quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Não era eu




Não era eu. Não era eu ali, roendo as unhas que deixei crescer por um ano, arranhando a casca por cima da ferida pulsátil. Não era eu ali, esperando que as horas passassem como quem observa os vagões do metrô correndo em alta velocidade, não era eu ali, constrangida comigo mesma, confrangida por não ter escolha, contraída por conta de um medo sem tamanho e sem motivo. Não era eu ali, não era mesmo eu ali, não eu, era outra, outra quem?, mas eu não, não era eu ali enrolando no dedo indicador uma mecha de cabelo pra lá e pra cá, pra lá e pra cá, e tampouco era eu que balançava a perna direita, pra cima e pra baixo, veloz, voraz de chão, também como quem tem pressa em esmagar mil estalinhos que só explodem um de cada vez, ou até como quem mói as migalhas de pegadas alheias. Não era eu ali em toda aquela insanidade e em toda aquela ansiedade que poderiam ser medidas a metro, pesadas a kilo, pintadas com tinta acrílica, de tão densas, de tão vívidas. Não era eu ali ponderando onde a tela - o retrato da ansiedade, o sumo da insanidade - seria afixada, talvez no quarto, talvez na sala, apesar de o forte da ansiedade não ser a estética. Não era eu ali nervosa, acumulando saliva na boca, e não era (não podia ser!) eu ali pensando naquelas formas todas e inteiras de recriar o quebra-cabeça que havia se tornado a minha vida naquele mês de janeiro. Não era eu ali que fazia os cálculos do que daria no futuro as consequências das palavras que não pronunciei, as imagens impolutas que risquei, as ideias que apartei de mim. Não, definitivamente, não era eu, era outra, era a antítese de mim mesma, e se fosse alguma coisa que valesse a pena definir, só podia então ser aquela que viria antes do definitivo eu, cujas fronteiras ainda estavam por ser traçadas. Mas não era eu ali e não era eu ainda.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Linhagem


Antuérpia, que odiava seu nome, acordou de saco cheio. Arrastou-se o dia inteiro em cima de um sono sem origem. Bebeu café, antes das três horas, e se sentiu emergindo da bancarrota. Chegou a comentar com sua mãe, Petra, que também não suportava seu nome:

Esse café me salvou da bancarrota.

Petra não entendeu o comentário da filha, mas acreditou que o café que tinha feito estava a gosto. Pensou em perguntar, Antuérpia, minha filha, você sabe o que é bancarrota? Até formular a pergunta, demorou-se na indecisão.

É falência, não é, mãe? Sinto-me falida, vivendo uma espécie de bancarrota existencial ou espiritual, não sei bem.

Petra entendeu bem. A filha completou dizendo que era algo do dia, aquele dia, nublado, feriado, mortos, chuva, biorritmo, constelação astral, não sabia bem os porquês. O fato é que o café a revigorara. Uma leve pressão sobre a cabeça - que até poderia se transformar numa enxaqueca mais tarde - sumiu após o benfazejo líquido escuro.

Depois foram se sentar ao lado da vovó Lupicínia, que também provara do café, que também se sentia emergindo de uma exaustão sem causa e via televisão sem meta e destino. As três, na sala, sentiam-se bem, às cinco e meia da tarde.

Vovó Lupicínia nada dizia em geral, mas também não tolerava o próprio nome.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Elisa, chegando em casa



Elisa, voltando a casa.
Seu humor, extenuado.
Seu pensamento, embaraçado.
Seu passo, desengonçado.
Queria banho, água, queria lanche, lençol macio.

Elisa, olhando em volta.
Sua vida, desenxabida.
Seu trâmite, desgovernado.
Sua aposta, enviesada.
Gostava de imaginar que o futuro de todos era previsível.

Aquelas pessoas, desenfreadas;
outros passantes, desmantelados.
Teriam todos o mesmo fim:
doença, dor ou acidente.
Todos, desfigurados.

Elisa, vagando etérea.
Cansada, achava graça.
Da corrida, ensandecida.
Dos planos, apatetados.
Do fim, igualitário.

O advogado amarronzado. O médico esbranquiçado. O pedreiro acinzentado. A grávida avermelhada.
Após anos, desmiolados.

Escapatória, não havia uma.

Elisa sabia bem:
acabariam todos
deitados, torcidos,
doídos.

