Era perto do ano novo. Todos naquele clima de virada, de promessas, de futuras dietas, de roupas brancas. O carteiro chamou. Vinha uma carta de um amigo que eu não via há muitos anos. O Edivaldo. Ele mesmo! Havia se mudado com a filha e a esposa para Roraima. Era militar. Tinha essas coisas de ser transferido. Quando ele contou a notícia de que teria de se mudar, fiquei com vontade de chorar. O meu melhor amigo ia embora, aquele que durante a faculdade me explorava nos trabalhos em grupo, aquele que colava de mim nas provas do colégio, mas que era o mais engraçado e tão problemático quanto eu, daí nossa imensa afinidade. Eu gostava da amizade dele porque ele era um problemático que disfarçava e eu achava que, só de estar ao seu lado, poderia imitá-lo e me tornar uma problemática que ninguém sabe que é. Ele era tímido e inseguro mas parecia muito dono de si. Era quase um atleta, com sua rotina de acordar cedo, ir à praia, caminhar, correr, andar de bicicleta. Eu não sabia fazer nada daquilo, mas dançava melhor que ele e escrevia melhor também, embora ele jurasse a si mesmo que não (e eu sabia ler alguns de seus pensamentos, melhor até que ele). A gente ficava nessas competições inúteis e acabou que, com o passar dos anos, ele se tornou meu confidente, e eu dele, até que outros amigos do sexo oposto viessem, para um e para outro. Era ótimo ter um confidente do sexo masculino. Eu podia saber as opiniões de um legítimo representante da macheza brasileira. E ele era legítimo mesmo, quase um puro sangue!
O fato é que nós crescemos juntos, essa é a verdade. Fizemos a mesma faculdade, nos formamos na mesma profissão, lamentamos juntos os fracassos, as frustrações, as dificuldades do mercado de trabalho, estudamos e lemos livros juntos, colocamos em prática 34% de nossos planos juvenis e sempre que nos escrevíamos falávamos em nossos longos e inumeráveis ps que realizaríamos em breve os outros 66% (entre os quais fundar uma instituição pan-total, um lugar que oferecesse de tudo um pouco, de psicanálise a rituais religiosos de quaisquer credos, de cursos de malabarismo a esportes radicais, de oficinas de fazer amigos a aulas de memorização da história mundial, de práticas sadhus a cursos de como paquerar com sucesso na noite carioca, e por aí vai). Mas depois que ele foi para Roraima, nosso contato foi diminuindo, apesar dos facebooks, skypes e aeroportos da vida.
O engraçado foi o inusitado daquela carta escrita a mão, que o carteiro entregou após chamar no portão. É, o Edivaldo sabia ser inusitado. Ele tinha uma agenda de contatos que deve ter sumido após o casamento, assim como tinha umas bicicletas que quase voavam. Ele sempre tinha uma opinião resmungona também. Mas aquilo de escrever carta era demais.
Reconheci a letra no envelope na hora (afinal, estudáramos juntos tantas vezes que, mesmo ele indo na minha aba na faculdade, ao menos eu o fazia copiar as questões de alguns trabalhos que fazíamos em grupo) e abri rapidamente: o que ele estaria aprontando agora? Fiz as contas mentalmente: a filhinha dele, Clarissa, devia estar com sete anos. Do envelope, caiu uma foto: a menina estava linda. Desdobrei a carta, uma folha de papel com aquela letrinha espremida dele.
"Querida Vilma, estou voltando em breve! E nada melhor do que as notícias escritas com a letra da emoção! Não vejo a hora de voltar, de rever minha família, meus velhos amigos, minha cidade, não vejo a hora de ir à Lapa dar um rolé, como estará a Lapa, aquela mesma à qual fui tantas vezes e em cujo prato cuspi tantas outras? Como estará tudo? Estou comprando um carro e vamos todos fazer uma viagem, quando eu chegar. Minha volta está prevista para março. Vá marcando suas férias, vá dando seu jeito, comigo agora é assim, depois que virei milico deixei a indecisão de lado, aquela indecisão adolescente de faculdade e resolvo tudo com uma ordem ou duas. E vamos falar com nossos velhos amigos problemáticos: Brenão, Gustavinho, Brunona, Miguel, Queila. Vamos dar um rolé pela Costa Verde pra matar as saudades dos velhos tempos! E a Clarissa vai comigo, que ela tá amarradona em esporte radical e resolveu que quer ser poeta. Você tem que ler as poesias dela! Grande abraço, daqueles calorosos!"
