No dia da mudança, resolvi deixar tudo pra trás. Tudo ou quase tudo. Porque tudo incluiria eu mesma. Incluiria minha imagem de mim mesma. Incluiria memórias, idiossincrasias. Não sei dizer o que são idiossincrasias, mas tenho certeza de que fazem parte do tudo que eu teria de deixar para trás.
No dia da mudança, eu não queria levar nada
comigo. Fui com a roupa do corpo, nem vestidos, nem sapatos, nem aqueles que eu
usara pouco, nem os que ainda não experimentara, sapatos aguardando ocasião. Eu
compraria tudo novo. Não levei tampouco os livros. Parte deles, doei para a
biblioteca do Méier. A outra parte eu deixaria na casa dos meus pais, para
pensar melhor depois. Vai que eu me arrependesse. Os documentos eu levaria, que
jeito? As fotos, resolvi queimar. Só as de infância ficaram com a mamãe, que
não aprovava aquele meu modo súbito de fazer as coisas.
Eu tinha 40 anos e segui minha geração (ou o
que falam dela em reportagens de revistas de domingo) ao sair de casa,
pontualmente, aos 40 anos. Até ali, morara com o papai e com a mamãe, no
apartamento do Méier, por todo aquele tempo. Por 40 anos, dormi no mesmo
quarto, na mesma cama, e talvez tenha trocado de colchão duas vezes na vida.
Mamãe me chamou pra conversar quando soube da minha decisão de sair de casa.
Ela disse: Você não está satisfeita com a gente, minha filha? Estou. Eu e seu
pai não te damos liberdade suficiente? Dão. Você não é feliz? A essa última
pergunta, nada respondi. Decidi me levantar e encerrar o assunto. Vai que eu não
fosse feliz mesmo e descobrisse isso na hora de lhe dizer. Papai, por outro
lado, fechou a cara por dias quando soube que eu os abandonaria. Mas não é
abandono, tentei explicar. Em vão. Eles nada entendiam. Espantosamente, papai
estava disponível e de bom-humor no dia da mudança, talvez porque eu não fosse
levar nada, não precisaria encaixotar objetos, coisinhas, pertences, apenas me
levar ao apartamento novo, no Grajaú.
Mas, antes de sair, minha mãe me chamou até meu
quarto, abriu uma das gavetas da bancada, apontou três cadernos, um preto, um
amarelo e um azul. E isso?, ela disse. Estavam ali meus diários. Ela havia
mexido nas minhas coisas, descobrira minhas memórias, todas ali, em garranchos
que eu esperava que ela não tenha sido capaz de decifrar. Você leu?, perguntei,
após uma pausa de surpresa. Não, ela disse, sem me encarar nos olhos. Fiquei
olhando aqueles cadernos. Peguei o preto e o folheei, ouvi meu pai nos apressar
da sala, depois peguei o azul, que ainda não havia acabado. A última data em que
eu registrara alguma coisa havia sido meses antes. Recoloquei-o na gaveta, não
peguei o último caderno. O que eu faria? Levaria as minhas memórias? Ou as
deixaria com os sapatos novinhos em folha, os vestidos caros e todo o resto?
Minha mãe aguardava, a consternação escurecendo seus olhos. Eu queria deixar
tudo pra trás, inclusive idiossincrasias, mas e aqueles escritos? Minha mãe,
silenciosa, nada dizia. Tem certeza de que você não leu?, tornei a perguntar.
Ela, dessa vez, nada disse, e meu pai chamou de novo, impaciente. Fechei a
gaveta. O que eu faria? Meu raciocínio, tartamudeando dentro de mim,
não me levava a uma conclusão sequer. Olhei
para minha mãe, visivelmente consternada, cínica e calada, e disse a ela: faça
o que quiser com as minhas memórias. Prefiro levar comigo as idiossincrasias.
E fui embora, com a roupa do corpo.
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