sábado, 23 de novembro de 2013

Primeira pessoa


Indecisa ao absurdo. Ainda bem que não sou de libra, se fosse, não daria um passo. A cada gesto, uma indecisão coagulante. Congelante. Me bastam, até aqui, os sofrimentos típicos de canceriana. O mote da indecisão agora é se fico com o narrador de primeira pessoa ou de terceira. Nesse combate narrativo que não encontra vencedor, eu vinha escrevendo em terceira pessoa as cinquenta páginas dessa que já é a terceira versão. Agora resolvi mudar, mas não me resolvo. Então faço um capítulo por vez, vou reescrevendo e colocando o 'eu', devagar. Releio, penso, tomo um café, volto, salvo um novo arquivo da narrativa paralela. Se eu fosse libriana, nem sei o que seria de mim. Mas aos pouquinhos vou no ensaio e erro, como se fosse, essa escrita que não tem fim, questão de doze passos, um dia de cada vez, um capítulo também.

domingo, 22 de setembro de 2013

trilha sonora


A trilha sonora da cidade, início de primavera, aparência de verão, é unânime. Nas redes sociais, vê as opiniões. Todos vendo os mesmos shows. Ela, ao contrário, desliga a televisão. Coloca o dvd com a trilha sonora que lhe pertence, a música que lhe concerne. A trilha sonora que escolhe para aquele domingo, início de primavera, antônimo do inverno. É sua, apropria-se daqueles acordes, que coreografam muito bem junto com seu pensamento. O ritmo é o mesmo. Vai para a sala da casa, escancara as janelas, abre o notebook. Deixa a melodia que vem do quarto preencher a casa sem faxina. Mas, antes de começar o trabalho, dirige-se à cozinha, passa o café e prepara os olhos para arderem um pouco menos.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Autorretrato com dois r aos 34

 Na bolsa, ela carrega:
- 4 pastilhas (de mel)
- 1 pacotinho (halls verde)
- quinto volume (do freud)...
- só um batom (barato)

Na nuca, tem desenhados:
- o tempo (bem contadinho)
- os planos (pra 6ª feira)
- os sonhos (aborto espontâneo)
- vontade (de graciliano)

Nos olhos, ela camufla:
- o medo (sem objeto)
- a raiva (sem precedentes)
- saudades (difusas, certeiras)
- ardência (insônias inteiras)

Nas mãos, ela esconde:
- o gesto (sem decisão)
- a unha (lasca roída)
- o calo (adormecido)
- a palma (teia complexa)

Faz 34 em julho.
Odeia: 2ª feira.
Tolera: fanta uva.


(Texto escrito para o Caneta Lente Pincel.)

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Dias Roucos e Vontades Absurdas - Lançamento

 
 
Porque a vida é irônica, estou em dias tão roucos, mas tão roucos, que não teve jeito. Minha garganta entrou em colapso, a tosse tomou conta do meu leque de assuntos, descobri uma rinite no alergista, entrei no antibiótico na quinta-feira e agora estou tentando parar de tossir. É muita emoção!! Afinal de contas, anteontem, 17 de julho, quarta-feira, na Editora Oito e Meio, foi lançado meu primeiro livro de contos, que esgotou no mesmo dia. E isso não cabe na minha garganta! :)

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Circunvoluções



Deise relê antigos textos. Cadernos de outras eras, ausência de pontos finais, manchas de café ou lágrima. Está sozinha em seu quarto e sala na Rua dos Inválidos. Abre gavetas, na esperança de achar uma novidade também antiga. Anda pela casa, que não é tão grande assim. Sente o chão frio e limpo, a primavera entra pelos pés, a cidade é transparente nessa época. Vai à cozinha, olha indecisa ao seu redor. Sai de lá vencida. A cama a espera também. Um livro que ainda não chegou à metade aguarda sereno. Tudo ao redor demonstra paciência infinita. Esconde todos os calendários da casa, a época é propícia à perdição. Lê durante uma ou duas horas algo que não escreveu e sente saudades de digitar um refogado qualquer de palavras que sirva de criação para a tarde alargada. Vai novamente às gavetas, especula os armários, a inquietude transpira junto com o suor. Deise procura outros textos que não parecem seus. Aqui, ali, acolá. Em silêncio, de preferência. Faz circunvoluções ao redor de seu próprio eixo e retorna ao ponto de partida.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Diálogo (para o Caneta, Lente, Pincel)