Elisa, chegando em casa.
Cansada, tirando o salto.
O fogão, o chuveiro, a cama
A vida
O lençol macio.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Manhã

Ela sentiu aquela angústia gelada novamente, quando o despertador tocou. Tinha de acordar. Levantar era erigir-se, era enfrentar o mundo, era saber o que dizer e o que calar. Era, principalmente, aceitar quando não soubesse o que dizer e o que calar. Respirou fundo e foi passar o café.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Macarrão Instantâneo


Fast food é comida ruim que você faz sem precisar gastar muito tempo do seu dia, que já é pouco e cada vez encurta mais. Tempo é um tema ao qual os filósofos dedicam muitos instantes sem chegar a conclusão alguma que o valha. Instante é a medida de tempo que você pode gastar para fazer um macarrão do tipo miojo, que também é chamado de comida instantânea. Instantâneo é aquilo que tem a capacidade altamente invejada de se fazer existir ou de se fazer entender ou de se fazer desejar em um instante. Instante é a medida do tempo que você gasta para passar de um pensamento a outro. Pensamento é um processo cognitivo de tese, antítese e síntese, silogismos e neologismos, fantasia e horror. Horror é a sensação de que o mundo vai acabar e de que você não fez nada que te alçasse à categoria de especial. Especial é tudo o que não é medíocre e que causa espécie, assombro, surpresa àqueles que com ele tomam contato. Contato é a ligação de algo com alguma coisa. Alguma coisa é um conceito dotado de tanta imprecisão quanto tudo que se disse até agora neste texto. Imprecisão é a qualidade maior presente no sabor do macarrão que se faz em um instante. Instante é o tempo que o ponteiro precisa para alcançar o número 12 do relógio. Número 12 é o número da casa da minha tia, de nome Celinha, casada com meu tio, de nome Tavinho. Tia Celinha e Tio Tavinho adoram comidas que não sejam instantâneas, nem momentâneas, nem fugazes, nem velozes, nem superficiais, nem vegetarianas. Celinha não sabe o que é o instante, nem o vazio, nem a morte. Só pensa em agradar ao tio Tavinho e aos filhos. O tio Tavinho não faz idéia do que possa ser o imperativo categórico e nem o mundo como vontade e representação. Só pensa em ver futebol, beber cerveja, consertar carros na oficina e em outras coisas que não convém falar. O filho mais velho da tia Celinha e do tio Tavinho fez vestibular e começou a estudar filosofia, para desgosto da família. O primogênito de Celinha e Tavinho não puxou a nenhum dos dois e se chama Humberto. Vive às voltas com livros e começou a questionar tudo o que os pais davam por certo. Tornou os almoços insuportáveis quando veio com aquela história de que o instante sem lugar é o que realmente importa. Causou gastrites que viraram úlceras no tio Tavinho quando resolveu fumar maconha e citar Platão quanto bem entendia. Tio Tavinho, que nunca fora dado a insônias, deixou de dormir, pois tudo virava pergunta sem resposta e a tudo o que ele dizia vinha o Humberto com uma frase ininteligível e pomposa. Inclusive tia Celinha e tio Tavinho já não tinham mais certeza de nada. A tartaruga Neném, da família, passou a ser objeto de acaloradas discussões, quando Humberto resolveu trazer para a ceia de natal o assunto estranhíssimo acerca da corrida de Aquiles com a Tartaruga e o paradoxo que a família nunca conseguiu entender. Humberto tecia longos sermões achando belíssima a permanência de Neném, a tartaruga, sempre no mesmo lugar. Entretanto, da perspectiva da família, ele já não falava lé com cré, mas, quando foi expulso de casa por ter tornado a convivência entre todos insuportável, foi num único instante que se deu conta de que não tinha um tostão no bolso, de que só sabia cozinhar macarrão instantâneo e que teria de voltar atrás. Atrás é uma posição no espaço situada antes daquela na qual a pessoa, no caso Humberto, se encontra, e pela qual, presume-se, ela já passou. Passado é outra dimensão do tempo, aquele que é difícil conceituar mas que passa voando.

