domingo, 27 de julho de 2014

A Cova da Serpente (The Snake Pit): notas sobre o filme e sobre a iatrogenia das instituições totais



Foi uma grata surpresa descobrir esse filme que é um clássico mas que, para mim, até aqui, era novidade. A Cova da Serpente, The Snake Pit, de 1948, teve várias indicações ao Oscar e foi o 6º lugar de bilheteria no seu ano de exibição. As indicações incluem: melhor filme, melhor atriz (Olivia de Havilland, a Melanie de E o vento levou), melhor direção (Anatole Litvak) e melhor roteiro adaptado (Frank Partos e Millen Brand), uma vez que o filme é baseado em relato semi-autobiográfico de Mary Jane Ward.

É preciso dizer que o início me assustou um pouco (e aviso àqueles que forem conferir), dado que o pensamento de Virginia, a protagonista, era explicitado no desenrolar das primeiras cenas. A personagem interagia com pessoas ao seu redor, muito acuada, e, entre uma e outra interação, todo o seu pensamento vinha de graça para que nós, espectadores, tivéssemos certeza de sua loucura, de que algo não ia bem. Por sorte, isso não se manteve no filme, e não o estragou. Ao contrário, ele foi ficando cada vez melhor e mais dinâmico.

Na trama há Virginia em um sanatório, sinais e sintomas do que não parece ser, nem de perto, uma síndrome psicótica, um doutor legal que mistura eletroconvulsoterapia (numa indicação estranha) e psicoterapia (vá entender...), e as sessões se desenrolam com o aval do retrato do Freud em diversas cenas.
 
Há, no filme, certa ideia muito questionável de que o sofrimento psíquico pode ser desvendado de maneira exata ao fim e ao cabo e de que os meandros do inconsciente são decifráveis, mesmo que após longa investigação clínica. Trata-se da concepção, presente no roteiro, de que tudo tem um motivo, de que tudo se encaixa, de que a neurose é questão de causa e efeito e seus desdobramentos são lineares. Novamente, apesar de tais noções serem questionáveis, nada disso estraga o filme, e o torna até mais interessante, se nos lembrarmos de que em 1948 a psicanálise e a saúde mental, a loucura, por assim dizer, eram ainda mais polêmicas do que hoje em dia (não, infelizmente não deixaram de ser).

Mas o mais interessante é que o filme tem importância e certa atualidade. Importância porque, em 1948, escolheu como temática a ser exibida na tela grande as polêmicas que menciono acima. E não são polêmicas pequenas. O filme encara a loucura de frente: há um médico que “consegue bons resultados só com psicoterapia”, como um doutor da junta médica afirma, em certo momento do filme. É claro que há outros métodos terapêuticos no começo (o choque, como já mencionei), mas depois o tratamento de Virginia deslancha através da palavra, da talking cure, do cuidado, do afeto, do manejo e da clássica transferência.

Além disso, e talvez até mais importante, o filme mostra de modo sutil e brilhante, a iatrogenia das “instituições totais”, para usar o conceito clássico de Erving Goffman, em Manicômios, Prisões e Conventos, ou seja: a forma como a loucura de um modo de funcionar institucional adoece mais do que trata, mais do que cura. O lugar em que se busca a saúde é aquele que intensifica a doença, daí ser iatrogênico.  

No filme, a cova da serpente - esse manicômio em que Virginia está internada - tem seus exemplos de iatrogenia: há uma enfermaria onde um enorme tapete retangular não pode ser pisado e as pacientes devem ficar circulando em volta, um tapete que deve ser poupado e a enfermeira “surta” se alguém se senta sobre ele; ou um baile em que a regra é clara: não se pode dançar mais de três vezes com a mesma pessoa, senão... ; ou as enfermarias, com alimentação e tratamentos diferenciados, talvez de acordo com o grau de adoecimento... de quem? Do paciente, do funcionário ou da instituição como um todo? Esses são apenas alguns pontos emblemáticos que o filme mostra muito bem, lembrando-se sempre que o ano é 1948.

