Ao definir
um produto de cultura corre-se sempre o risco de reduzi-lo. Encaixar uma criação artística nessa
ou naquela legenda significa ajustá-la aos atributos da legenda, que são os que
seu definidor conseguiu detectar, deixando outros de fora, possivelmente. Para falar sobre Ela (Her), filme de ficção científica que se passa em um
futuro próximo, a ideia que me vem à cabeça, de modo insistente, é a seguinte: D.R., sigla designada para a expressão "discutir a relação". Quando penso em Ela, penso em D.R., e se tal sigla pode evocar algo chato, esse não é o caso de Ela, que considero um ótimo filme (bem, alguns vinte minutos a menos o tornariam excelente). Mas por que D.R.?
No
filme, dirigido por Spike Jonze (Quero ser John Malkovitch; Adaptação) Theodore
(Joaquim Phoenix) trabalha escrevendo cartas para pessoas diversas, colocando-se
no lugar delas, versando sobre relacionamentos e, por que não?, discutindo
relações. Além disso, Theodore está se divorciando e pensa frequentemente na
ex-mulher. A solidão que o envolve é sublinhada, no filme, pela vista magnífica
de seu apartamento, que, apesar de bela, realça a tristeza própria das distâncias. Tudo ao redor do protagonista é cinzento, à exceção de suas camisas amarelas, vermelhas. Theodore paira acima de tudo e não parece feliz assim. Está à procura, mas saberá o personagem definir o objeto direto de sua busca?
Quando adquire um sistema operacional com a simpática voz de Scarlett
Johansson, tudo começa a mudar. O software é programado para agir do modo como
Theodore gostaria que agisse, sem repetir os defeitos de sua mãe (que, em sua
extrema incapacidade de ouvir, interrompia o filho, para falar sempre de si, tal como o próprio gerenciador do sistema operacional, quando a programação ainda está em processo),
mas sendo tal software nada menos que uma super mãe idealizada (com tudo que ela tem de bom, com tudo o que um filho quer de bom e sem tudo o que seria péssimo em uma mãe como qualquer outra), que está
sempre lá, muito mais do que suficientemente boa (para usar o conceito do
psicanalista D.W.Winnicott), acolhendo, incentivando, preenchendo todos os
vazios, sendo extremamente eficiente em organizar sua vida e estando disponível
a qualquer hora do dia, em qualquer lugar, em qualquer circunstância. Samantha é inteligentíssima, tem
senso de humor e é criativa. Samantha, em suma, é um sistema operacional
extremamente humano.
Nesse
ponto, não é difícil lembrar-se dos replicantes do Ridley Scott, em Blade Runner,
e na filosófica questão que o filme trouxe: o que faz do humano, humano? A questão
de Blade Runner pode ser trasladada para Ela: um sistema operacional como
Samantha é humano, apesar de ter sido programado? Ou seria quase humano? É possível ser quase humano? Qual a autenticidade de tudo
o que Samantha diz e de tudo o que diz pensar? Os sentimentos que demonstra, a prosódia
de sua voz, os suspiros, as risadas, trata-se de software ou de humanidade? Uma coisa
exclui a outra? No entanto, ainda me parece que Blade Runner é muito mais
filosófico e que Ela, sem demérito na legenda que coloco, uma das tantas
possíveis, é um filme sobre relacionamento.
A partir daqui,
spoiler...
Entre
Theodore e Samantha, como em qualquer relacionamento, as coisas vão ficando
difíceis e os espaços para a clássica D.R. vão se ampliando. Se no início somos
levados a crer que existe a relação perfeita – com um software criado em um
futuro próximo, o que pode nos dar a esperança ou o estranhamento de não
estarmos muito distantes da realidade retratada no filme – podemos acompanhar a
derrocada dessa relação (ou os altos e baixos inerentes a qualquer
relacionamento, digamos, humano). Os problemas não se devem ao fato de se
tratar de um relacionamento sui generis. Ali podemos ver espelhado tudo o que
acontece em uma relação normal. Afinal, para quem se apaixona, o outro
inicialmente pode beirar a perfeição, tal como Samantha aparece aos olhos de
Theodore. As projeções estão a mil por hora. Mas os descompassos vão
acontecendo. Samantha se ressente do corpo que não tem e de uma humanidade que
pode ser forjada, ficando insegura e recorrendo a soluções equivocadas. Theodore se vê aquém do desenvolvimento de
Samantha e se incomoda sobretudo com sua capacidade de se relacionar com
milhares de outras pessoas enquanto ele julgava ser o único. Como em qualquer
relação, a ilusão de que tudo é um se desfaz para dar lugar à realidade de que
cada vida é uma vida à parte.
O
filme remete também à obra clássica Admirável Mundo Novo, de Huxley, em que os seres humanos
cada vez mais dirigem seus olhares a telas, levando-nos a pensar o quão próximo
disso tudo estamos, com nossos tablets, smartphones, vídeos em ônibus, etc. Parece que não nos
olhamos mais uns aos outros ou, ao fazê-lo, necessitamos de recursos digitais
para intermediar as relações e as vivências. A subjetividade vai se
transformando em alguma coisa difícil de definir, mas que requer, cada vez
mais, uma lente que não deixa de ser um terceiro, como a lente palavrosa das
redes sociais (sem nenhuma crítica implícita, pois as uso). Quanto maior a
impressão de que estamos ligados em tudo e em todos, e que tudo e todos estão
sob nosso controle, menos nos olhamos sem mediadores, embrenhados num
solipsismo não tão distante daquele dos usuários do metrô e seus respectivos
sistemas operacionais que o filme nos mostra.
Em algum momento, o espectador pode se perguntar se todos os sistemas operacionais serão Samantha, tapando com sensibilidade digna de nota todos os vazios possíveis. Mas talvez não estejam falando sozinhas, essas pessoas do metrô ou mesmo Theodore. Estão falando com espelhos em forma de Samanthas, que atualizam mães perfeitas provedoras de tudo o que cada um almeja de si mesmo. Ainda que seja assim, esse modo de relacionamento não está livre de gaps que nunca serão preenchidos, pois são tais gaps que conferem toda a graça em se relacionar.
Em algum momento, o espectador pode se perguntar se todos os sistemas operacionais serão Samantha, tapando com sensibilidade digna de nota todos os vazios possíveis. Mas talvez não estejam falando sozinhas, essas pessoas do metrô ou mesmo Theodore. Estão falando com espelhos em forma de Samanthas, que atualizam mães perfeitas provedoras de tudo o que cada um almeja de si mesmo. Ainda que seja assim, esse modo de relacionamento não está livre de gaps que nunca serão preenchidos, pois são tais gaps que conferem toda a graça em se relacionar.
Um comentário:
Adorei a resenha e suas referências cinematográficas e literárias. Estamos cada vez mais próximos de uma realidade assim, sendo relações "virtuais" já bastante comuns e aceitas. Filmes como "ela" trazem essa questão a debate.
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