencontrou o Daniel e a Anne e atualizou sua vida em poucos minutos. Mas a cerveja acabou e todos meteram o pau no Eduardo Paes e em seu fascista choque de ordem e voltaram pra casa, ela trocando as pernas.
No dia seguinte, foi parar no Sassaricando, na Glória, onde conheceu um-dois-três-quatro-cinco-seis-sete-quantos-mesmo? paulistas. Johandson apertava um, Salvador puxava o bonde, mas era expert em sumiços e reaparições instantâneas. Um dos paulistas tinha um olho que crescia a cada bloco de carnaval e resolveram denominá-lo Terçol, pois era mais fácil assim. A Márcia Vitari também apareceu e se juntou ao grupo. Antes que o calor e o sol esturricassem os moles miolos da trôpega trupe, foram à Lapa, que era ali ao lado, e discutiram sotaques e bairros e zonas sul-leste-oeste de São Paulo e do Rio. Havia ainda os pênaltis do Vasco e Fluminense, que todos torceram como se fossem vascaínos roxos - os vascaínos e os conrintianos. Dali combinaram a noite, cada um foi prum lado, tomou banho, voltou e se acabaram no set do Maurício, onde ninguém teve teto preto. Terçol ficou de cueca na beira da pista, a Luísa dançou rock e ficou com saudades de Oxford, o Maurício tinha os olhos murchos pois faltava alguém essencial, o Ribas quase caiu no chão e entrou no banheiro das mulheres e tudo acabou bem depois.
No domingo a Vivian estava de noiva 7h30 da manhã com a Carolina e Giselle enfrentando o sol no Boitatá, o Gota apareceu ao seu lado, porque o Gota sempre aparece, mas a noiva do Kill Bill teve piriri e nenhum banheiro químico tinha espaço para a sua alergia. Voltaram pra casa, Vivian dormiu a tarde toda, foi parar no Bloco Cru, onde por acaso encontrou novamente o Salvador e a turma de paulistas e ainda novos paulistas. Havia um furão também, chamado Benjamin, porque só lê Walter Benjamin. Do Bloco Cru foi parar no Bip Bip, sambinha pacato, onde encontrou a Luísa, a Carolina, a Dani e o Johandson e todos ficaram amigos, mas a Dani foi embora logo, porque tinha que guardar mil coisas na geladeira e também tinha os olhos tristonhos.
Segunda-feira era dia de morrer esturricado no bairro dos atores-poetas: Santa Teresa e os mambos do Songoro Cosongo, mas a Vivian não agüenta Santa Teresa por muito tempo e arrastou todo mundo de lá. À noite, no Rancho Flor do Sereno, até o Guilherme Preger e a Ula apareceram, e diz o Ribas que viu a Deborah, mas ninguém mais viu. Fizeram uma quadrilha, todos eles e mais os desconhecidos ao redor, cantaram Guantanamera em altíssimos brados com estranhos de Copacabana umas trezentas e vinte e cinco vezes e partiram pro Pavão Azul, que topou fazer mais cinco pastéis para o Carlos e seu furão, que vieram de São Paulo es-pe-ci-al-men-te para prová-los.
No dia seguinte, todos se encontraram no metrô da Cinelândia para a Orquestra Voadora. Ninguém foi capaz de voar, mas a orquestra e o céu azul, além do calor de oitenta e oito graus e mais a ausência de vendedores de cerveja fizeram com que todos quase alucinassem. Dali, o Salvador (que não é Salvador Dalí) puxou o bonde pra Copacabana, apareceu o Marcelo, todos cantaram sambas e dances e funks e marchinhas na beira da praia. É preciso dizer que o Salvador era o mais animado de todos, tanto que arrastou os que sobraram para seu jogo transcendental onde você é o vento e semeia as cores. Nesse jogo, a Vivian e a Carolina viram Deus, cada uma a seu modo, e cada uma com uma concepção diferente de Deus, mesmo sem acreditar que ele exista, mas viram, alguma coisa elas viram, e a primeira prendeu o choro, mas a segunda chorou desbragadamente, deram-se as mãos, puxaram a Luísa, tentaram enrolar o motorista de táxi e foram embora.
E tudo se acabou na quarta-feira!
(E se tudo isso servir para o Pitel, o Terçol, o Carlos, a Maricota, o Cadu entrarem no facebook, e para o Estêvão, a Ju e a Dani paulista bolarem um tour maravilhoso por São Paulo pra toda essa destrambelhada trupe carioca, tudo vai ter valido mais ainda a pena!)

