quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Teatro: Hilda e Freud


Começo com uma advertência: não é fácil fazer esse texto sobre a peça Hilda e Freud abdicando-me totalmente da minha condição de psicanalista. Minha apreciação (e a emoção que senti em alguns específicos momentos da peça) está completamente ligada ao fato de ser analista, de me identificar com Freud (uau!) aqui e ali, em talvez compreender o sentido de certas palavras e certos impasses sutis pelo fato de ocupar o lugar de analista. Sim, me emocionei e me arrepiei e posso dizer que gostei muito.

Feita essa advertência, podemos começar. E, dessa vez, vou partes.

Trata-se, o tema da peça, da análise da poeta e escritora Hilda Doolittle com Freud, na época em que o nazismo começava a crescer perigosamente, momento também em que Freud já tinha criado e desenvolvido amplamente sua teoria psicanalítica e estava às voltas com a urgência de sair de Viena por causa das ameaças da guerra.

Assim, reitero que o tema de Hilda e Freud é muito interessante por diversas razões. Interessa a mim, pelo motivo já explicitado na advertência, mas creio que deve interessar a todos. Àqueles que fazem ou já fizeram análise ou outro tipo de terapia, mesmo a cognitivo-comportamental, ou a reichiana, ou a Gestalt, até para que indagações sejam despertadas sobre os diferentes tipos de processos terapêuticos e analíticos que podem existir. Não só por isso, mas pela temática humana que se propõe a contemplar, principalmente no que se refere à teoria da supermente que a personagem de Hilda tenta desenvolver, como se esse supermente fosse uma instância psíquica que não se aloja em nenhum lugar palpável e que explicaria a fonte da inspiração e da arte, a fonte da criatividade humana de modo geral.

O texto, do psicanalista Antonio Quinet, que também assina a direção junto com Regina Miranda, e que está contracenando com Bel Kutner no papel de Freud, é fantástico. Ao mesmo tempo em que nos coloca em contato com as ideias de Hilda Doolittle sobre sua vida e sobre a arte, é também didático ao falar de alguns dos conceitos básicos da psicanálise (como a transferência e a mudança na teoria freudiana das pulsões, para citar dois exemplos), sem contar as vinhetas clínicas de momentos cruciais de qualquer análise, muito bem pinçados e representados: o início (e todo o estranhamento que lhe é próprio e que deveria ser, imagino, ainda maior, sendo Freud o analista em questão, nem tão alto, nem tão jovem), o convite a deitar no divã, interpretações de sonhos, imagens e associações livres e o término (interminável?) dessa específica experiência analítica que foi a de Hilda no contexto perturbador do início de uma guerra.

A atuação de Bel Kutner, como Hilda, também é muito boa: é possível entender a dificuldade de ser quem era, com os conflitos existenciais próprios de uma poeta, de uma artista, e as inúmeras perdas que sofreu, sua relação afetiva com o irmão, morto na Primeira Grande Guerra, suas reflexões sobre a criação artística e sua agitada e corajosa vida amorosa. Hilda estava muito à frente de seu tempo naqueles dias dos anos 30 do século passado. Hilda estaria à frente de seu tempo se vivesse hoje, em plena era de redes sociais e poli-amor. A peça tem o mérito de instigar nossa curiosidade sobre essa personagem histórica do século XX.



O que há de problemático no espetáculo e que, se fosse modificado, talvez permitisse um melhor aproveitamento do texto naquilo que tem de beleza e sensibilidade é a atuação de Quinet, que, tudo bem, não é ator. É psicanalista e corajoso o suficiente para subir ao palco e contracenar. Mas não é ator, e o tempo todo nos lembramos disso. Suas falas, belíssimas no que se refere ao conteúdo, acabam ficando visivelmente automáticas e robotizadas quando ele as pronuncia. A beleza de seu conteúdo é ofuscada pela deficiência de sua forma. Eu, como estava fascinada pelo texto (conteúdo) e pelos fragmentos que de fato me emocionaram, consegui relevar essa falha. Mas o espectador que quer ver uma peça, que sai de casa querendo gostar e se surpreender e que talvez não seja nem tão exigente, esse espectador hipotético não-analista que espera um texto interessante e uma atuação à altura do texto, talvez não releve tanto e se incomode mais do que eu me incomodei. E assim, um texto ótimo acaba por perder um pouco do brilho que possui. Quinet poderia fazer outra escolha dramatúrgica, enquanto diretor, com o fito de valorizar o texto que tem em mãos e do qual é o autor: a escolha de outro ator que possa fazer o papel do pai da psicanálise.