Fechei a carta feliz e imaginei como ia caber aquela gente toda dentro do carro: o Brenão era enorme, como o nome diz; a Brunona só não era mais Brunona porque tinha um Brenão pra superar; e mais o Miguel, a Queila, o Gustavinho. Como seria aquilo? Será que ele comprara um daqueles super carros mega enormes em que cabe uma família italiana inteira? O que estaria aprontando meu grande amigo Edivaldo? O fato é que ele estaria voltando. E que os amigos sempre voltam. Fechei a carta com uma certeza: as distâncias são sempre relativas e voltam a ser tão pequenas como nos velhos tempos. Os amigos voltam, os intervalos acabam, as pessoas vêm e vão. E quando a gente olha pra trás e vê o tempo que passou longe, aquilo não era nada. Na porta dos quarenta anos, Edivaldo estava voltando com a filha atleta e em breve todos nós estaríamos na estrada, rindo como nos anos da faculdade. Quem sabe o Brenão poderia levar sua namorada? Aquela que ele demorou tanto pra encontrar? Disso o Edivaldo não sabia, mas seria a primeira novidade que escreveria no e-mail que mandaria a ele, naquela mesma noite (porque responder por carta também já é demais!).
sexta-feira, 30 de dezembro de 2011
Sentada na Sala
Ela estava sentada na sala no escuro sabendo de tudo silente cansada na sala sentada sentindo saudade no escuro silente da sala que mente que é bela que é doida que é forte na sala sentindo o cheiro de sal na salada sadia do almoço tardio. Na sala, ela, sozinha, silente, no escuro, pensava em ciladas... Com medo de tudo no escuro as sombras com medo do nada de si e do mundo com medo de ter que ouvir que a sala despenca no mundo. Cilada. Na sala. Sentada. Sozinha. Longínqua. A tarde que é longa cansada na sala e ela sozinha sensata no mundo. Sem papo sem tato e afago na sala de cores tão ralas. Lembrando da mala aberta de pó e poeira, na sala vazia. Ela sozinha silente sedenta santinha. Na sala sangrava de tanto sonhar, de tanto calar... no escuro.
(Texto publicado no Jornal Plástico Bolha em 2008 ou 2009 - quando mesmo? - e escrito em 2001.)
(Texto publicado no Jornal Plástico Bolha em 2008 ou 2009 - quando mesmo? - e escrito em 2001.)
domingo, 11 de dezembro de 2011
Aos domingos
Aos domingos, Madá acordava no mínimo às dez e no máximo ao meio-dia. Levantava-se silente, tomava seu café fraco, banhava-se e ia caminhar pelas ruas da Glória. Às vezes passava na feira, comprava alguns legumes, outras vezes ia até o Aterro do Flamengo, observava as famílias felizes, as crianças bem dispostas, o sol iluminando o asfalto, a grama, o horizonte. Voltava pra casa, almoçava se tinha fome, às vezes no restaurante da Andrade Pertence, às vezes em casa. Raramente tinha companhia, mas gostava de observar o movimento típico dos dias de folga da maioria das pessoas. Aos domingos, seu marido Carlo fazia seu plantão na clínica psiquiátrica e estava acostumada, Madá, a passá-los sozinha, uma vez que não era a folga de Carlo.