Não havia ainda, no Brasil, a Reforma Psiquiátrica, a abertura política (até porque o filme é anterior ao Golpe Militar de 1964), a reforma sanitária, o SUS ou Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM). E sim, o filme não trata de Brasil, mas trata de algo universal: médicos sobrecarregados, profissionais de saúde cansados, poucos leitos e, sobretudo, a loucura das instituições. Acima de tudo, o filme toca nessa questão que não perdeu sua importância e deve ser sempre o ponto de partida de qualquer prática clínica, não apenas no âmbito da saúde mental: a dignidade no tratamento e acompanhamento de pessoas com sofrimento psíquico, seja ele leve, moderado ou grave.  

sábado, 19 de julho de 2014

Idiossincrasias (conto escrito para o Clube da Leitura)



No dia da mudança, resolvi deixar tudo pra trás. Tudo ou quase tudo. Porque tudo incluiria eu mesma. Incluiria minha imagem de mim mesma. Incluiria memórias, idiossincrasias. Não sei dizer o que são idiossincrasias, mas tenho certeza de que fazem parte do tudo que eu teria de deixar para trás.

No dia da mudança, eu não queria levar nada comigo. Fui com a roupa do corpo, nem vestidos, nem sapatos, nem aqueles que eu usara pouco, nem os que ainda não experimentara, sapatos aguardando ocasião. Eu compraria tudo novo. Não levei tampouco os livros. Parte deles, doei para a biblioteca do Méier. A outra parte eu deixaria na casa dos meus pais, para pensar melhor depois. Vai que eu me arrependesse. Os documentos eu levaria, que jeito? As fotos, resolvi queimar. Só as de infância ficaram com a mamãe, que não aprovava aquele meu modo súbito de fazer as coisas.

Eu tinha 40 anos e segui minha geração (ou o que falam dela em reportagens de revistas de domingo) ao sair de casa, pontualmente, aos 40 anos. Até ali, morara com o papai e com a mamãe, no apartamento do Méier, por todo aquele tempo. Por 40 anos, dormi no mesmo quarto, na mesma cama, e talvez tenha trocado de colchão duas vezes na vida. Mamãe me chamou pra conversar quando soube da minha decisão de sair de casa. Ela disse: Você não está satisfeita com a gente, minha filha? Estou. Eu e seu pai não te damos liberdade suficiente? Dão. Você não é feliz? A essa última pergunta, nada respondi. Decidi me levantar e encerrar o assunto. Vai que eu não fosse feliz mesmo e descobrisse isso na hora de lhe dizer. Papai, por outro lado, fechou a cara por dias quando soube que eu os abandonaria. Mas não é abandono, tentei explicar. Em vão. Eles nada entendiam. Espantosamente, papai estava disponível e de bom-humor no dia da mudança, talvez porque eu não fosse levar nada, não precisaria encaixotar objetos, coisinhas, pertences, apenas me levar ao apartamento novo, no Grajaú.

Mas, antes de sair, minha mãe me chamou até meu quarto, abriu uma das gavetas da bancada, apontou três cadernos, um preto, um amarelo e um azul. E isso?, ela disse. Estavam ali meus diários. Ela havia mexido nas minhas coisas, descobrira minhas memórias, todas ali, em garranchos que eu esperava que ela não tenha sido capaz de decifrar. Você leu?, perguntei, após uma pausa de surpresa. Não, ela disse, sem me encarar nos olhos. Fiquei olhando aqueles cadernos. Peguei o preto e o folheei, ouvi meu pai nos apressar da sala, depois peguei o azul, que ainda não havia acabado. A última data em que eu registrara alguma coisa havia sido meses antes. Recoloquei-o na gaveta, não peguei o último caderno. O que eu faria? Levaria as minhas memórias? Ou as deixaria com os sapatos novinhos em folha, os vestidos caros e todo o resto? Minha mãe aguardava, a consternação escurecendo seus olhos. Eu queria deixar tudo pra trás, inclusive idiossincrasias, mas e aqueles escritos? Minha mãe, silenciosa, nada dizia. Tem certeza de que você não leu?, tornei a perguntar. Ela, dessa vez, nada disse, e meu pai chamou de novo, impaciente. Fechei a gaveta. O que eu faria? Meu raciocínio, tartamudeando dentro de mim, não me levava a uma conclusão sequer. Olhei para minha mãe, visivelmente consternada, cínica e calada, e disse a ela: faça o que quiser com as minhas memórias. Prefiro levar comigo as idiossincrasias.

