Se você fosse chamado a representar o Inconsciente, essa instância obscura colocada em teoria por Freud, e não houvesse como fugir da tarefa, como o faria? Um quadro de Bosch, de Salvador Dalí, um filme do Buñuel? René Magritte? Que imagens escolher? Você poderia devolver com uma pergunta: e por que não representá-lo com a música, dado que apenas ela pode indicar as moções que nascem e se movimentam no inconsciente, apenas a música pode dar conta dessa força propulsora que produz arte e loucura, sonhos e chistes?
Pois eu diria que, se quisesse representar o inconsciente, teria de unir imagem e música, e já indicaria como opção o cenário e a iluminação do espetáculo Pulsões, que estreou dia 11 de junho no Teatro Poeira, com texto inédito de Dib Carneiro Neto e direção de Kika Freire, que mergulhou no pensamento da Dra. Nise da Silveira após ver um filme em que o assassino era perdoado e o louco não (não há mesmo perdão para a loucura). Cenário e iluminação, parceria fantástica dessa obra de arte que é Pulsões, já fazem com que o espectador se situe nesse terreno misterioso que é o inconsciente, nicho de associações impensáveis de ideias. Esses são os primeiros elementos da peça que fazem com que o espectador de fato se situe, se aproxime e sinta o cheiro do inconsciente, uma vez que só podemos conhecê-lo e supor que exista através de seus sinais (como o sonho, o lapso de linguagem), como assinalou Freud diversas vezes.
A atmosfera inicialmente rósea e os móbiles nela espalhados já transportam a plateia para essa ideia de que o Inconsciente é próximo a um terreno sem chão, desprovido da lógica conhecida, embora dotado de uma outra lógica, aquela que se constitui por associação de imagens e sons que podem nos chegar das formas mais insuspeitas. É como se a bailarina, essa personagem louca que quer e não quer se lembrar, sabe e não sabe de si, e que já nos espera no palco, é como se ela pudesse acessar as imagens de seu inconsciente levantando o braço e tocando ou puxando um desses objetos, com suas mãos, tão lindas quanto perigosas: então ela toca uma esponja, como se tocasse uma lembrança, ela mexe em uma caixinha de música, como se desse corda a um raciocínio, ela balança uma outra bailarina e vai movimentando esses objetos como se eles estivessem sob seu domínio, mas sabemos que não estão, somos cúmplices de sua falta de controle, de seu horror, do vaivém de sua razão. Por outro lado, trata-se aí de um inconsciente a céu aberto, como é costume dizer da instância psíquica do psicótico. É possível vê-lo (o inconsciente) através das séries de imagens que ele revela em sonhos, em chistes, em produções gráficas, e era com isso que a Dra. Nise da Silveira trabalhava, filiada que foi à tradição junguiana.
Mas a música que acompanha o espetáculo Pulsões, esse sub-texto formado por piano, violoncelo e acordeón, e interpretados lindamente porJoão Bittencourt e Maria Clara Valle é outra maneira de aproximar a plateia das moções inconscientes (e também das emoções conscientes) que impulsionam os personagens, seu discurso e seus sintomas.
Do inconsciente, não se escapa, e é isso o que a peça mostra, cercando-nos, de modo completo e primoroso, por todos os lados: imagens, música, gestos e texto. Para Lacan, o inconsciente era estruturado como uma linguagem. Apesar de Kika Freire ter mergulhado na obra da Dra. Nise da Silveira para criar o espetáculo que tematiza também as fronteiras sutis entre arte e loucura, não podemos deixar de citar Lacan e a importância dada à cadeia de significantes. Teatro pode ser também texto, além de corpo, além de música, além de luz, teatro é voz e é palavra. Teatro é enunciação.
Assim, o belíssimo texto de Dib Carneiro Neto, interpretado com urgência por Fernanda de Freitas e Cadu Fávero, toca os temas principais da loucura e do Inconsciente, num diálogo que é dança entre a bailarina e o maestro. Nesse sentido, a ausência de linearidade e a menção à atemporalidade própria do inconsciente (“não há mais essa contagem”, dizem os personagens quando um deles se refere a horas, a passado, a futuro) mostra que não há antes nem depois, não há nexo causal. A bailarina diz que gosta de “evidências”, como “azulejo encardido”, mas não se lembra das evidências de sua história. O maestro indaga quando foi a “última vez que você morreu”, e se lembra da sua própria vez derradeira. A bailarina se incomoda com “polissílabos”, o maestro concorda que “está ficando puxado”. Ele a ajuda a se lembrar, mas acaba por admitir que também se esquece de si, enquanto se perde, fascinado, no corpo e na dança da bailarina. Ele a conduz e por ela é conduzido, ele é como o afeto catalisador (para usar o conceito da Dra. Nise de que uma relação afetiva acelera a cura) da bailarina, mas não deixa de ser também movido por ela, seu sentido da vida.
A voz cheia de força de Fernanda de Freitas a princípio traz um descompasso interessante em relação à figura frágil e delicada da bailarina que ela incorpora, um descompasso próprio da loucura e do estranhamento que dela se origina. A atriz é capaz ainda de interpretar o olhar ‘sem eu’ que é típico do sujeito psicótico que só quem já caminhou pelas alamedas de um hospício viu. Cadu Fávero, por sua vez, se mantém equilibrando-se na corda bamba de uma racionalidade que tenta conduzir os disparates e as emoções dentro de um possível tolerável, que tenta abrir caminho para memórias esquecidas, mas se dobrando a eles – disparates, emoções – ao final. Os atores e os músicos sustentam texto, música e espetáculo sem derrapar nos labirintos nodosos de uma obra densa e de forte carga emocional.
Muito mais poderia ser dito dessa peça primorosa. Mas esse é só o começo. Pulsões, esse espetáculo do Primeira Página Produções,merece ser visto e revisto.
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