(Conto que deu origem à animação O Filho das Flores, de Johandson Rezende, com texto do conto.)

quarta-feira, 4 de julho de 2012

A primeira metade




Quando chegava o dia primeiro de julho de qualquer ano, Joaninha assustava-se um pouco e se dava conta de si, de modo a apurar o olfato e entender o cheiro que saía de seus pulsos, de modo a mirar no espelho sem pressa e contar os novos fios de cabelo branco despontando no alto de sua cabeleira grisácea, de modo a também medir a altura e ver se se curvara ainda mais ou não, de modo a contabilizar os progressos feitos, apalpar as próprias mãos, conferindo os calos novos e os antigos. Fosse o ano par, fosse o ano ímpar, quando chegava o primeiro de julho, Joaninha sempre interrompia a marcha, deitava-se na primeira pausa para respirar, se houvesse alguma, e se concentrava na ida e na vinda da respiração, nos movimentos torácicos, e se sobrasse tempo piscava várias vezes para se certificar de que seus olhos continuavam vendo o que sempre viam e se a lubrificação daquele globo ocular às vezes ardido, às vezes suave, estava ok. O primeiro de julho não passava em branco, e ela dizia a si mesma: foi-se, então, uma metade, falta a outra. E era como um novo mezzo-revéillon, quando então Joaninha elaborava a lista do que faltava e a lista do que já se resolvera, abria e fechava as mãos, no intuito aumentar a elasticidade das garras e, com isso, segurar fôlego extra, e continuar a caminhada até a próxima pausa do cafezinho.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Associação Livre



Ela sabia que na semana que vem tudo teria de estar bem, inclusive sua dor no corpo teria de passar, sem contar a tosse, que teria de estar silenciada. A tosse tinha a potência do grito somada à dor do parto. Ela não sabia muito bem como era a dor do parto, mas ela sabia o que uma tosse podia provocar, desse jeito alérgico e persistente. Aliás, refletindo sobre isso tudo, ela julgou que gostaria de ter a persistência de sua tosse, mas seu forte era o pessimismo. Tão pessimista era ela, que acabava desistindo de uma série de coisas que se apresentavam confusas. Na verdade, ela sabia o quão confusa ela própria era, e não se enganava quanto à vida, que não tinha nada de exata e homogênea. Talvez fosse por isso que ela não gostasse muito de ciências exatas: quanto mais exata e quanto mais ciência, menor a parcela de vida no que quer que seja. Ainda que soubesse de tudo isso, era puro raciocínio, pois as conclusões - e uma delas era: a normalidade é a confusão - não traziam serenidade a ela. No afeto, na sensação, no sentimento, ela achava que tinha que ser menos confusa e que a vida tinha que ser menos embaralhada também. Tudo lhe parecia uma grande mixórdia de nomes, recortes, cenas incongruentes, lógicas enviesadas, tudo lhe parecia entulho, pois era míope, e se não ajustasse a vista, enxergaria o mundo pelo avesso. E ela dizia a si mesma que o avesso era sua vida, ainda que concordasse que era difícil não encontrar uma vida pelo avesso. E que há avessos menores e maiores, além dos médios, e que se parasse para pensar, sua vida era um avesso diminuto. O principal da sua desrazão era não saber se seu nome correspondia a ela mesma e se havia o ela mesma embaixo do seu nome (ou a ele interligado), tanto que pretendia trocar alguma coisa essencial em sua vida. E se questionava o que era vida e pra que ela servia. Não atinava com a idéia de que a meta da vida seria a diversão, isso era muito pouco, muito pouco. Não atinava com essa gente toda que achava que viver a vida é se divertir em todos os sábados, ainda que ela adorasse uma diversão, e também os sábados, e sobretudo os sábados divertidos. Ela não atinava com muitas coisas e resolvia escrever, para ver se encontrava algum sentido e algum fio da meada. Reconhecia que, se encontrasse um fio da meada, qualquer tipo de criação e até de pensamento teria fim. Ela gostava dos finais, porque as interrupções, suspensões e términos traziam também alívio, ela precisava sentir alívio. E pensando nisso tudo relembrou que já estava numa insônia braba só porque começara a se lembrar de que a semana que vem não seria uma semana anódina e ela precisava estar minimamente saudável, com os leucócitos em dia, com as hemácias na medida certa, com as plaquetas funcionais, com as glândulas corretas, porém agora o que não a deixava em paz era uma tosse e um resfriado que gostaram muito dela e não havia reza e bênção que dessem jeito de expulsá-los de seu corpo minguado, de sua garganta esfacelada e de seu restinho de semana,  que era a semana anterior à semana que vem.