Muito de vez em quando Madá ia ao cinema com Olga, amiga de colégio, mulher tão dedicada aos filhos e ao marido que era raro ter um domingo livre assim para tomar um café, bater um papo, ir ao cinema (era mais comum conversar com Olga pelo bate-papo da internet). Malgrado não tivesse companhia certa, Madá não se sentia triste aos domingos embora aquela menina, Tábata, que agora a via caminhar solitária no Aterro achasse todo aquele silêncio um indicativo de uma solidão difícil de contornar. Afinal, Tábata estava no Aterro, com seu pai, sua mãe e seus dois irmãos mais velhos, Tadeu e Tiago, num dos variados passeios que seu pai inventava para todo domingo. Tábata estranhava as pessoas sozinhas, que passavam mais do que dez minutos entretidas em alguma atividade silenciosa sem nenhuma companhia, porque, até ali, companhia era o que Tábata mais tinha em sua vida (a começar pelo quarto, que tinha que dividir com Tadeu e Tiago). Aquela mulher que andava calmamente pela grama, chinelos nas mãos, não teria filhos, não teria um namorado, não teria irmãos? Mas Madá não fazia idéia de que aquela menina franzina e de óculos a observava com leve e brevíssima perturbação. Se notasse aquela atenção que a menina lhe dedicava, teria feito alguma diferença? Teria parado para explicar, dizer que não era nada daquilo, contar-lhe, com doçura e paciência, que a felicidade não vem sempre acompanhada (e geralmente vem sozinha)? Teria mostrado a ela outras partes do mundo que talvez Tábata só pudesse compreender (se um dia acontecesse) muito tempo depois? Teria falado a ela de Clarice Lispector, de Guimarães Rosa, de Fernando Pessoa e de que tudo isso e mais muitas outras coisas só se pode desfrutar sozinho (ainda que haja alguém ao seu lado)? No entanto, Madá caminhava, naquele domingo, envolta em felicidade tão tranqüila que não percebia que a olhavam. Não se incomodava de não ter filhos. Não se incomodava de que Olga ou qualquer outro de seus pouquíssimos amigos estivessem envolvidos com suas vidas cotidianas, suas tarefas costumeiras, suas famílias felizes ou não. Aquele era um dia em que Madá tinha todo para si e para seu pensamento. E, por razões diferentes de Tábata, adorava os domingos: eram dias sem horário, sem demarcações, sem exigências, sem semblantes forçados. Por mais duradouros que fossem os domingos, neles era possível caber qualquer coisa, sem que houvesse uma imposição externa, salvo raríssimas exceções. Era o dia em que Madá fazia as suas descobertas sozinha mesmo, do jeito que mais gostava, para depois compartilhá-las ou não com Carlo, com Olga, com o mundo.
Naquele domingo, chegaria em casa, leria alguma coisa, descansaria, navegaria um pouco na internet e tudo bem. Talvez fizesse um brigadeiro. Talvez ligasse para Olga, para saber se tudo bem, como vão as coisas. Talvez escrevesse um e-mail. Talvez abrisse sua caixa de antigas cartas e relesse algumas. Havia alguma possibilidade de que fizesse uma arrumação em seu armário. Ou talvez dormisse cansadíssima. Talvez não fizesse nada e visse Fantástico. E tudo ficaria bem, tudo bem. Porque aos domingos, longos ou curtos, invernais ou outonais, ficava sempre tudo bem.
terça-feira, 29 de novembro de 2011
De volta à vida mesma
De volta à vida mesma, acho-me perdida e manca, encontro-me encafifada com o fio da meada que já não tenho mais. De volta à vida mesma, mastigo montes de miséria, medíocre marcha espinhosa e fútil, martírios longos e morosos. De volta à vida, mesmo assim acho-me morta, metade de mim sem ar, metade de mim alerta. De volta, a vida me acena mesmices, misantropias e morbidez, e eu me meto a correr dela, medrosa, mendiga. De volta à vida mesma, minimamente masco o que a mim me é destinado, e o que não se torna massa ou bolo alimentar eu cuspo fora meramente. De volta à vida, mesquinharias me fazem meter os pés pelas mãos, imitando o que não posso ser e mansamente retornando ao meu lugar. E de volta, a vida? Longa, magra, megera. Maligna até! Me espera, malandra, querendo rir de mim, a vida mentecapta que a mim me restou, queimando minhas quimeras, mantendo-me maluca, amarrando-me a uma total melancolia, sem medida mas quase sempre domesticada.
Esse texto foi publicado em 17 de março de 2009 no BLOG DO BOLHA. Recordar é recordar.
sexta-feira, 4 de novembro de 2011
a madrugada de Laura
Laura levantou-se pela terceira vez, naquela noite, acendeu a luz do quarto e pensou: é possível produzir alguma coisa na madrugada que não sejam pensamentos sobre o sono, as horas, o dia e a noite? É possível produzir algo na madrugada, quando o limite da visão são as paredes, o teto e a casa do vizinho no mais além da janela? É possível pensar em algo diferente do tempo nesses momentos em que ele é o protagonista da cena, atravessando os músculos do corpo e latejando por dentro da pele? Não, nada é possível em tais condições.