Você me pergunta se existe uma alma. Você me pergunta se além da alma existe a mente. Se existe, o que é a mente, você questiona, onde ela fica? Você quer saber se é possível apontá-la. A alma ou a mente? Qualquer uma, você diz, cismado.
Você me pergunta se existe uma coisa chamada morte. Eu retruco perguntando da vida, você nada diz. A gente fica se olhando, você, casmurro, eu, idiota, e ninguém tem a resposta. Segundos se passam, alcançamos os minutos, a vida, se flui, não é aqui, nessa sala de janelas fechadas. A vida, se flui, é lá fora.
Você me pergunta se o corpo é separado da alma, você me pergunta se Descartes pensava. Eu digo que sim, claro que sim, Descartes pensava. Você me diz, óbvio, óbvio, óbvio, que então ele existia. Você me pergunta se prefiro Jesus ou John Lennon, eu te pergunto se minha vida vale a pena, você não sabe se me diz a verdade. Você quer dizer alguma coisa, balbucia, engasga, o refluxo te condena a me dizer o que não quero ouvir.
Você pensa num lugar onde foi há muito tempo (havia um rio, havia grutas, o céu espiava com cores de outra ordem) e se pergunta, sem nada me dizer (eu adivinho, sei de tudo) se o lugar existe enquanto você não está lá. A isso não sei responder, sou sincera. Levanto outro assunto e afirmo logo que prefiro Platão a Aristóteles. Você diz que prefere Jung a Freud, eu teço comentários sarcásticos a respeito da sua mãe, você prefere não dizer um palavrão. Novamente o silêncio nos faz ponderar nossas vidas, nossas mortes, nossas vidas-mortes-severinas.
Eu recito um poema de Fernando Pessoa, você rebate com os bichos escrotos dos Titãs. Um suspiro escorrega para fora de mim e não há como recolocá-lo em seu lugar. Um soluço pula fora de você. Novamente, nenhuma conclusão. Acordo algum. O silêncio nos prefere.
Eu existo minha pergunta, você descarta sua resposta. Não sabemos o que dizer um ao outro, mas, quando me levanto, cansada, digo que sei o que fiz com a minha alma. Sei onde ela está, sei o que dizer dela, há uma palavra que se pode atribuir à alma, ela existe, mesmo que sua substância me ultrapasse. Digo que sei o que fiz com ela e que, se se pode falar dela, ela é.
Você pergunta: O que ela é? O que você fez com ela?
Digo, sem acanhamento, que minha alma está retorcidinha, espicaçada, picotada, digo que minha alma, por mim desfigurada, já não é ninguém sem mim. Eu a pisoteei sem dó, e agora ela está debaixo dos teus pés.  

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Lavoisier



Parafraseando Lavoisier, tudo se transforma, mas nem tudo se digere.

quarta-feira, 8 de maio de 2013

Votação

Hoje eu fiquei feliz e fiquei triste, ou vice-versa. Triste por ter visto a primeira votação fazer passar o projeto de lei que cria uma empresa pública para gerir a saúde do município do Rio. Ainda que se esteja falando de empresa pública e, portanto, de administração indireta, estamos falando de saúde e estamos falando de um setor da vida e da administração pública onde temos servidores públicos concursados, estatutários, com estabilidade, que dão duro e que podem ir à Câmara Municipal ou se manifestar contra certas diretrizes políticas sem medo de perseguição, sem medo de perder o emprego. Estamos falando de saúde, em que as políticas públicas são debatidas e construídas diariamente, e onde o medo de perder o emprego, de não ter estabilidade, pode aquietar e calar as pessoas. Fiquei triste por ver que a lógica que rege a votação são interesses nada públicos. Fiquei triste por perceber a apatia de muita gente que poderia estar ali, por exemplo, ou divulgando mais esse absurdo que está acontecendo. Em vez de injetarem recursos e investimentos na saúde, deixam-na padecer, deixam-na à míngua, deixam a saúde sem saúde, com o perdão do trocadilho, e assim pode-se falar mal da saúde pública, pode-se dizer que não funciona, não é assim que fazem com as universidades públicas? (No primeiro provão em que a Psicologia fez parte, a UFRJ foi a única faculdade de psicologia que tirou A no Provão, não houve pra ninguém, não houve pra nenhuma faculdade particular, apesar de falarem mal da greve dos professores - isso é um exemplo.) Sim, falem mal do SUS, ele tem muito que melhorar, mas antes de 1988, quem não tinha carteira assinada não podia se consultar em um posto de sáude, não poderia fazer um tratamento contra o câncer, no INCA, por exemplo. Será que a maneira de melhorar as coisas é privatizar? Será que uma empresa pública é a melhor opção para a gestão da saúde? Porque saúde não é BANCO, saúde não é empresa que regula energia, petróleo, SAÚDE NÃO DÁ LUCRO, NÃO É PARA DAR LUCRO, e isso é bom. Que um BNDES, um BB, uma Eletrobrás sejam geridas pela administração indireta, com servidores celetistas, vá lá, mas a saúde, a educação? Mas hoje fiquei feliz também. Feliz de conseguir deixar algumas coisas da minha vida pessoal de lado para acompanhar a votação que aconteceu na Câmara Municipal, poder ver direitinho os discursos e os votos, poder estar perto, virar de costas quando de certos discursos demagogos e horripilantes e apavorantes, poder gritar contra a demagogia. Se houvesse mais gente lá, o constrangimento desses vereadores que deveriam nos representar seria maior e a votação não passaria, não aconteceria. Então, posso dizer que hoje meu dia valeu a pena.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

