(Texto escrito para o coletivo Caneta, Lente, Pincel, inspirado em imagem intrigante de Paula Sancier.)
quinta-feira, 21 de março de 2013
Isso é tudo ficção
(Texto escrito para o coletivo Caneta, Lente, Pincel, inspirado em imagem intrigante de Paula Sancier.)
quinta-feira, 14 de março de 2013
A janela sem som
1
Ao passar por
aquelas janelas, no caminho do trabalho, Luzia teve dificuldade de superar a
rua e a visão que uma delas lhe proporcionava. Antes de seguir adiante, voltou
e mirou com mais atenção a estranha cegueira ali refletida. Parecia um olho
furado, que não se deixa ver. Remetia a uma mente oca, que não se deixa pensar.
Uma mente em coma, uma mente incômoda: uma mente mineral. Coçou-se, Luzia, lá
pelo alto do crânio. E como não pudesse divisar mais além um reflexo, uma
explicação, uma pontuação, seguiu seu caminho, retomando a velocidade anterior
mais um doze avos para não perder a hora.
2
Na volta, Luzia
trazia Ramón. A hora era outra, o dia escurecia, as ideias tornavam-se
quebradiças, o cansaço assomava ao corpo de cada um, suores já haviam plastificado
as peles e se escamoteavam entre os pelos. Apontou a ele o olho turvo que uma
das janelas representava. Ele aproximou-se, coçando-se também em sua cabeça,
onde a calvície ganhava terreno, mas, sem resposta, afastou-se novamente,
puxando a namorada e refazendo seu trânsito. Preferia não espiar janelas sem
alma.
3
Às dez e meia da
noite daquele mesmo dia, Luzia tomava seu caldo com Ramón e a mãe. Soprava cada
colherada, antes de sorver seu conteúdo. Seu olhar estava solto, ora se
deixando levar pela fumaça, ora perdendo-se na superfície do espesso líquido
que ela planejava ingerir aos poucos. Luzia pensava na janela, que nada dizia
mas exclamava algum tropeço. Ramón dava cabo de seu caldo mais rapidamente e
sem nada dizer, já sabendo que qualquer palavra que atirasse a Luzia ficaria
boiando entre a colher e o caldo, entre o vapor e a boca, e se estatelaria sem
eco. Luzia parecia mais turva do que em qualquer outra noite. Oca e mineral,
cega e impensável.
4
No dia seguinte,
Luzia reparou na janela novamente, seu percurso não mudava e a janela invadia
sua distração. Eram três janelas (ela recontou, didática), mas a terceira
continuava sendo um ponto cego. Um horror que espelha o avesso dos outros. O
avesso de Luzia (o qual ela nunca, nunca, encarava) estava ali, estampado
naquela opacidade que a assustava e que a perseguia. Luzia voltou para casa,
avessa e sem sons.
5
Agora todo dia
Luzia reparava nas janelas, a terceira sem voz, e suas convicções (as de Luzia)
foram se tornando cada vez mais arraigadas. Ela já não era capaz de entender o
mundo de outro jeito que não fosse através delas. E o mundo (em seu entender)
estava esmorecendo. E todo esmorecimento tem um começo. E o começo era aquela
janela, que vinha cobrindo de musgo um lado oculto de Luzia.
6
Ela sabia. Não
havia escolha: Luzia terminou o namoro, Ramón não tomou mais sopas, Luzia
escondeu-se de todos. Se era para acabar com tudo e se os sinais estavam se
espalhando (primeiro na janela, depois no musgo que ocupou o lugar da linfa de
Luzia), que então ela se adiantasse: primeiro deixou de sair de casa, depois
deixou de se levantar da cama, em seguida passou a recusar alimentos. Em
semanas, o psiquiatra recomendou eletrochoque, e quando Luzia recobrou parte de
sua sanidade, voltando a sair de casa, percebeu com nitidez que a janela
continuava a espiá-la.
(Texto escrito para o Caneta, Lente, Pincel, inspirado em fotografia de Danielle Schlossarek)
quinta-feira, 7 de março de 2013
Verme!
Um rápido movimento. Ele chega a encostar a massa disforme, peluda, sarcástica, aquele trocinho que ele não sabe definir, sujeito ou objeto?, mas que está ali a provocá-lo sutilmente, daquele jeito que irrita, que não para, não descansa. O bicho cinzento que resolvera acabar com a sua paz fica por vezes parado, espreitando-o como se não tivesse pulmões, observando-o com olhos ubíquos, mas também se aproxima, recua, toca nele, retorna à posição inicial, saltita, talvez até gargalhe, uma gargalhada miúda e íntima que ninguém mais escuta, mas que ele vê bem, e então novamente um movimento ligeiro e ele chega a perceber que sua unha encosta velozmente no sujeitinho indeterminado que recua sem piscar, recua após cada ataque, e depois volta, foge, pula, volta, pula mais, outro lance, nova aproximação, agora o sujeito indefinido pula em cima dele, caminha em seu corpo como se seu corpo fosse um trajeto pronto, mas ele não vai permitir, vira-se e rodopia no ar, uma pirueta que espanta os que observam, mas não há ninguém observando além do Marcos, no sofá, com um sorriso tão sarcástico quanto o da pequena pulga – se pulga é – que o exaspera (mas não a Marcos), e ele agora está em posição de ataque, num relance pega o bicho, os dois rolam se contorcendo, aquele sujeitinho mínimo vai morrer porque ele vai matá-lo facilmente, eles caem e viram e rodam e seguem juntos para debaixo de alguma coisa que não se pode mais identificar o que é porque ele está pronto para trucidar com ele, porque tem ódio, porque tem ganas de acabar com tudo, mas o bicho também é bom em se livrar de armadilhas, e num pulo que ninguém saberia explicar com argumentos racionais ele já está livre, já está longe, está no alto da mesa olhando-o firme, rente, risonho, aquela sua risadinha interna que poucos são capazes de perceber, e então o monstrinho insuportável some e Félix olha para Marcos, que larga uma vareta com algo pendurado que ele não sabe o que é, se abaixa e o aperta, ‘Agora acabou a brincadeira, Félix, vamos aparar essas suas garras que daqui a pouco não temos mais sofá!’, e o deixa sozinho, sem entender nada, procurando o misto de rato e verme, muitíssimo mais verme do que rato, sem saber onde, e tendo que dar conta (sozinho! sozinho!) de toda a sua raiva e agitação.
(Texto para o Caneta Lente e Pincel, inspirado em composição musical de Gilson Beck.)
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