Começo com uma advertência: não é
fácil fazer esse texto sobre a peça Hilda
e Freud abdicando-me totalmente da minha condição de psicanalista. Minha
apreciação (e a emoção que senti em alguns específicos momentos da peça) está
completamente ligada ao fato de ser analista, de me identificar com Freud
(uau!) aqui e ali, em talvez compreender o sentido de certas palavras e certos
impasses sutis pelo fato de ocupar o lugar de analista. Sim, me emocionei e me
arrepiei e posso dizer que gostei muito.
Feita essa advertência, podemos
começar. E, dessa vez, vou partes.
Trata-se, o tema da peça, da análise
da poeta e escritora Hilda Doolittle
com Freud, na época em que o nazismo começava a crescer perigosamente, momento
também em que Freud já tinha criado e desenvolvido amplamente sua teoria
psicanalítica e estava às voltas com a urgência de sair de Viena por causa das
ameaças da guerra.
Assim, reitero que o tema de Hilda e
Freud é muito interessante por diversas razões. Interessa a mim, pelo motivo já
explicitado na advertência, mas creio que deve interessar a todos. Àqueles que
fazem ou já fizeram análise ou outro tipo de terapia, mesmo a
cognitivo-comportamental, ou a reichiana, ou a Gestalt, até para que indagações
sejam despertadas sobre os diferentes tipos de processos terapêuticos e
analíticos que podem existir. Não só por isso, mas pela temática humana que se
propõe a contemplar, principalmente no que se refere à teoria da supermente que
a personagem de Hilda tenta desenvolver, como se esse supermente fosse uma
instância psíquica que não se aloja em nenhum lugar palpável e que explicaria a
fonte da inspiração e da arte, a fonte da criatividade humana de modo geral.
O texto, do psicanalista Antonio Quinet, que também assina a
direção junto com Regina Miranda, e que está contracenando com Bel
Kutner no papel de Freud, é fantástico. Ao mesmo tempo em que nos coloca em
contato com as ideias de Hilda Doolittle sobre sua vida e sobre a arte, é também
didático ao falar de alguns dos conceitos básicos da psicanálise (como a
transferência e a mudança na teoria freudiana das pulsões, para citar dois
exemplos), sem contar as vinhetas clínicas de momentos cruciais de qualquer
análise, muito bem pinçados e representados: o início (e todo o estranhamento
que lhe é próprio e que deveria ser, imagino, ainda maior, sendo Freud o
analista em questão, nem tão alto, nem tão jovem), o convite a deitar no divã,
interpretações de sonhos, imagens e associações livres e o término
(interminável?) dessa específica experiência analítica que foi a de Hilda no
contexto perturbador do início de uma guerra.
A atuação de Bel Kutner, como Hilda,
também é muito boa: é possível entender a dificuldade de ser quem era, com os
conflitos existenciais próprios de uma poeta, de uma artista, e as inúmeras
perdas que sofreu, sua relação afetiva com o irmão, morto na Primeira Grande
Guerra, suas reflexões sobre a criação artística e sua agitada e corajosa vida
amorosa. Hilda estava muito à frente de seu tempo naqueles dias dos anos 30 do século
passado. Hilda estaria à frente de seu tempo se vivesse hoje, em plena era de
redes sociais e poli-amor. A peça tem o mérito de instigar nossa curiosidade
sobre essa personagem histórica do século XX.
O que há de problemático no
espetáculo e que, se fosse modificado, talvez permitisse um melhor
aproveitamento do texto naquilo que tem de beleza e sensibilidade é a atuação
de Quinet, que, tudo bem, não é ator. É psicanalista e corajoso o suficiente
para subir ao palco e contracenar. Mas não é ator, e o tempo todo nos lembramos
disso. Suas falas, belíssimas no que se refere ao conteúdo, acabam ficando
visivelmente automáticas e robotizadas quando ele as pronuncia. A beleza de seu
conteúdo é ofuscada pela deficiência de sua forma. Eu, como estava fascinada
pelo texto (conteúdo) e pelos fragmentos que de fato me emocionaram, consegui
relevar essa falha. Mas o espectador que quer ver uma peça, que sai de casa
querendo gostar e se surpreender e que talvez não seja nem tão exigente, esse
espectador hipotético não-analista que espera um texto interessante e uma
atuação à altura do texto, talvez não releve tanto e se incomode mais do que eu
me incomodei. E assim, um texto ótimo acaba por perder um pouco do brilho que
possui. Quinet poderia fazer outra escolha dramatúrgica, enquanto diretor, com
o fito de valorizar o texto que tem em mãos e do qual é o autor: a escolha de
outro ator que possa fazer o papel do pai da psicanálise.