Laura sentiu a fome produzir outros tipos de sons no terço central de seu corpo. Encaminhou-se à cozinha, inspecionou a geladeira, tomou um pouco de suco de uva e descascou vagarosamente uma banana. Era o que tinha. A noite prolongava-se e Laura não conseguia criar nada que valesse a pena, nem mesmo uma frase de efeito para ser dita no aniversário de Anita, no dia seguinte. E por que continuar ali, rodeada de limites acimentados? Duas e quarenta da manhã. Afinal, era até bom perguntar: onde estaria Anita? A noite de sexta-feira, em certas circunstâncias, é mais longa que as demais noites. E Laura sentia na pele a longevidade daquelas horas noturnas.
Então, Laura decidiu que abriria o armário, escolheria uma roupa básica e iria à luta.
sexta-feira, 16 de setembro de 2011
Espera
Desde o dia em que resolveu tornar todas as experiências intensas, vividas na carne e milimetricamente no pensamento, tentando absorver todos os aspectos que cada vivência continha, ainda que banal, quotidiana, ou tão rara quanto uma expedição trágica em qualquer canto da Terra, Tatiana tornou-se menos amarga até mesmo com o sofrimento, porém mais obsessiva no trato com os ocorridos diários. Tudo era passível de virar um ritual. Tudo ganharia contornos diversos e o fato de imprimir uma iluminação diferente a cada vivência torná-las-ia, ela queria acreditar, muito diferentes do que poderiam ser.
Tatiana estava à espera de alguém, naquele sábado à noite. E mesmo aquela espera era peculiar. Pois ela não tinha certeza absoluta de que chegaria, embora o provável fosse que sim. Tratava-se, nesse caso, de uma espera incerta. Entretanto, a espera, por definição, já traz em si muitas camadas de incerteza. A espera é inerentemente vaga. Enquanto você espera, nada acontece, ou tudo acontece. Bem, de fato, nada acontece. Enquanto se espera, pode-se empreender uma série de tarefinhas que, no entanto, são quase um arremedo de comportamento e vida. Um engodo a si mesmo e ao tempo talvez. Você espera o trem e tudo o que você quer e deve e necessita fazer é voltar para casa. Não há mais nada além disso: a volta. E, não obstante, encontra-se há quarenta minutos esperando e, enquanto isso, se tem um telefone celular na bolsa, pode discar para algumas pessoas e tornar aquele tempo menos perdido do que é. Mesmo as esperas longitudinais, como a de uma viagem que ocorrerá dentro de muitos meses, torna toda a vida anterior um inegável apanhado de pequenas ações desprovidas de qualquer significado maior. Tatiana sabia disso e sabia que só lhe restava esperar, e que uma espera como aquela era ainda pior, se fosse vista sob o prisma do bom e do ruim. Tatiana era também ciente de que quase toda espera carrega em si certa ânsia, que pode ser amenizada com as distrações fúteis ou maximizada se o foco é unicamente o momento esperado. Tatiana, entretanto, queria intensificar a vida e extrair o sumo de cada acontecimento. Até mesmo se o acontecimento fosse a própria espera.