sábado, 30 de janeiro de 2010

Novas versões do de repente

Quando menos se espera, você reencontra aquele cara de cinco anos atrás e trocam telefones.
Quando menos se espera, um familiar que não queria te ver retorna e exige e complica e te abraça e range os dentes. Te faz chorar.
Quando menos se espera, o ano novo chega, você olha pra trás e percebe que não fez nada. Ou fez tudo, mas equivocadamente.
Quando menos se espera, uma poesia sua é publicada no site de alguém especial e você sorri, lisonjeado, honrado, agradecido, orgulhoso, envergonhado.
Quando menos se espera, alguém em quem você confiava te vem com uma bomba. Você chora uma tarde inteira e sente o desamparo despencando você nos porões da vida.
Quando menos se espera, você pega sífilis. Mas tem cura. Ainda bem...
Quando menos se espera, você passa naquele concurso que não imaginava que tivesse possibilidades de concorrer. Quando menos espera, é convocado. Quando menos espera, entra em exercício. Quando menos espera, odeia o trabalho, os colegas, o ambiente. Mas o salário é bom. Você olha pra trás e pensa, ironizando o destino: eu quis tanto isso e choraria tanto se não passasse. Agora estou aqui, esmagado pela rotina nojenta do serviço.
Quando menos se espera, você conhece uma pessoa que será, em breve, seu melhor amigo.
Quando menos se espera, alguém morre e você se apercebe de que sempre adiava uma conversa, um reencontro, uma atenção. Não dá pra fazer mais nada agora.
Quando menos se espera, você ganha um prêmio. Em dinheiro. E faz aquela viagem.
Quando menos se espera, você encontra alguém na noite e se apaixona.
Quando menos se espera você se apaixona por aquela pessoa que, em outras circunstâncias, talvez não te dissesse nada. Por alguém totalmente fora dos seus padrões atrativos. E se apaixona perdidamente. Perdidamente? Apaixona-se, sim, achadamente!
Quando menos se espera, você recebe a proposta de um trabalho novo.
Quando menos se espera, você deve voltar para seu país porque na Inglaterra não aceitam mais seu visto. Os planos todos mudam da noite pro dia, da água pro vinho, e o subdesenvolvimento volta a te circunscrever. Lide com isso, sem chorar demasiadamente!
Quando menos se espera, você desce do ônibus e quebra alguns dos seus metatarsos. Ficará em casa durante semanas, sem nada poder fazer, a não ser ler todos os livros que esperavam empoeirados e rever filmes do Bergman, do Spike Lee e do Tarantino.
Quando menos se espera, você reencontra um antigo amor de seis anos atrás, que julgava morto e enterrado sem sombra de dúvida. É que não havia luz sobre essa dúvida para projetar a sombra...
Quando menos se espera, você está falido.
Quando menos se espera, você vai ser papai!
Quando menos se espera, serão gêmeos.
Quando menos se espera, você tem que se mudar.
Quando menos se espera, um melanoma tatua sua pele.
Quando menos se espera, você obtém a cura.
Quando menos se espera, tudo muda. Ou tudo fica como está.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

videoclipe

A vida pareceria um videoclipe se fosse sempre assim com o fone de ouvido. Era melhor ainda dentro do ônibus, quando Ana pegava aquele que ia pelo Aterro do Flamengo. Ouvindo Creedence, era então ótimo. Num clima nublado, anunciando pingos, as cenas poderiam parecer o prenúncio da catástrofe ou o preâmbulo da melancolia. De modo que, se ela estivesse já previamente arrastando-se em certo humor triste, ainda que de leve, ainda que sutil, ainda que pálido, ainda que esboço, tudo se tornaria mais sugestivo de um dia cinza em todos os sentidos.

Era tanta a alegria acumulada nas últimas sete semanas ou mais, que até estava estranhando todo aquele negrume amarronzado. Tinha se esquecido de como era ficar triste. Tinha se esquecido de como era aquela coisa de sorriso endurecido, falta de vontade de botar o pé pra fora de casa e horror de pensar em ficar o dia inteiro dentro de casa. Surpreendente era ter se esquecido, pois a rigidez no sorriso e nos gestos e na coagulação sangüínea era algo de tão costumeiro para Ana - tão sempre, tão mesmo, tão todo dia - que agora era quase inverossímil o esforço que estava empreendendo para reter aquilo tudo novamente e ter que redescobrir como se movimentar naquelas condições.

Estava triste. Os pingos já caíam. As árvores e os ciclistas e as gramas do Aterro do Flamengo pareciam ter ensaiado com a música ou, melhor dizendo, pareciam seus donos, como se a tivessem criado, árvores, ciclistas e grama compositores. Tudo se encaixava perfeitamente bem e a imagem era tão dinâmica quanto bela. E alguém ao seu lado, todo de branco, fazia lembrá-la de que, no mundo, além das gramas do Aterro, existem doenças esquisitas.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

linhas de fuga

O Celso não havia se despedido dela. Foi embora assim, sem mais. Ela acreditou que fosse voltar. E sabia onde encontrá-lo, se quisesse. Mas não quis.