sexta-feira, 4 de maio de 2012

Lista incompleta



Não saberia usar uma mensagem sucinta para explicar sua saudade. Não saberia usar uma frase desarrumada para improvisar um sorriso. Não saberia ficar quieta para esperar a dúvida passar.
Percebeu que não sabia muitas coisas, e aquela era a sua última lista do dia de hoje e seria a primeira a continuar completando no dia seguinte. O papel a esperaria sobre a mesa.
Depois de largá-lo dobrado, tossiu umas quantas vezes, que era o que de mais completo lhe saía da garganta. Sentiu a febre, olhou a janela e parou de pensar, por minutos a fio.

sexta-feira, 9 de março de 2012

A volta do verão (para o Clube da Leitura da Volta)


Naqueles anos de 2010 a 2030, muito havia mudado nas cidades, na cultura e especialmente no clima. Já se falava, próximo a 2012, que o mundo acabaria, mas, em 2012, o mundo persistiu em sua existência.

O que causou espécie, entretanto, foi o fato de que algo começou a mudar no clima da cidade do Rio de Janeiro de modo mais marcante. O verão se iniciara tarde e as águas de março chegaram pontualmente, trazendo frio e exigindo o uso de cachecol e meias de lã na cidade. Ainda não era outono e todos já percebiam que o frio se embrenhava nos orifícios de seus ossos, fazendo com que se recolhessem mais cedo em suas casas. Os chás, os chocolates quentes, tudo que trazia um pouco mais de calor àqueles buraquinhos dos ossos e das malhas de lã, foram se proliferando entre os cariocas, desacostumados às baixas temperaturas. Não é preciso dizer que o frio se intensificou ainda mais nos meses pertinentes. Em junho, por exemplo, a temperatura ficou próxima do zero no dia de São João, o que era fato raríssimo. Na região serrana, em alguns pontos isolados, deu no repórter que nevou. Noticiava-se a morte de mendigos nas esquinas. Nunca se vendeu tanto edredom como naquele ano.

O mais estranho de tudo – e isso os frequentadores de um sebo na Zona Sul da cidade, que se reuniam quinzenalmente para ler e escrever em conjunto comentavam com vividez em suas rodas de cerveja e chopp que se transformavam agora em rodas de chocolate quente e lareira na serra – foi que no final de 2012 e nos anos seguintes não houve verão. As confecções de roupas de praia chiaram, sem ter o que fazer. Cangas, chapéus de praia, protetores solares perderam a serventia. Janeiro não teve sol e as águas de março já não fechavam verão algum. Assim os anos correram, sem que os cariocas pudessem experimentar novamente o calor de 40 graus à sombra. Moradores de Bangu, onde era usual dar a máxima temperatura, e onde já se fritou um ovo no asfalto da Av. Ministro Ari Franco, puderam se sentir um pouco mais aliviados. O sufocamento causado por temperaturas acima dos 40 graus tornou-se quase uma lenda urbana. As pessoas se lembravam com nostalgia do tempo em que o verão existia. Os frequentadores do clube da leitura levavam para seus encontros ensaios, entrevistas, reportagens que giravam em torno da existência de figuras mitológicas de veraneio, mas muitos lembravam-se de férias na praia e juravam que aquilo tudo – calor, suor, vontade de praia, ar condicionado – existira com vigor há poucos anos atrás. Mas muitos já se esqueciam, tanto quanto já não se recordavam do tempo em que não havia a internet, o facebook e o twitter.

O assunto da mudança climática era o tema principal nos telejornais. Os meteorologistas nada entendiam e forjavam teses que mal e mal explicavam os destemperos do clima carioca. Ecologistas bradavam culpas, responsabilidades, medidas urgentíssimas. Os frequentadores do sebo de Copacabana escreviam contos cujos motes eram a vida invernal, as catástrofes climáticas, a vida interplanetária.

Foi somente no ano de 2032, que, em outubro, quando ninguém mais se lembrava o que era o horário de verão – extinto por decreto em 2014 – um calor abrasador se fez como há muito não se via. No jornal, anunciaram o dia mais quente do ano na cidade: 33 graus. O dia seguinte repetiu o calor e os cariocas correram às praias, comprando biquínis e sungas às pressas. Tinham de aproveitar aquela exceção climática que há muito não constatavam. As praias lotadas foram motivo de comemoração. Os frequentadores do sebo na Zona Sul marcaram um encontro quinzenal no quiosque na praia. Quando ninguém esperava, o verão chegou antecipado. O chão das ruas pelava, Bangu deu a máxima novamente. Foi anunciada finalmente a tão esperada volta do verão, que os clubinos-da-leitura, que se reuniam há quase 25 anos, agora mais idosos e experientes, comemoraram no dia 31 de janeiro de 2032, quando retornaram do recesso de fim de ano para ler seus contos coletivamente, no mesmo sebo, em Copacabana, colocando a temperatura do ar condicionado da loja no máximo e marcando o próximo encontro, excepcionalmente, de dia, em Ipanema, embaixo de alguma barraca, de preferência no Posto 9.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Alice de todos nós