Estava em seu apartamento, sozinha, e o clima era típico de abril: um pouco abafado, poder-se-ia dizer. Também não estava cansada, pois havia acordado tarde e a semana não comportara grandes agitações. Agitação, se havia alguma, era aquela que podia se encontrar guardada dentro de Tatiana, nos tecidos conjuntivos de seu corpo e nos espaços disjuntivos das suas faculdades de juízo, raciocínio e sentimento. Estava esperando, ora bolas! E quem suporta por muito tempo uma espera? O que restava a Tatiana era justamente preparar o momento, decorá-lo propriamente, sem fugir da sobriedade e sem cair na mesmice diária. Desde o dia em que Tatiana passou a desejar que sua vida fosse menos comum, tudo deveria ter um preparo diferenciado. Mesmo que ninguém soubesse. Ela não queria performances, menos ainda aplausos. Não queria exclamações de supostas platéias, nem opiniões favoráveis ou desfavoráveis. Não pretendia escrever uma autobiografia, menos ainda seguir qualquer espécie de filosofia de vida pré-determinada. Tatiana não queria uma história pra contar e assunto pra mesa de bar, ela não se engrandecia com nada aquilo e achava todas aquelas conversas tão sem sentido quanto sopas de letrinhas. A experiência, ela sabia, era impossível de compartilhar. Ela queria apenas tornar mais substanciais os momentos de sua vida, fossem eles felizes ou não. Em seu apartamento, naquela noite no final de abril, enquanto esperava alguém que talvez não viesse jamais, apagou todas as luzes, desligou as máquinas, escancarou as janelas, trocou a roupa de cama, sentindo o perfume das fronhas e lençóis bem lavados e amaciados. Tomou um longo banho morno, secou-se lentamente, deitando-se sobre a cama, despida. Os sons que podia ouvir eram todos externos à sua vida e à sua vontade. Ao longe, podia ouvir o vizinho que arranhava alguma música no saxofone e alguém que escutava Maria Bethania em um volume tímido. Alguns barulhos difusos de talheres denunciavam algum preparo culinário. O ar soprava algum movimento de maneira irregular. Pouca luminosidade provinha da rua. Não havia nada que pudesse prever, além da quietude do apartamento. Aquilo que estava acontecendo não seria mais um prelúdio de acontecimento, mas o acontecimento em si. Não seria coadjuvante, seria a meta. A espera seria um dos elementos de um conjunto de vários, todos com igual peso, e não apenas o preâmbulo ansiogênico de algo que é mais importante. Naquela noite, de olhos fechados, deitada e só, o que Tatiana queria era apenas esperar.
(O Clube da Leitura ocorre quinzenalmente às terças no Sebo Baratos da Ribeiro, em Copacabana, e este conto foi feito para um desses encontros. O tema era relacionado à espera, mas acabei elaborando outro, Uma Ciência do Atraso, que acabei levando naquela noite. Está no blog do clube da leitura, no site do sebo. No fundo, no fundo, os contos, embora diversos no início, têm o mesmo princípio.)
sábado, 3 de setembro de 2011
Crime Inafiançável
Na aldeia em que vivo, os poetas, músicos, desenhistas e artistas em geral são condenados à prisão perpétua quando acusados de seu crime, muito bem tipificado em nosso código penal. Alguns tentam ser mártires, e por medo de serem assassinados pela falta de sentido da vida, clamam suas obras de arte sem medo das penas a que terão de se sujeitar, pois castigo ainda mais cruel seria se adequar aos ditames da sociedade em que vivemos e o conseqüente banimento de si mesmos. Outros tentam, mas não conseguem não manifestar sua arte, tal como deixar de respirar voluntariamente é impossível. Se o desenhista, portanto, não contém seus impulsos primitivos de desenhar mesmo que no canto de uma folha solta de papel – na tentativa de ser comedido em suas necessidades básicas e julgando estar sozinho sem ninguém a observá-lo – será em poucos minutos açoitado, algemado, incriminado, acusado. Crimes hediondos, na terra em que vivo, são as manifestações, quaisquer que sejam, da arte; são também as manifestações do pensamento original; tipificadas ainda como infrações graves ao bem comum e à moral são as discordâncias de idéias oficiais por meio do humor (embora as penas para este último ilícito sejam um pouco mais brandas, uma vez que nossos legisladores crêem que a massa humana raras vezes capta a crítica que subjaz à piada).
Já o poeta: esse é o pior dos criminosos. Sua arte consiste em crime inafiançável e insuscetível de qualquer espécie de perdão. Aqui, são absolutamente proibidos versos, poemas, poesias, e aqueles que traficam esse tipo de material também são julgados com rigor, de modo que não se pode trazer livros, revistas ou quaisquer textos de outras terras. E um poeta, de modo geral, adoece na tentativa de esconder seus dons poéticos, pois acaba por contrair couraças que impedem a linguagem de se manifestar e aniquilam sua vida. Sua língua deve enrijecer, assim como seu olhar. Pena perpétua e, dependendo do caso, pena de morte, é o que está destinado àquele que reiteradamente insiste na poesia, como autor, leitor ou entusiasta.