E fui embora, com a roupa do corpo.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

um pouquinho bem pouquinho sobre filmes



Se, vendo um filme, eu bocejar muito, o problema é meu ou é do filme? Da mesma forma, se eu leio um texto e não entendo, eu sou burra ou autor mandou um pouco mal? Enfim, a capa do DVD me indicava a duração: 146min. Todo um preparo psicológico poderia ser necessário. Meu ânimo seria capaz de sustentar a atenção? De quantos cafés eu precisaria? Mas Uma Mulher Sob Influência, esse filmaço do John Cassavetes, em que Gena Rowlands dá um show interpretando a problemática Mabel, me lembrou novamente que o tempo é relativo (ou não existe, sei lá!). O filme me prendeu do início ao fim e os 146min objetivos duraram menos. Não falo mais nada sobre esse filme que eu não tinha visto ainda, só uma coisa: é maravilhoso e Mabel está muito verossímil (só o psiquiatra que tenta medicá-la é que está um pouco perdido na história). Pois é, ainda tô aqui vendo muitos filmes, e vou falar de alguns, atendendo a pedidos. Outro filmaço, que revi outro dia, foi Fatal, da Isabel Coixet, com a Penelope Cruz e o Ben Kingsley. Eu só lembrava do básico, um professor universitário que não estabelece laços afetivos duradouros (salvo com o melhor amigo e uma mulher com quem ele se encontra há 20 anos mas com quem não conversa, praticamente) e a relação que estabelece com sua aluna. Mas o filme é absolutamente mais do que essas linhas muitos gerais. Consuela, a personagem de Penelope Cruz, diz, em dado momento: ‘quanto tempo perdi dormindo. passei a vida dormindo.’ O que fazemos de nossas vidas é a pergunta chave do filme. E, pra concluir essas impressõezinhas rasas, dois filmes com Olivia de Havilland: To each his own (com o título cafonésimo em português Só resta uma lágrima) - achei que poderia ser arrastado, mas o tempo é essa coisa bandida e confusa difícil de definir, o filme não é nada arrastado e levou o Oscar de Melhor Atriz, além da indicação de Melhor Roteiro Original, e A Cova da Serpente (foto), com indicação de melhor filme, entre outras indicações. Mas, sobre esse último, vou escrever um pouco mais em breve. Aguardem!

domingo, 6 de julho de 2014

prazo


ela só não queria morrer antes do prazo certo. havia um prazo. a ser dado por ela mesma no futuro e que só saberia no momento de. a gente sempre sabe, era o que ela dizia quando lhe perguntavam como ela iria saber o momento de. intuição? não, ela dizia, cansada de mesmices. intuição é explicação rápida, rasa, raquítica. por causa das mesmices e de muito raquitismo, saiu do facebook. não tinha mais tempo, nem paciência, as redes sociais reproduziam em excesso a vida social ao vivo, facebook era sua agrura, vida social era seu horror. pra que mais? pra que tanto? não, não queria cansar dos amigos mais do que poderia se cansar deles na vida real, saiu do facebook, pôs-se a escrever poesia ou, melhor, pôs-se a escrever o que torcia (dedos cruzados) para que poesia fosse. no caderninho azul que denise havia trazido da inglaterra, fez um diário da dor, esse sim nada poético. mas cru. um diário milimétrico, obsessivo, minucioso, espantoso. ela perquiria sua dor, passo a passo. depois, toda sexta-feira, lia o inventário em letra de mão. criava a si mesma por intermédio dos itinerários da dor. vez ou outra, acordava no meio da noite resfolegando. teria corrido alguma maratona num desses pesadelos cujo conteúdo a gente esquece mas cujo tom permanece? o tom do pesadelo impedia que adormecesse novamente, às vezes se levantava. lavava as mãos, sem pressa. na sala, acendia a luz, olhava ao redor. o caderno azul sobre a mesa, as dores ali encerradas. só não queria morrer antes do prazo certo, mas aquelas dores, todas elas, agrupadas, separadas, intermitentes, insistentes, quentes e frias, dores que embaralhavam o entendimento de seu próprio corpo, todas elas faziam com que temesse um adiantamento qualquer. contanto que fosse deliberado, tudo bem. 
mas assim, à sua revelia, fora de seu controle, isso não estava certo.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Anti-Duração - conto n'Algo a Dizer (junho de 2014)

Conto meu na revista Algo a Dizer, edição de junho de 2014.

Existe um minuto congelado dentro de cada minuto normal. Existe também um coágulo de segundo dentro de cada segundo padrão. É aquele pedaço de tempo dentro do tempo em que tudo para, é um cantinho de vida que passa ao largo de tudo o mais que está acontecendo. É o coágulo de tempo dentro do tempo, e entrei nesse coágulo de tempo quando estava no táxi, a caminho daquela festa, imersa em certa euforia e expectativa que precede as grandes noites. 

Continue lendo na Algo a Dizer.