Alice saiu correndo do conto da Danielle e caiu no conto do Guilherme. Por uma semana, ela queria viver de facebook. Ter amigos virtuais, conversas de chat, comentários sucintos sobre tudo e sobre coisa alguma, rodear-se de audiovisual no interior de seu micro-apartamento de 27 metros quadrados e mais um terço. Deixou pra lá as indecisões, as inspirações, as aspirações, deixou pra lá o que não se concluía para tirar muitas conclusões, todas elas via twitter de preferência. Queria ver os vídeos de youtube que adiara por meses, queria tirar a semana para si, seleta em seu tubo com ar condicionado, ao som de Tim Maia 1973.

Após uma semana, saiu correndo do conto do Guilherme e caiu novamente no conto da Danielle, porque queria agora alguma paz, e a sutileza de quem aguenta o descanso, de quem insiste na intimidade. Mas tinha saudades de seu autor anterior. Queria ser de ambos: de Danielle e de Guilherme.

Ficou sabendo, entretanto, que havia a Vivian. Alice quis experimentar um conto da Vivian, como seria? Seria indeciso, seria angustiado, seria lancinante? Saiu correndo novamente do conto da Danielle (o coração apertado), pegou a primeira à esquerda (a primeira à direita daria em Guilherme, e essa vereda ela já conhecia, intencionava novidades, ainda que poucas e dosadas) e caiu na Vivian, que não a deixou em paz um segundo sequer. Com a Vivian era assim, ela não dava uma trégua. Não passou dois dias e fugiu novamente, mas até que gostou, de longe.

Nostálgica de Guilherme, nostálgica de Danielle, ainda assim queria uma labareda na qual já não houvesse se queimado, uma umidade em que não tivesse escorregado. Pensou rapidamente, tentou se lembrar de todas as querelas anteriores que um dia acalentou, até ter o insight! Não, o que lhe convinha, agora e não depois, seria um quadrinho do Johandson! Ela queria o colorido de sua caricatura estampada qual espelho, precisava se ver de longe e de perto e entender-se eternamente, pois só nos traços de um desenho conseguiria levitar. O que Alice agora almejava era a rapidez e a graça boba, o pinote pintado. Queria mais de setenta curtis e uns quinze compartilhamentos.

(Essa postagem é de Johandson, é de Danielle Schlossarek e é também de Guilherme Preger.)