De braços abertos, o pensamento é volátil

Armário montado. Roupas dentro. Cinco valises eliminadas do quarto. Uma caixa enorme na lixeira. Mil outros lixinhos em seus devidos lugares. Espaço se abrindo na casa. Sol e vento no primeiro dia de maio. O ar circula, o pensamento é volátil. Feriado. Hora de acordar: qualquer coisa depois das dez, dez e meia. Roupa lavada. Roupa secando. Comidinha da mamãe. Um alô para os três gatinhos. Novos objetos encontrados, guardados, remanejados. Casa varrida. Limpeza, oxigenação. Mais espaço nos meus pulmões. Inspiro. Expiro. Gosto de certos vazios. O ar descarrega a mente, deposita-a em outras paragens. Nada como um primeiro de maio com armário novinho em folha e espaço para girar, de braços abertos, no quarto. Sorrio.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

O começo do ano



Vem cá, esse ano já começou começando, não é? Apesar de começar mesmo depois do carnaval (vide o exemplo do Congresso, que só vota o orçamento sabe-se lá quando), apesar de janeiro ser um mês sui generis, esse ano começou começando, com coisas e mais coisas e mais coisas. Porque, de modo geral, eu sempre tenho a impressão de que janeiro começa se espreguiçando, preparando-se pra tomar fôlego, observando o cenário e preparando as armas. Mas esse ano está meio diferente. Não me refiro a fatos ou eventos de repercussão nacional, até porque já tivemos uma tragédia (e estou começando a contabilizar, em minhas teorias sobre os anos pares e ímpares e a regularidade que eu insisto em colocar neles, que todo mês de janeiro tem uma tragédia acontecendo), mas falo das miudezas da vida diária, os eventos humanos de cada um, a vida como ela é no aqui agora das relações humanas. Sei lá, pra mim, ao menos, o ano começou começando, ele não está esperando nada por enquanto não. Já tá de pé. Já tá arranhando. Já mirou o alvo.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

As caixas chegaram

 
As caixas chegaram. Duas horas embalando livros. Livros, documentos, poucas revistas. Sete caixas. Faltam outras. Ainda tem as louças. Ainda bem que não tem armários e a televisão fica pra trás. Ainda bem que não tem cama, mas tem colchão. A bateria praticável ainda é uma incógnita no meu futuro. Amanhã todos os nossos pertences, meus e de Jow, todos eles, vão sair da Glória, atravessar a Lapa e chegar na Tijuca. Meus tempos gloriosos vão ficando pra trás, mas vêm vindo (torço, torço) meus tempos Valparadisíacos. Deve ser um upgrade (torço, torço). De qualquer modo, adorei o chorinho, adorei a pizza do chico (que já conhecia, mas que ficou a uma ladeira de mim), adorei o samba da feira, cuja aleatoriedade não nos permite acompanhá-lo, adorei o Aterro logo ali, adorei a vizinhança do Gui, adorei poder ir a pé pra Lapa, adorei o Triboz, adorei comer saladinhas e árabes com a Luísa no Gregora, adorei as visitas da Dani, adorei o Taberna, adorei o carnaval a poucos metros, adorei todas as figuras que transitam pela minha rua e mais ainda saber a hora cheia com os sinos da Igreja, que eu não frequento mas que é linda, isso é. Adorei a iluminação verde do Templo Positivista, cujos porões já conheci muito antes. A nostalgia só não me domina mais porque, enfim, tem as caixas. Elas chegaram. Estão à espera. Exigem mãos à obra.