É por isso que fui me tornando cada vez mais uma pessoa retraída, sem ousar compartilhar com quem quer que seja meu segredo (aqui não se pode confiar nem mesmo nos padres e nos neopsicanalistas, estes últimos com a única missão de apaziguar desejos inviáveis e administrar desejos infindáveis). Pergunto-me: quantos como eu passam por essa sina de esconder do mundo o que lhes é mais natural? Quando cruzo o olhar com estranhos na rua, estarei mirando um poeta camuflado como eu ou alguém que me estapearia ao ouvir uma metáfora? E como conciliar a vida como um todo com a proibição da minha poesia, essencial e atual em mim? O resultado é uma vida vivida em parcelas exíguas, atitudes plenas de hesitação, restando a condição de incompleto e ineficaz que se aproxima apenas das beiradas da vida, evitando o cerne, pois todo cerne é explosão poética.
Foi dessa forma que passei a desenvolver sintomas corporais compatíveis com todas aquelas renúncias. Aos dezoito anos desenvolvi a gagueira. Aos poucos, já não me era possível enunciar frases completas. Aos vinte e um anos, comecei a mancar da perna esquerda. Nenhum ortopedista encontrou causa orgânica para o fato, assim como não haviam encontrado problema de natureza física na minha incapacidade de fala. Aos vinte e seis anos, não conseguia mais executar movimentos finos, tais como escrever. Tempos depois, desenvolvi um tique nervoso na pálpebra esquerda que me fazia piscar várias vezes por minuto. Tornei-me cada vez mais inadaptado à vida e a mim mesmo, perdendo as funções do corpo, tornando-me um incapacitado, um desqualificado, um perdedor. Um vegetal. Enquanto meu sonho era poder ser poeta livremente, acabava por, ao contrário, seguir os preceitos de um muito antigo poeta português, adaptando-os à minha realidade: o que eu mais tinha que exercitar era a qualidade de fingidor que todo o poeta deve ter se quer sobreviver na aldeia em que vivo. E esculpir – a dor e a poesia – mais do que completamente, porém apenas dentro de si e cobrindo-a de silêncio. Meu fim não podia ser diferente: aos quarenta e nove anos, mal e mal consigo respirar, tenho escaras cobrindo a pele do tórax e dos calcanhares, dependo de remédios para dormir e para acordar, e minha vida reduziu-se ao murmúrio de meu corpo sobre a cama do sanatório.
(Conto para o clube da leitura cujo mote foi poesia, do primeiro trimestre de 2011.)
segunda-feira, 29 de agosto de 2011
Ana precisa esquecer (conto publicado na graphic novel de Sama, A Balada de Johnny Furacão)
Ana não queria lembrar. Mas ao mesmo tempo queria. Lembrar de modo recorrente era uma forma de se punir. Ana merecia punição. Ela havia matado o gato. Na ocasião, estava com onze anos, cursava a quinta-série e estudava numa escola particular a duas quadras de seu prédio. Atirara umas pedras ou uns paus (como saber com exatidão se lá se iam vinte e dois anos?) num gato preto no telhado. Fora induzida pela gritaria e brincadeira dos colegas, que também atiravam e que, estranhamente, se regozijaram não apenas com os arremessos como com o corpo morto do gato, que caíra. Naquela época (disso Ana lembrava bem, como esquecer?), perdera noites sucessivas de sono e os pais haviam estranhado, levando-a ao psicólogo, afinal, criança com insônia não pode ser normal se nem tem contas pra pagar (ela revivia aqueles dizeres com uma raiva morna) e quando enfim, dias depois, conseguira dormir, era acordada várias vezes durante a noite por horríveis pesadelos. Seu pensamento já era inquieto e veloz àquela época. Se num momento ela pensava que matara o pobre do bicho que não fazia mal a ninguém, já no momento seguinte, ponderava e chegava à temporária conclusão de que era impossível que um mero galho pudesse matá-lo daquele jeito, tão rápido e certeiro. Mas matara sim. E por que o gato não fugira? Gatos, quando incomodados, quando perturbados, fogem, somem, arrepiam-se, mostram os dentes. Mas o gato estava lá e lá continuou, e as crianças berravam e urravam e riam. Talvez já estivesse adoentado. O gato, debilitado, não teria forças para fugir. Nem sequer fizera um movimento de retirada. Mas matara o bicho, matara, matara, todos viram, havia testemunhas, acusaram-na rindo ainda mais, “Ana matou o gato! Ana matou o gato”, matara o bicho sim, não tinha como fugir daquilo, fingir a si mesma que não, era impossível inventar argumentos contrários, aduzir fatos novos, alegar inocência, matara o gato e depois sonhara que se transformara nele, que virara um gato acuado e sujo, que ninguém gostava dela enquanto gato, que passava fome e frio e solidão, que lhe restavam telhados mais decadentes do que o de sua antiga escola.
