Isso é tudo ficção
Você me
desculpa. É que quando eu sonhava, eu esquecia tudo. Era isso ou acordar com
tantas imagens misturadas na cabeça, que equivalia a não lembrar nada. Eu não
conseguia traçar minimamente um percurso do sonho, e os meus verbos perdiam a
conjugação. Você então me desculpe, que dessa vez tive que agir diferente. Tive
de segurar o sonho, com as garras que ainda mantenho intactas. Foi preciso
alguma agressividade (confesso, foi preciso muita agressividade). Com as mãos,
tive de enlatá-lo dentro de mim mesma, o sonho que insiste em me fugir da
memória, e parece que tive sucesso (ao menos por enquanto). E eu sonhei com
aquele prédio e aquele bairro e aqueles tempos e aquela gente. Tenho a certeza
de que foi isso, mas se eu não tivesse capturado a imagem, jamais poderia
dizê-lo agora a você, com tamanha precisão. Serve assim desse jeito? Posso
especificar mais e dizer que eu não me via no sonho, embora talvez houvesse
morado naquele prédio. Não sei se fiz parte da história, mas um daqueles quartos
era meu. Tampouco posso afirmar que tenha dito uma frase de efeito (ainda que
um lapso, um chiste ou a pior das anedotas), mas a minha voz ecoava naquelas
paredes. Era o último andar. De lá eu via a parte feia da cidade. Não tinha mar
algum, mas céu azul até acontecia vez ou outra. Era a Zona Norte, em seu
esplendor de cimento, e por que não? No meu sonho (que eu apertei tão bem que cheguei
a esmagá-lo), havia as pessoas do passado (mistura de avós com tios, irmãos com
primos), os sentimentos inglórios (mistura de ódio com mágoa, vergonha com
solidão), os cenários primitivos (mistura de berço com quarto, playground com
salão), e havia também o que agora não há verbo que possa definir (é, meu
problema primário é com verbos, apenas isso). Esse sonho eu consegui guardar, e
todo dia eu o repasso, em sua sequência que me parece exata, mas que se distancia
da lógica e que muda a cada dia. Você me desculpe, mas pode ser que não seja
nada disso. Pode ser que eu tenha inventado aquela imagem antiga do lugar onde
morei para poder puxar historinhas baratas que todo mundo quer contar ao
analista. Pode ser que a fabulação domine o meu modo de pensar as coisas. Pode
ser que você não deva confiar em
mim. Você me desculpa, mas acho que mais do que mentira, tudo
isso é ficção.
(Texto escrito para o coletivo Caneta, Lente, Pincel, inspirado em imagem intrigante de Paula Sancier.)
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