quinta-feira, 21 de março de 2013

Isso é tudo ficção

Você me desculpa. É que quando eu sonhava, eu esquecia tudo. Era isso ou acordar com tantas imagens misturadas na cabeça, que equivalia a não lembrar nada. Eu não conseguia traçar minimamente um percurso do sonho, e os meus verbos perdiam a conjugação. Você então me desculpe, que dessa vez tive que agir diferente. Tive de segurar o sonho, com as garras que ainda mantenho intactas. Foi preciso alguma agressividade (confesso, foi preciso muita agressividade). Com as mãos, tive de enlatá-lo dentro de mim mesma, o sonho que insiste em me fugir da memória, e parece que tive sucesso (ao menos por enquanto). E eu sonhei com aquele prédio e aquele bairro e aqueles tempos e aquela gente. Tenho a certeza de que foi isso, mas se eu não tivesse capturado a imagem, jamais poderia dizê-lo agora a você, com tamanha precisão. Serve assim desse jeito? Posso especificar mais e dizer que eu não me via no sonho, embora talvez houvesse morado naquele prédio. Não sei se fiz parte da história, mas um daqueles quartos era meu. Tampouco posso afirmar que tenha dito uma frase de efeito (ainda que um lapso, um chiste ou a pior das anedotas), mas a minha voz ecoava naquelas paredes. Era o último andar. De lá eu via a parte feia da cidade. Não tinha mar algum, mas céu azul até acontecia vez ou outra. Era a Zona Norte, em seu esplendor de cimento, e por que não? No meu sonho (que eu apertei tão bem que cheguei a esmagá-lo), havia as pessoas do passado (mistura de avós com tios, irmãos com primos), os sentimentos inglórios (mistura de ódio com mágoa, vergonha com solidão), os cenários primitivos (mistura de berço com quarto, playground com salão), e havia também o que agora não há verbo que possa definir (é, meu problema primário é com verbos, apenas isso). Esse sonho eu consegui guardar, e todo dia eu o repasso, em sua sequência que me parece exata, mas que se distancia da lógica e que muda a cada dia. Você me desculpe, mas pode ser que não seja nada disso. Pode ser que eu tenha inventado aquela imagem antiga do lugar onde morei para poder puxar historinhas baratas que todo mundo quer contar ao analista. Pode ser que a fabulação domine o meu modo de pensar as coisas. Pode ser que você não deva confiar em mim. Você me desculpa, mas acho que mais do que mentira, tudo isso é ficção. 

(Texto escrito para o coletivo Caneta, Lente, Pincel, inspirado em imagem intrigante de Paula Sancier.)

quinta-feira, 14 de março de 2013

A janela sem som





1
Ao passar por aquelas janelas, no caminho do trabalho, Luzia teve dificuldade de superar a rua e a visão que uma delas lhe proporcionava. Antes de seguir adiante, voltou e mirou com mais atenção a estranha cegueira ali refletida. Parecia um olho furado, que não se deixa ver. Remetia a uma mente oca, que não se deixa pensar. Uma mente em coma, uma mente incômoda: uma mente mineral. Coçou-se, Luzia, lá pelo alto do crânio. E como não pudesse divisar mais além um reflexo, uma explicação, uma pontuação, seguiu seu caminho, retomando a velocidade anterior mais um doze avos para não perder a hora.

2
Na volta, Luzia trazia Ramón. A hora era outra, o dia escurecia, as ideias tornavam-se quebradiças, o cansaço assomava ao corpo de cada um, suores já haviam plastificado as peles e se escamoteavam entre os pelos. Apontou a ele o olho turvo que uma das janelas representava. Ele aproximou-se, coçando-se também em sua cabeça, onde a calvície ganhava terreno, mas, sem resposta, afastou-se novamente, puxando a namorada e refazendo seu trânsito. Preferia não espiar janelas sem alma. 

3
Às dez e meia da noite daquele mesmo dia, Luzia tomava seu caldo com Ramón e a mãe. Soprava cada colherada, antes de sorver seu conteúdo. Seu olhar estava solto, ora se deixando levar pela fumaça, ora perdendo-se na superfície do espesso líquido que ela planejava ingerir aos poucos. Luzia pensava na janela, que nada dizia mas exclamava algum tropeço. Ramón dava cabo de seu caldo mais rapidamente e sem nada dizer, já sabendo que qualquer palavra que atirasse a Luzia ficaria boiando entre a colher e o caldo, entre o vapor e a boca, e se estatelaria sem eco. Luzia parecia mais turva do que em qualquer outra noite. Oca e mineral, cega e impensável.

