Era perto do ano novo. Todos naquele clima de virada, de promessas, de futuras dietas, de roupas brancas. O carteiro chamou. Vinha uma carta de um amigo que eu não via há muitos anos. O Edivaldo. Ele mesmo! Havia se mudado com a filha e a esposa para Roraima. Era militar. Tinha essas coisas de ser transferido. Quando ele contou a notícia de que teria de se mudar, fiquei com vontade de chorar. O meu melhor amigo ia embora, aquele que durante a faculdade me explorava nos trabalhos em grupo, aquele que colava de mim nas provas do colégio, mas que era o mais engraçado e tão problemático quanto eu, daí nossa imensa afinidade. Eu gostava da amizade dele porque ele era um problemático que disfarçava e eu achava que, só de estar ao seu lado, poderia imitá-lo e me tornar uma problemática que ninguém sabe que é. Ele era tímido e inseguro mas parecia muito dono de si. Era quase um atleta, com sua rotina de acordar cedo, ir à praia, caminhar, correr, andar de bicicleta. Eu não sabia fazer nada daquilo, mas dançava melhor que ele e escrevia melhor também, embora ele jurasse a si mesmo que não (e eu sabia ler alguns de seus pensamentos, melhor até que ele). A gente ficava nessas competições inúteis e acabou que, com o passar dos anos, ele se tornou meu confidente, e eu dele, até que outros amigos do sexo oposto viessem, para um e para outro. Era ótimo ter um confidente do sexo masculino. Eu podia saber as opiniões de um legítimo representante da macheza brasileira. E ele era legítimo mesmo, quase um puro sangue!
O fato é que nós crescemos juntos, essa é a verdade. Fizemos a mesma faculdade, nos formamos na mesma profissão, lamentamos juntos os fracassos, as frustrações, as dificuldades do mercado de trabalho, estudamos e lemos livros juntos, colocamos em prática 34% de nossos planos juvenis e sempre que nos escrevíamos falávamos em nossos longos e inumeráveis ps que realizaríamos em breve os outros 66% (entre os quais fundar uma instituição pan-total, um lugar que oferecesse de tudo um pouco, de psicanálise a rituais religiosos de quaisquer credos, de cursos de malabarismo a esportes radicais, de oficinas de fazer amigos a aulas de memorização da história mundial, de práticas sadhus a cursos de como paquerar com sucesso na noite carioca, e por aí vai). Mas depois que ele foi para Roraima, nosso contato foi diminuindo, apesar dos facebooks, skypes e aeroportos da vida.
O engraçado foi o inusitado daquela carta escrita a mão, que o carteiro entregou após chamar no portão. É, o Edivaldo sabia ser inusitado. Ele tinha uma agenda de contatos que deve ter sumido após o casamento, assim como tinha umas bicicletas que quase voavam. Ele sempre tinha uma opinião resmungona também. Mas aquilo de escrever carta era demais.
Reconheci a letra no envelope na hora (afinal, estudáramos juntos tantas vezes que, mesmo ele indo na minha aba na faculdade, ao menos eu o fazia copiar as questões de alguns trabalhos que fazíamos em grupo) e abri rapidamente: o que ele estaria aprontando agora? Fiz as contas mentalmente: a filhinha dele, Clarissa, devia estar com sete anos. Do envelope, caiu uma foto: a menina estava linda. Desdobrei a carta, uma folha de papel com aquela letrinha espremida dele.
"Querida Vilma, estou voltando em breve! E nada melhor do que as notícias escritas com a letra da emoção! Não vejo a hora de voltar, de rever minha família, meus velhos amigos, minha cidade, não vejo a hora de ir à Lapa dar um rolé, como estará a Lapa, aquela mesma à qual fui tantas vezes e em cujo prato cuspi tantas outras? Como estará tudo? Estou comprando um carro e vamos todos fazer uma viagem, quando eu chegar. Minha volta está prevista para março. Vá marcando suas férias, vá dando seu jeito, comigo agora é assim, depois que virei milico deixei a indecisão de lado, aquela indecisão adolescente de faculdade e resolvo tudo com uma ordem ou duas. E vamos falar com nossos velhos amigos problemáticos: Brenão, Gustavinho, Brunona, Miguel, Queila. Vamos dar um rolé pela Costa Verde pra matar as saudades dos velhos tempos! E a Clarissa vai comigo, que ela tá amarradona em esporte radical e resolveu que quer ser poeta. Você tem que ler as poesias dela! Grande abraço, daqueles calorosos!"
Fechei a carta feliz e imaginei como ia caber aquela gente toda dentro do carro: o Brenão era enorme, como o nome diz; a Brunona só não era mais Brunona porque tinha um Brenão pra superar; e mais o Miguel, a Queila, o Gustavinho. Como seria aquilo? Será que ele comprara um daqueles super carros mega enormes em que cabe uma família italiana inteira? O que estaria aprontando meu grande amigo Edivaldo? O fato é que ele estaria voltando. E que os amigos sempre voltam. Fechei a carta com uma certeza: as distâncias são sempre relativas e voltam a ser tão pequenas como nos velhos tempos. Os amigos voltam, os intervalos acabam, as pessoas vêm e vão. E quando a gente olha pra trás e vê o tempo que passou longe, aquilo não era nada. Na porta dos quarenta anos, Edivaldo estava voltando com a filha atleta e em breve todos nós estaríamos na estrada, rindo como nos anos da faculdade. Quem sabe o Brenão poderia levar sua namorada? Aquela que ele demorou tanto pra encontrar? Disso o Edivaldo não sabia, mas seria a primeira novidade que escreveria no e-mail que mandaria a ele, naquela mesma noite (porque responder por carta também já é demais!).
Um comentário:
muito bonito!
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