Quanto ao cenário, clean, senti falta também de um divã verdadeiro, de uma poltrona verdadeira, de talvez uma escrivaninha com livros, escritos e algumas estatuetas que representassem o consultório onde Freud atendia seus pacientes. O recurso das projeções é belíssimo e poético, sobretudo quando concatenadas às falas de Hilda sobre suas teorias da mente. As imagens projetadas na parede branca não devem ser desperdiçadas, mas a ausência de alguns objetos no cenário, neste caso, também acabam por aproximar a peça mais de uma leitura dramática do que de uma dramaturgia mais complexa. Às vezes um cenário com decoração minimalista pode ser muito acertado, mas, neste caso, algo fica faltando e não é preenchido pelo texto e pelas projeções. E acredito que essa falta nada tem a ver com a falta de que a psicanálise tanto trata.

Finalmente, outro ponto que devo mencionar diz respeito ao teatro: a acústica, infelizmente, não é tão boa. A fala dos atores, quando viram de costas para a plateia, acaba por ser prejudicada. É difícil ouvir o que dizem, embora isso aconteça poucas vezes, felizmente. O som, nessas ocasiões, fica muito abafado. Consegui ouvir tudo, mas senti que o público se esforçava para não fazer nenhum movimento e preservar o silêncio absoluto, justamente porque a peça é muito interessante e ninguém queria perder uma fala ou outra por não conseguir escutar. Talvez os atores, enquanto a temporada for neste teatro, devam ter o cuidado de falar virados para o público, para que nada se perca.


De resto, recomendo vigorosamente, sobretudo para quem tem curiosidade com os assuntos ligados à psicodinâmica e às relações humanas. A temática é ótima, o texto é excelente, os personagens são maravilhosos e as falhas que mencionei apenas diminuem as qualidades inerentes à peça e são fáceis de modificar em uma próxima temporada. Enfim, levarei o programa da peça na minha próxima sessão de análise e recomendarei à minha analista.

FICHA TÉCNICA

Texto: Antonio Quinet
Elenco: Bel Kutner e Antonio Quinet
Direção: Antonio Quinet e Regina Miranda
Direção de arte e cenografia: Analu Prestes
Videocenografia: Mídias Organizadas
Iluminação: Fernanda Mantovani e Tiago Mantovani
Trilha Sonora: Regina Miranda sobre a obra de Rodolfo Caesar
Figurino: Beto de Abreu
Visagismo: Uirande Holanda
Preparação vocal: Rose Gonçalves
Fotografia: Flavio Colker
Programação visual: Mary Paz
Assessoria de imprensa: Lu Nabuco Assessoria em Comunicação
Comunicação em mídias sociais: Radha Barcelos
Direção de produção: Alice Cavalcante e Conrado Lima - Sábios Projetos
Assistência de produção: Luísa Reis e Marcio Vigna
Co-produção: Sábios Projetos e Atos e Divãs 
Realização: Cia Inconsciente em Cena 

  
Serviço
Espetáculo: Hilda e Freud
Estreia: 21 de novembro
Temporada até 20 de dezembro
Horário: Sábados, às 20h e domingos, às 19h
Local: Cidade das Artes – Sala Eletroacústica (Av. das Américas, 5300, Barra)
Bilheteria: ter a dom de 13h às 19h. Em dias de espetáculo de 13h até 30 min antes do início do espetáculo
Ingressos: R$60,00 (inteira) / R$30,00 (meia)
Duração: 60 minutos
Gênero: Drama
Classificação: 12 anos
Capacidade do Teatro: 80 lugares

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