segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

A viagem de Cida


Fiz as contas mentalmente... quinze... dezesseis... dezenove... vinte e um... vinte e cinco... vinte e cinco? vinte e cinco! Peraí, será que é isso mesmo, posso ter errado, não é muito? Refiz, embora eu fosse boa em contas rápidas. Vinte e quatro... vinte e cinco sim! Faríamos vinte e cinco anos de amizade apesar de nem sermos tão antigas(nada antigas!) assim... Era isso mesmo... Enquanto eu esperava a Cida chegar ao cinema, ficava me lembrando de tudo, do tempo, das quantidades, dos espaços e das vivências percorridas... Era isso mesmo, havíamos nos conhecido no colégio, o velho primário que nem mais tem esse nome...
Lembra, lembra da diretora, a dona Ezyr? Talvez ela lembrasse, eu puxaria o assunto. E quem é que esquece da velha rabugenta, que gritava do alto da escada, que mandava o colégio inteiro fazer filas, se formar, cantar o hino, quem é que esquece dos gritos dela quando estudávamos na maior sala de aula do colégio, no topo de tudo (era o topo de tudo, para mim, à época, a sala de aula chamada de 'salão', status ampliado para quem iniciava o ginásio), quando chegáramos à antiga quinta série, o último ano que eu e Cida fizéramos na escola? Quem é que pode esquecer da voz rouca da velha anunciando (irônica, hoje percebo): "tô chegando... tô chegando...", enquanto subia as escadas e se aproximava, e a algazarra da turma ir se recolhendo assustada, enquanto o furacão-dona-Ezyr ainda não havia passado? Lembrei de um episódio: a Cida levou um brinquedinho da época (saudosos anos 90), chamado fluf, que entrou na moda em pouco tempo, mas ela, como de praxe, a Cida, fora a primeira a levar a novidade à escola (a Cida sempre tinha umas novidades dos States). Não me lembro de quem era a aula - matemática da dona Vanda? geografia do professor Cléber? ciências da dona Clio? -, mas o fato é que a Cida, que não era muito bagunceira, começou um movimento estranho de jogar o fluf (aquela bolinha peluda de plástico, fofinha de pegar) para nossos colegas e, enquanto o professor (quem? quem?) virava-se para o quadro-negro para escrever a matéria, nós jogávamos entre a gente, a turma imensa, as gargalhadas e risinhos contidos, a euforia querendo estourar, a alegria de estar fazendo besteira, uma trivial besteira que gostávamos tanto de conseguir fazer... a turma em um jogo cínico, que pausava quando o professor virava-se para nós, até que a dona Ezyr chegara no momento da brincadeira! O susto! De quem era o brinquedinho felpudo? Da Cida! Deve ter sido a única vez em que a Cida perdera o recreio...
Olhei para o relógio, dez minutos haviam se passado, Cida vinha de Niterói, sua última mensagem: "Vera, tô na ponte. Me aguarde!". Como eu fora capaz de lembrar de algo que ficara ausente de minha memória durante tantos anos? Em que gaveta esse episódio do fluf se escondera? Éramos outras pessoas! Crianças! 11 anos! E agora, com mais de trinta, quanta coisas vivêramos, cada uma de nós, em nossas vidas, o quanto havíamos mudado? Éramos adultas, formadas, profissionais, eu já tinha umas boas dúzias de fios de cabelo branco querendo se apropriar do terreno. Quem podia imaginar que chegaríamos naquilo: naquelas pessoas que éramos? O tempo é estranho... E agora a Cida vinha para uma de suas últimas sessões de cinema no Rio de Janeiro. Em menos de um mês mudar-se-ia para Nova Iorque. Sua ideia era permanecer um ano por lá, algo assim. Mas eu sabia: meus amigos que viajavam para outras cidades e países tinham um cronograma de x tempo e acabavam ficando 3x tempo, 4x tempo, x + y tempo... Em outro país. Distante... Bem longe da rua da escola. Bem longe da dona Ezyr, que é possível que estivesse morta hoje. Longe dos caminhos usuais.
A verdade é que a vida moderna distancia as pessoas, a vida adulta! Sim, eu não via a Cida sempre. Na infância, dez minutos separavam nossas casas. Ela morava em uma pequena rua transversal à minha. Fizéramos clubinhos, brincadeiras, briguinhas, intrigas, amizades e inimizades, fizéramos festas e planos, viagens também. Fizéramos espuma com banheira da Barbie. Fizéramos até mesmo um jornalzinho, quando crianças. E, com o tempo, as escolhas, os caminhos, sim, não nos víamos com a frequência com que nos víamos naqueles anos da escola. Mas amizade de escola tem algo de eterno, a não ser que se mude muito, e não fora o caso, apesar das mudanças. Talvez houvéssemos mudado em iguais veredas, em proporções semelhantes. Sim, mudáramos, porque é impossível não mudar, mas na mesma sintomia, em dimensões vizinhas. Mesmo sem ver a Cida durante anos, quando a encontrava, era como se fosse aquela mesma atmosfera dos anos infantis. Ela não era uma estranha. Não havia silêncio constrangedor. Eu não ficava sem saber o que dizer. Eu não temia que ela me estranhasse, ainda que me estranhasse, porque a Cida costumava estranhar as coisas, mas era o estranhamento dela, que sempre fora dela, e não um estranhamento que une e desune pessoas de fato estranhas entre si. E pensar naquilo - na ausência de espaço e tempo entre duas afetividades - me deu um certo alívio, porque só mesmo uma tal ausência explica tanta familiaridade em esparsos reencontros.
Cida chegou. Em ponto (eu havia chegado antes). Compramos os ingressos e as pipocas. Sim, estávamos fazendo algo que fazíamos muito quando pequenas. Estávamos vendo filmes. E quando ela voltasse de Nova Iorque nada nos impediria que fôssemos ao cinema mais uma vez. Era o que, inequivocamente, acabaria acontecendo.