ela só não queria morrer
antes do prazo certo. havia um prazo. a ser dado por ela mesma no futuro e que
só saberia no momento de. a gente sempre sabe, era o que ela dizia quando
lhe perguntavam como ela iria saber o momento de. intuição? não, ela dizia,
cansada de mesmices. intuição é explicação rápida, rasa, raquítica. por causa
das mesmices e de muito raquitismo, saiu do facebook. não tinha mais tempo, nem
paciência, as redes sociais reproduziam em excesso a vida social ao vivo,
facebook era sua agrura, vida social era seu horror. pra que mais? pra que
tanto? não, não queria cansar dos amigos mais do que poderia se cansar deles na
vida real, saiu do facebook, pôs-se a escrever poesia ou, melhor, pôs-se a
escrever o que torcia (dedos cruzados) para que poesia fosse. no caderninho
azul que denise havia trazido da inglaterra, fez um diário da dor, esse sim
nada poético. mas cru. um diário milimétrico, obsessivo, minucioso, espantoso. ela
perquiria sua dor, passo a passo. depois, toda sexta-feira, lia o inventário em
letra de mão. criava a si mesma por intermédio dos itinerários da dor. vez ou
outra, acordava no meio da noite resfolegando. teria corrido alguma maratona
num desses pesadelos cujo conteúdo a gente esquece mas cujo tom permanece? o
tom do pesadelo impedia que adormecesse novamente, às vezes se levantava.
lavava as mãos, sem pressa. na sala, acendia a luz, olhava ao redor. o caderno
azul sobre a mesa, as dores ali encerradas. só não queria morrer antes do prazo
certo, mas aquelas dores, todas elas, agrupadas, separadas, intermitentes,
insistentes, quentes e frias, dores que embaralhavam o entendimento de seu próprio corpo, todas elas faziam com que temesse um
adiantamento qualquer. contanto que fosse deliberado, tudo bem.
mas assim, à sua
revelia, fora de seu controle, isso não estava certo.
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