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

A viagem de Cida


Fiz as contas mentalmente... quinze... dezesseis... dezenove... vinte e um... vinte e cinco... vinte e cinco? vinte e cinco! Peraí, será que é isso mesmo, posso ter errado, não é muito? Refiz, embora eu fosse boa em contas rápidas. Vinte e quatro... vinte e cinco sim! Faríamos vinte e cinco anos de amizade apesar de nem sermos tão antigas(nada antigas!) assim... Era isso mesmo... Enquanto eu esperava a Cida chegar ao cinema, ficava me lembrando de tudo, do tempo, das quantidades, dos espaços e das vivências percorridas... Era isso mesmo, havíamos nos conhecido no colégio, o velho primário que nem mais tem esse nome...
Lembra, lembra da diretora, a dona Ezyr? Talvez ela lembrasse, eu puxaria o assunto. E quem é que esquece da velha rabugenta, que gritava do alto da escada, que mandava o colégio inteiro fazer filas, se formar, cantar o hino, quem é que esquece dos gritos dela quando estudávamos na maior sala de aula do colégio, no topo de tudo (era o topo de tudo, para mim, à época, a sala de aula chamada de 'salão', status ampliado para quem iniciava o ginásio), quando chegáramos à antiga quinta série, o último ano que eu e Cida fizéramos na escola? Quem é que pode esquecer da voz rouca da velha anunciando (irônica, hoje percebo): "tô chegando... tô chegando...", enquanto subia as escadas e se aproximava, e a algazarra da turma ir se recolhendo assustada, enquanto o furacão-dona-Ezyr ainda não havia passado? Lembrei de um episódio: a Cida levou um brinquedinho da época (saudosos anos 90), chamado fluf, que entrou na moda em pouco tempo, mas ela, como de praxe, a Cida, fora a primeira a levar a novidade à escola (a Cida sempre tinha umas novidades dos States). Não me lembro de quem era a aula - matemática da dona Vanda? geografia do professor Cléber? ciências da dona Clio? -, mas o fato é que a Cida, que não era muito bagunceira, começou um movimento estranho de jogar o fluf (aquela bolinha peluda de plástico, fofinha de pegar) para nossos colegas e, enquanto o professor (quem? quem?) virava-se para o quadro-negro para escrever a matéria, nós jogávamos entre a gente, a turma imensa, as gargalhadas e risinhos contidos, a euforia querendo estourar, a alegria de estar fazendo besteira, uma trivial besteira que gostávamos tanto de conseguir fazer... a turma em um jogo cínico, que pausava quando o professor virava-se para nós, até que a dona Ezyr chegara no momento da brincadeira! O susto! De quem era o brinquedinho felpudo? Da Cida! Deve ter sido a única vez em que a Cida perdera o recreio...
Olhei para o relógio, dez minutos haviam se passado, Cida vinha de Niterói, sua última mensagem: "Vera, tô na ponte. Me aguarde!". Como eu fora capaz de lembrar de algo que ficara ausente de minha memória durante tantos anos? Em que gaveta esse episódio do fluf se escondera? Éramos outras pessoas! Crianças! 11 anos! E agora, com mais de trinta, quanta coisas vivêramos, cada uma de nós, em nossas vidas, o quanto havíamos mudado? Éramos adultas, formadas, profissionais, eu já tinha umas boas dúzias de fios de cabelo branco querendo se apropriar do terreno. Quem podia imaginar que chegaríamos naquilo: naquelas pessoas que éramos? O tempo é estranho... E agora a Cida vinha para uma de suas últimas sessões de cinema no Rio de Janeiro. Em menos de um mês mudar-se-ia para Nova Iorque. Sua ideia era permanecer um ano por lá, algo assim. Mas eu sabia: meus amigos que viajavam para outras cidades e países tinham um cronograma de x tempo e acabavam ficando 3x tempo, 4x tempo, x + y tempo... Em outro país. Distante... Bem longe da rua da escola. Bem longe da dona Ezyr, que é possível que estivesse morta hoje. Longe dos caminhos usuais.
A verdade é que a vida moderna distancia as pessoas, a vida adulta! Sim, eu não via a Cida sempre. Na infância, dez minutos separavam nossas casas. Ela morava em uma pequena rua transversal à minha. Fizéramos clubinhos, brincadeiras, briguinhas, intrigas, amizades e inimizades, fizéramos festas e planos, viagens também. Fizéramos espuma com banheira da Barbie. Fizéramos até mesmo um jornalzinho, quando crianças. E, com o tempo, as escolhas, os caminhos, sim, não nos víamos com a frequência com que nos víamos naqueles anos da escola. Mas amizade de escola tem algo de eterno, a não ser que se mude muito, e não fora o caso, apesar das mudanças. Talvez houvéssemos mudado em iguais veredas, em proporções semelhantes. Sim, mudáramos, porque é impossível não mudar, mas na mesma sintomia, em dimensões vizinhas. Mesmo sem ver a Cida durante anos, quando a encontrava, era como se fosse aquela mesma atmosfera dos anos infantis. Ela não era uma estranha. Não havia silêncio constrangedor. Eu não ficava sem saber o que dizer. Eu não temia que ela me estranhasse, ainda que me estranhasse, porque a Cida costumava estranhar as coisas, mas era o estranhamento dela, que sempre fora dela, e não um estranhamento que une e desune pessoas de fato estranhas entre si. E pensar naquilo - na ausência de espaço e tempo entre duas afetividades - me deu um certo alívio, porque só mesmo uma tal ausência explica tanta familiaridade em esparsos reencontros.
Cida chegou. Em ponto (eu havia chegado antes). Compramos os ingressos e as pipocas. Sim, estávamos fazendo algo que fazíamos muito quando pequenas. Estávamos vendo filmes. E quando ela voltasse de Nova Iorque nada nos impediria que fôssemos ao cinema mais uma vez. Era o que, inequivocamente, acabaria acontecendo.