sexta-feira, 13 de junho de 2014

Palavrório (conto para o clube da leitura de 10 de junho de 2014)


Nunca imaginei os percalços de namorar uma mulher. Sofri no começo, no meio e no fim. Quatro anos em que minha voz já não é a mesma, tornei-me afônica de um modo surpreendente. Falamos tanto sobre nós duas que já não mais me reconheço. Por experiência posso dizer que namorar uma mulher é cansativo. Verborrágico.  Palavroso. Não no sentido de que as mulheres falam demais. Sendo eu mulher, não reproduziria estereótipos assim. Mas duas mulheres juntas precisam muito se explicar e nomear cada partícula de sentimento, cada minúcia de movimento, cada parcela de gesto. E o caso é que as mulheres (isso reproduzo, não é estereótipo) são profusas em sentimentos, ricas em movimentos, e o que mais sabem fazer são gestos.

Antes da Mércia, eu havia tido dois namoros estáveis, primeiro com o Carlos, cinco anos. Depois, engatei no Lucas, sem pausa pra respiração, e durou um ano. Com o Carlos e com o Lucas, foi totalmente diferente, e não só por características anatômicas e timbres de voz. Não havia discussões com eles. Rusgas. Conflitos. Não sei se eu concordava com tudo o que eles diziam, se eles acatavam todas as minhas ordens, ou se éramos tão maduros que íamos contrabalançando aqui e ali. Com Carlos e com Lucas, alavanquei o que se pode chamar de namoro com estabilidade, namoro serviço público. Em ambos os casos, o término foi também pacífico, quase uma exoneração em que as duas partes concordam.

No caso do Carlos, eu estava enjoada há meses, fui me distanciando e ele percebeu. Me ligou e disse que queria conversar. Fomos a um bar inteiramente novo, pedi cerveja, o que nunca fazia. A estabilidade dava mostras de seu fim. Ele iniciou dizendo que eu estava mudada. Eu aquiesci e tomei um gole de cerveja. Falei, enfim, que talvez estivesse mudada mesmo, mas não tinha certeza. Ele não hesitou antes de perguntar se eu queria um tempo pra pensar. Como nunca bebia cerveja, credito a ela minha resposta automática: sim. E mais ainda o alívio que senti ao me despedir. Ele estava ansioso para que eu estivesse mudada, hoje percebo. Com o Lucas foi diferente, ele me propôs o fim. Foi tudo repentino, mas igualmente estável e pacífico. Pelo telefone, disse que queria conversar. Eu deduzi o motivo, disse que não precisava. Como assim?, fez ele. Respondi que, se ele estava insatisfeito, era melhor que não nos víssemos mais. Ele ficou mudo do outro lado da linha, aposto que não esperava tanto pragmatismo. Estou falando sério, resolvi enfatizar. Você está bem?, ele perguntou. Mais ou menos, mas vou ficar, respondi, madura, estável, servidora pública de nós dois. E terminamos, sem mais palavras.

Com a Mércia, tudo foi diferente, do início ao fim. O começo foi uma declaração de amor que ela me fez gritando após sairmos de uma night gay em que ela me iniciara. Eu ria de chorar porque era tudo muito novo e divertido. Começamos ali, segredo de estado. Seguiram-se um ano de cobranças e conversas infindáveis, ela queria que eu dissesse tudo, que eu falasse os motivos de não assumi-la. Eu ficava horas falando que não tinha nada a dizer, no fim das contas terminava rouca, a boca seca, pedia pastilha. Tinha medo, não queria contar a ninguém, era simples, mas ela não entendia. Depois, quando assumi o namoro, os motivos de palavrório eram outros. E o final foi aquele horror que durou um ano de idas e vindas, uma discussão de relação que não tinha prazo pra acabar. Marcávamos cafés, sucos, tudo para discutir o que nós éramos, e quando chegávamos à conclusão de que já não éramos mais nada, os encontros eram para discutir o que havíamos sido, e quando percebíamos que era impossível dizer o passado, marcávamos para discutir o que pretendíamos ser, se nos cumprimentaríamos na rua, se nos telefonaríamos, se eu a bloquearia no facebook e vice-versa. Aquilo não terminava nunca e, nos interregnos entre os cafés, a discussão se mantinha por mensagem, ainda bem que eu não tinha whatsapp.

Estamos há dois anos afastadas. Eu a bloqueei no facebook, percebi o vício que tínhamos em nos explicar, em conjecturar tudo, em decodificar cada trecho de conversa antiga. Para tudo uma análise, uma pegadinha.

Há seis meses conheci Matias. O Matias é ótimo, meu terceiro homem plural. A gente marca de ir ao cinema e vai. A gente marca o japonês e vai. A gente faz uma piada e ri e depois para de rir. Sem assuntos, sem contendas, sem porquês. Até o início do namoro foi translúcido. Ele colocou, no facebook, que estava num relacionamento sério e me marcou. Eu fiz o mesmo. E nem falamos sobre isso depois. Simples assim.

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