Quanto ao cenário, clean, senti falta
também de um divã verdadeiro, de uma poltrona verdadeira, de talvez uma
escrivaninha com livros, escritos e algumas estatuetas que representassem o
consultório onde Freud atendia seus pacientes. O recurso das projeções é
belíssimo e poético, sobretudo quando concatenadas às falas de Hilda sobre suas
teorias da mente. As imagens projetadas na parede branca não devem ser
desperdiçadas, mas a ausência de alguns objetos no cenário, neste caso, também
acabam por aproximar a peça mais de uma leitura dramática do que de uma
dramaturgia mais complexa. Às vezes um cenário com decoração minimalista pode
ser muito acertado, mas, neste caso, algo fica faltando e não é preenchido pelo
texto e pelas projeções. E acredito que essa falta nada tem a ver com a falta
de que a psicanálise tanto trata.
Finalmente, outro ponto que devo
mencionar diz respeito ao teatro: a acústica, infelizmente, não é tão boa. A
fala dos atores, quando viram de costas para a plateia, acaba por ser
prejudicada. É difícil ouvir o que dizem, embora isso aconteça poucas vezes,
felizmente. O som, nessas ocasiões, fica muito abafado. Consegui ouvir tudo, mas
senti que o público se esforçava para não fazer nenhum movimento e preservar o
silêncio absoluto, justamente porque a peça é muito interessante e ninguém
queria perder uma fala ou outra por não conseguir escutar. Talvez os atores,
enquanto a temporada for neste teatro, devam ter o cuidado de falar virados
para o público, para que nada se perca.
De resto, recomendo vigorosamente,
sobretudo para quem tem curiosidade com os assuntos ligados à psicodinâmica e
às relações humanas. A temática é ótima, o texto é excelente, os personagens
são maravilhosos e as falhas que mencionei apenas diminuem as qualidades
inerentes à peça e são fáceis de modificar em uma próxima temporada. Enfim,
levarei o programa da peça na minha próxima sessão de análise e recomendarei à
minha analista.
FICHA
TÉCNICA
Texto:
Antonio Quinet
Elenco: Bel
Kutner e Antonio Quinet
Direção:
Antonio Quinet e Regina Miranda
Direção de
arte e cenografia: Analu Prestes
Videocenografia:
Mídias Organizadas
Iluminação:
Fernanda Mantovani e Tiago Mantovani
Trilha
Sonora: Regina Miranda sobre a obra de Rodolfo Caesar
Figurino:
Beto de Abreu
Visagismo:
Uirande Holanda
Preparação
vocal: Rose Gonçalves
Fotografia:
Flavio Colker
Programação
visual: Mary Paz
Assessoria
de imprensa: Lu Nabuco Assessoria em Comunicação
Comunicação
em mídias sociais: Radha Barcelos
Direção de
produção: Alice Cavalcante e Conrado Lima - Sábios Projetos
Assistência
de produção: Luísa Reis e Marcio Vigna
Co-produção:
Sábios Projetos e Atos e Divãs
Realização: Cia
Inconsciente em Cena
Serviço
Espetáculo: Hilda
e Freud
Estreia: 21
de novembro
Temporada
até 20 de dezembro
Horário:
Sábados, às 20h e domingos, às 19h
Local:
Cidade das Artes – Sala Eletroacústica (Av. das Américas, 5300, Barra)
Bilheteria:
ter a dom de 13h às 19h. Em dias de espetáculo de 13h até 30 min antes do início
do espetáculo
Ingressos:
R$60,00 (inteira) / R$30,00 (meia)
Duração: 60
minutos
Gênero:
Drama
Classificação:
12 anos
Capacidade
do Teatro: 80 lugares
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