quinta-feira, 14 de março de 2013

A janela sem som





1
Ao passar por aquelas janelas, no caminho do trabalho, Luzia teve dificuldade de superar a rua e a visão que uma delas lhe proporcionava. Antes de seguir adiante, voltou e mirou com mais atenção a estranha cegueira ali refletida. Parecia um olho furado, que não se deixa ver. Remetia a uma mente oca, que não se deixa pensar. Uma mente em coma, uma mente incômoda: uma mente mineral. Coçou-se, Luzia, lá pelo alto do crânio. E como não pudesse divisar mais além um reflexo, uma explicação, uma pontuação, seguiu seu caminho, retomando a velocidade anterior mais um doze avos para não perder a hora.

2
Na volta, Luzia trazia Ramón. A hora era outra, o dia escurecia, as ideias tornavam-se quebradiças, o cansaço assomava ao corpo de cada um, suores já haviam plastificado as peles e se escamoteavam entre os pelos. Apontou a ele o olho turvo que uma das janelas representava. Ele aproximou-se, coçando-se também em sua cabeça, onde a calvície ganhava terreno, mas, sem resposta, afastou-se novamente, puxando a namorada e refazendo seu trânsito. Preferia não espiar janelas sem alma. 

3
Às dez e meia da noite daquele mesmo dia, Luzia tomava seu caldo com Ramón e a mãe. Soprava cada colherada, antes de sorver seu conteúdo. Seu olhar estava solto, ora se deixando levar pela fumaça, ora perdendo-se na superfície do espesso líquido que ela planejava ingerir aos poucos. Luzia pensava na janela, que nada dizia mas exclamava algum tropeço. Ramón dava cabo de seu caldo mais rapidamente e sem nada dizer, já sabendo que qualquer palavra que atirasse a Luzia ficaria boiando entre a colher e o caldo, entre o vapor e a boca, e se estatelaria sem eco. Luzia parecia mais turva do que em qualquer outra noite. Oca e mineral, cega e impensável.

4
No dia seguinte, Luzia reparou na janela novamente, seu percurso não mudava e a janela invadia sua distração. Eram três janelas (ela recontou, didática), mas a terceira continuava sendo um ponto cego. Um horror que espelha o avesso dos outros. O avesso de Luzia (o qual ela nunca, nunca, encarava) estava ali, estampado naquela opacidade que a assustava e que a perseguia. Luzia voltou para casa, avessa e sem sons.

5
Agora todo dia Luzia reparava nas janelas, a terceira sem voz, e suas convicções (as de Luzia) foram se tornando cada vez mais arraigadas. Ela já não era capaz de entender o mundo de outro jeito que não fosse através delas. E o mundo (em seu entender) estava esmorecendo. E todo esmorecimento tem um começo. E o começo era aquela janela, que vinha cobrindo de musgo um lado oculto de Luzia. 

6
Ela sabia. Não havia escolha: Luzia terminou o namoro, Ramón não tomou mais sopas, Luzia escondeu-se de todos. Se era para acabar com tudo e se os sinais estavam se espalhando (primeiro na janela, depois no musgo que ocupou o lugar da linfa de Luzia), que então ela se adiantasse: primeiro deixou de sair de casa, depois deixou de se levantar da cama, em seguida passou a recusar alimentos. Em semanas, o psiquiatra recomendou eletrochoque, e quando Luzia recobrou parte de sua sanidade, voltando a sair de casa, percebeu com nitidez que a janela continuava a espiá-la.

(Texto escrito para o Caneta, Lente, Pincel, inspirado em fotografia de Danielle Schlossarek)

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