O que você vê?, Um homem cansado, Um homem cansado?, Exausto, um homem exausto, com a boca entreaberta em um suspiro de dor, Um homem exausto?, Extenuado, e ele olha para cima, a cabeça cercada de enxaquecas, ele quer chorar mas não sabe como, quer dizer algo mas não tem a quem, está sozinho na penumbra, esse homem sem forças, e um facho de luz do apartamento vizinho incide sobre seu rosto de séculos.
Calei-me e traguei o cigarro. Esperei. Olhávamos o céu, era véspera de abril, o calor embalsamava minha vontade de viver. Devolvi a pergunta.
O que você vê?, Vejo uma bruxa, uma feiticeira, uma mulher antiga fazendo uma prece, Uma prece?, Ela pede pela volta de alguém, tem três dedos apontados para cima, um pouco dobrados, uma mulher com manias diversas e histórias detalhadas, Quais, quantas?, Uma octogenária que ainda tem esperança, De quê?, De esquecer tudo, E que mais?, Ela tem um passado tão comprido que, toda noite, antes de dormir, põe-se a dobrá-lo com paciência e asco, e o faz diversas vezes, de modo que caiba na gaveta de cima da cômoda, Ela tem uma cômoda?, De mogno, E o que mais ela guarda na cômoda?, Meias, casacos, uma caixa de gargantilhas que não usa mais, dentes de leite dos netos, cartas que pretende queimar, diários que não almeja reler.
Apaguei o cigarro quando ela acabou de falar. Ficamos em silêncio. Continuei olhando o céu, que já se desfazia, com a noite. Pus-me de pé, afanei parcelas de ar com a força dos meus pulmões e, sem vontade de sorrir, entrei em casa, cansada do jogo.
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