Mas matara o gato? Talvez o bichano estivesse mesmo moribundo, padecendo de alguma moléstia que só um bom veterinário poderia diagnosticar e curar. E ali, o pau que fora lançado diretamente da mão inconsciente de Ana fora apenas a gota d’água de algo que fatalmente aconteceria, minutos a mais, minutos a menos. A responsabilidade de Ana talvez fosse ter apressado um processo que não poderia ser evitado. Era como se tivesse sacrificado um bicho que não tinha salvação. E, portanto, era como se Ana tivesse salvado o bicho de um sofrimento atroz e mudo (não lhe haviam dito que o gato, quando muito cheio de dor, fica quieto e com olhar triste? Não fora a amiga Vivian que lhe contara isso ao relatar como Vuvu, seu gato branco, gordo e bom, perdera o rabo manifestando apenas silêncio e tristeza?). Não, Ana não havia matado aquele belo felino negro. Ele já morreria de qualquer jeito. Salvara o bicho de uma dor dos gatos, uma dor que o gato calava profundamente esperando tudo acabar. Aliás, pusera-se mais ainda na mira dos paus e pedras que a criançada arremessava, doido para morrer logo, praticando uma espécie de eutanásia felina sem ser dar conta de que aquilo – eutanásia – tinha um nome e um conceito e uma polêmica entre os humanos. Era um gato que, se bobear, renasceria como orangotango em sua próxima vida, tamanha a sua inteligência. Morrera, então, feliz. Ana não precisava sofrer tanto a vida inteira. Agora, com seus trinta e três anos de vida, eventualmente Ana ainda acordava à noite sonhando com aquele nostálgico gato de sua infância e eram sempre sonhos horríveis, Ana felina sofrendo torturas de crianças desmioladas com crânios desproporcionais e olhos pingando um óleo fervente. Ana não precisava impingir a si mesma aqueles pesadelos terríveis como forma de expiar um pecado covarde. Não houvera pecado. Ana podia dormir em paz.
(Conto para o clube da leitura baseado no livro do Sama, "A Balada de Johny Furacão".)
quinta-feira, 24 de março de 2011
trajeto
estela pensava. voltava de ônibus. mais tempo, mas mais espaço do que metrô. queria olhar as paisagens que passavam ao invés de olhar para a cara das pessoas que olhavam para suas páginas de livros, revistas, jornais, ou para as telas de seus celulares, evitando olharem para estela.
no ônibus, estela não olhava para ninguém. ou olhava para os transeuntes, que não olhariam para ela por muito tempo. olhava-os pelas costas, como as punhaladas dos covardes. olhava sem deixar que o outro notasse a autoria do seu olhar. resguardava-se daquele seu ato de olhar. e olhava para não salvar nada dentro de si e guardar longe qualquer pergunta que martelasse.
e havia uma pergunta que martelava. e um medo que ela tinha que conter. era melhor, então, olhar as ruas, fugir dos subterrâneos. era melhor tapar os olhos.
no ônibus, estela não olhava para ninguém. ou olhava para os transeuntes, que não olhariam para ela por muito tempo. olhava-os pelas costas, como as punhaladas dos covardes. olhava sem deixar que o outro notasse a autoria do seu olhar. resguardava-se daquele seu ato de olhar. e olhava para não salvar nada dentro de si e guardar longe qualquer pergunta que martelasse.
e havia uma pergunta que martelava. e um medo que ela tinha que conter. era melhor, então, olhar as ruas, fugir dos subterrâneos. era melhor tapar os olhos.
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