4
No dia seguinte, Luzia reparou na janela novamente, seu percurso não mudava e a janela invadia sua distração. Eram três janelas (ela recontou, didática), mas a terceira continuava sendo um ponto cego. Um horror que espelha o avesso dos outros. O avesso de Luzia (o qual ela nunca, nunca, encarava) estava ali, estampado naquela opacidade que a assustava e que a perseguia. Luzia voltou para casa, avessa e sem sons.

5
Agora todo dia Luzia reparava nas janelas, a terceira sem voz, e suas convicções (as de Luzia) foram se tornando cada vez mais arraigadas. Ela já não era capaz de entender o mundo de outro jeito que não fosse através delas. E o mundo (em seu entender) estava esmorecendo. E todo esmorecimento tem um começo. E o começo era aquela janela, que vinha cobrindo de musgo um lado oculto de Luzia. 

6
Ela sabia. Não havia escolha: Luzia terminou o namoro, Ramón não tomou mais sopas, Luzia escondeu-se de todos. Se era para acabar com tudo e se os sinais estavam se espalhando (primeiro na janela, depois no musgo que ocupou o lugar da linfa de Luzia), que então ela se adiantasse: primeiro deixou de sair de casa, depois deixou de se levantar da cama, em seguida passou a recusar alimentos. Em semanas, o psiquiatra recomendou eletrochoque, e quando Luzia recobrou parte de sua sanidade, voltando a sair de casa, percebeu com nitidez que a janela continuava a espiá-la.

(Texto escrito para o Caneta, Lente, Pincel, inspirado em fotografia de Danielle Schlossarek)

quinta-feira, 7 de março de 2013

Verme!



Um rápido movimento. Ele chega a encostar a massa disforme, peluda, sarcástica, aquele trocinho que ele não sabe definir, sujeito ou objeto?, mas que está ali a provocá-lo sutilmente, daquele jeito que irrita, que não para, não descansa. O bicho cinzento que resolvera acabar com a sua paz fica por vezes parado, espreitando-o como se não tivesse pulmões, observando-o com olhos ubíquos, mas também se aproxima, recua, toca nele, retorna à posição inicial, saltita, talvez até gargalhe, uma gargalhada miúda e íntima que ninguém mais escuta, mas que ele vê bem, e então novamente um movimento ligeiro e ele chega a perceber que sua unha encosta velozmente no sujeitinho indeterminado que recua sem piscar, recua após cada ataque, e depois volta, foge, pula, volta, pula mais, outro lance, nova aproximação, agora o sujeito indefinido pula em cima dele, caminha em seu corpo como se seu corpo fosse um trajeto pronto, mas ele não vai permitir, vira-se e rodopia no ar, uma pirueta que espanta os que observam, mas não há ninguém observando além do Marcos, no sofá, com um sorriso tão sarcástico quanto o da pequena pulga – se pulga é – que o exaspera (mas não a Marcos), e ele agora está em posição de ataque, num relance pega o bicho, os dois rolam se contorcendo, aquele sujeitinho mínimo vai morrer porque ele vai matá-lo facilmente, eles caem e viram e rodam e seguem juntos para debaixo de alguma coisa que não se pode mais identificar o que é porque ele está pronto para trucidar com ele, porque tem ódio, porque tem ganas de acabar com tudo, mas o bicho também é bom em se livrar de armadilhas, e num pulo que ninguém saberia explicar com argumentos racionais ele já está livre, já está longe, está no alto da mesa olhando-o firme, rente, risonho, aquela sua risadinha interna que poucos são capazes de perceber, e então o monstrinho insuportável some e Félix olha para Marcos, que larga uma vareta com algo pendurado que ele não sabe o que é, se abaixa e o aperta, ‘Agora acabou a brincadeira, Félix, vamos aparar essas suas garras que daqui a pouco não temos mais sofá!’, e o deixa sozinho, sem entender nada, procurando o misto de rato e verme, muitíssimo mais verme do que rato, sem saber onde, e tendo que dar conta (sozinho! sozinho!) de toda a sua raiva e agitação.

(Texto para o Caneta Lente e Pincel, inspirado em composição musical de Gilson Beck.)