No dia seguinte, acordou pensando nele. Foi quando Otávio ligou. Vamos ao cinema? Sim, podemos. E no cinema ela só pensava em Celso.

Três dias depois, foi ao encontro dele. De Márcio. E só conseguia pensar em Otávio.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

o que te resta?

Se ele soubesse gritar, ele gritaria. Se soubesse xingar, não hesitaria. Se ele tivesse como esmurrar, esmurraria. O que quer que fosse ele esmurraria. Se tivesse destreza em retorcer e fazer picadinho, não duvide de que ele retorceria e faria picadinho. Sem pestanejar. E sem arrependimento. Se ele soubesse se vingar, vingar-se-ia sim. Se ele soubesse ofender e assassinar, assim como quem mata metaforicamente faz muito mais estrago do que um homicídio concreto pode causar, ele ofenderia três mil vezes mais um e assassinaria n vezes contanto que n fosse maior que um zilhão. E se ele soubesse riscar, produzindo sangue, eu não julgaria que ficaria só na ameaça. Se cão que ladra não morde, ele partiria pra mordida sem ladrar, caso soubesse morder.

Mas o que ele sabia fazer? Gritar, ele não sabia. Não tinha voz. Nem mesmo sussurro ele era capaz de produzir. E era uma dor o que sentia - e era incomensuárvel aquela dor - quando ele tentava gritar ou sussurrar e o que saía era um bafo sem cheiro. E xingar ele também não sabia, porque dependeria de voz e de vocabulário. Ele também não sabia esmurrar, porque não tinha punho. E também não tinha mãos e movimentos finos e grossos para retorcer e em seguida produzir o picadinho daquilo que foi tão bem retorcido como um quadro do Francis Bacon. Ele tampouco sabia se vingar, pois para isso era preciso raciocínio e frieza, e ele jamais possuira um cérebro e tampouco temperatura. Ofender e assassinar também estavam fora de seu alcance, pois era preciso ter corpo e palavras, e ele não tinha voz, gramática ou corporeidade. Riscar também não sabia, pois já vimos que era desprovido de punho e mãos. E ele não mordia porque não tinha boca, dentes, caninos, saliva. Ele não tinha fome.

E o que restava a ele?
O desprezo. Se soubesse desprezar.

domingo, 3 de janeiro de 2010

Olhos vidrados mais uma vez

Se ela queria?
Aqueles olhos vidrados novamente. Um pouco menos, mas olhos vidrados sempre se tornam cada vez mais vidrados. O que você vai fazer no banheiro no intervalo de tudo, que volta com os olhos mais vidrados ainda?
Mas ele estava envergonhado. Quando avistou Ana Luísa e Vitória, sorriu tímido. Pegou as mãos das duas, uma por vez, beijou-as e não se aproximou. Ele sabia que as havia assustado uma semana antes, mas elas sabiam que ele não era má pessoa. Apenas que tinha os olhos vidrados e quando começava a falar não parava mais. Além de tudo, arregalava aqueles olhos e se sentia discriminado e falava mal da polícia, dos bandidos, dos burgueses, dos flamenguistas e dos ladrõezinhos da Lapa. Apesar daqueles olhos, ele era vegeteriano. E tocava bateria, mas foi expulso da banda, justamente porque olhos vidrados beiram o descontrole quase toda noite.
Agora Ana Luísa e Vitória estavam com amigos. Inclusive alguns que haviam conhecido naquela mesma noite. Pois não tinha jeito: toda vez que saíam, conheciam várias pessoas dos mais variados formatos e das mais diversas embalagens. Era engraçado de uma certa maneira, pois algumas se transformavam em continuidade, ainda que curta. E ficaram ali conversando, enquanto o homem dos olhos vidrados papeava com outras pessoas por perto. Mas a música ia melhorando cada vez mais, enquanto as duas amigas dançavam, felizes. Até que ele puxou a amiga e dançaram e não teve jeito, ele tirou Vitória para dançar. Ela gostava de homens que sabem dançar. Homem havia que ter pegada e havia que ter um certo rebolado e aquele homem tinha. Apesar de as ter assustado sete dias atrás, agora ele estava suave. E dançaram. Bastante. Mais de uma vez. Mas os olhos dele não tinham cura: ficavam vidrados, cada vez mais, e junto com aquilo, uma fala que não se interrompia, um fluxo de idéias que não estagnava, e um certo desespero também. E aquele desespero era o que havia de mais assustador nele.