sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Crítica teatral: Beija-me como nos livros


Beija-me como nos livros, 19ª peça da companhia Os Dezequilibrados, surpreende, e não é pouco. É o tipo de espetáculo que provoca reverberações, que evoca, no espectador, questionamentos,  memórias, e que parece se alojar na pele e nos hiatos entre os pensamentos que vêm depois, bem depois, de a peça terminar.
O espetáculo, que é resultado de uma pesquisa profunda sobre o amor, na qual a companhia se deteve por meses a fim de estudar autores, teóricos e pensamentos diversos sobre a temática, está em cartaz no CCBB, com temporada prevista em outros Estados do país. A peça é uma produção que comemora os dezoito anos da companhia e é a terceira de uma trilogia que começou com Amores, de Domingos de Oliveira, e teve ainda Fala comigo como a chuva e depois me deixe ouvir, de Tennessee Williams.
A direção e a dramaturgia, impecáveis, são de Ivan Sugahara, responsável também pela excelente trilha sonora, fundamental para sustentar o espetáculo que transita por épocas diferentes da cultura e períodos diversos das concepções de amor (do amor cortês ao amor romântico), além de criar um jogo de imaginação e identificação entre personagens leitores contemporâneos e clássicos da literatura mundial.
Há um jogo ininterrupto entre trilha sonora, linguagem, movimento e prosódia, além do vaivém do tempo psíquico e do tempo cronológico das vivências dos personagens. O dramaturgismo é de Juliana Pamplona, que, no texto sobre a peça, diz que o espetáculo abre mão da “linguagem previsível” e “desloca nossa atenção para outros modos de compreensão”, propondo “o desafio de apreender o que acontece em cena através de outras dinâmicas (…)”. De fato é o que acontece, como se a proposta da peça exigisse uma mudança de posição do espectador e o tirasse, assim, de certo conforto acomodado. A direção de movimento e a preparação corporal, igualmente fundamentais, também merecem destaque em letras vermelhas neón e estão a cargo de Duda Maia. A direção vocal e pesquisa fonética, de Ricardo Góes, são excelentes e têm uma função primordial: colocar em relevo a importância da sonoridade da fala na comunicação, como nos explica o texto da peça de Ivan Sugahara.
Mas, é bem verdade que não seria preciso lê-lo para captar a ideia que embasa a criação do “gromelô”, língua teatral própria do espetáculo. Se se vai de coração aberto e boa vontade, há no mínimo duas conclusões a que o espectador poderá chegar ao final de tudo: uma, mais superficial, é a de que, nas relações amorosas, há uma babel de línguas que muitas vezes auxiliam no entendimento (e que levam ao fim muitos relacionamentos genuinamente amorosos, seja lá qual for o significado de ‘genuinamente’); além disso, e talvez mais crucial do que a confusão de línguas, conclui-se também que o amor, com todas as nuances culturais, circunstanciais e de época que lhes são próprias, e ainda que construído historicamente, é universal. Trata-se, portanto, de uma linguagem que transcende peculiaridades culturais e é muito fácil de entender, ainda que inicialmente suscite algum estranhamento.
A vivência do amor, do relacionamento amoroso com suas agruras e expectativas, com projeções e idealizações, com esperas que não se resolvem, com frustrações, medos, desapontamentos, a vivência do amor, em seu bojo, é sempre passível de se expressar no grito, no gemido, na respiração que arfa, na bofetada, na ordem, na súplica, no olhar, no gozo, no silêncio. O amor é ritmo, tanto quanto a voz e o gesto. E é exatamente aí que tudo se encontra: se a prosódia e o gestual podem ser consideradas a alma do teatro, são também aquilo que dá consistência ao que se pode conceituar como amor. Nesse sentido, nada mais pertinente do que o gromelô que se deslinda durante a 1h30 do espetáculo sem cansar a plateia e surpreendendo do início ao fim.
É claro que não se pode deixar de dizer que não haveria peça, amor, gromelô, voz, palco e movimento se não fosse a não menos impecabilidade da interpretação de Ângela Câmara, Claudia Mele, José Karini e Julio Adrião, que também participam da criação dramatúrgica, junto com Lívia Paiva e Ivan Sugahara. Os quatro estão fantásticos, completamente imersos em seus papeis intercambiantes, transitando entre mensagens de celular ultracontemporâneas e frustrantes e danças clássicas que remontam a um passado que ainda vive na fantasia de cada um e na literatura. Não é fácil o trabalho que desenvolvem no palco, a ginástica coreográfica que dá vida à pesquisa realizada pela companhia desde setembro de 2014.
O resultado é excelente, a troca que se pode acompanhar no palco é também a troca que se encontra, novamente, no amor, aquela em que todos jogam juntos, em que os elementos são fundamentais para o resultado final.  Os atores em cena são a tradução que nos chega de um trabalho feito verdadeiramente em equipe, onde até podemos separar as funções de cada um, mas sabendo que sua execução exitosa não seria possível se a sustentação não fosse mútua, se não fosse o fruto de um empreendimento coletivo. Ivan Sugahara, Juliana Pamplona, Duda Maia, Ricardo Goés, Lívia Paiva, os quatro atores que acabo de citar e todo o corpo técnico do espetáculo têm contribuições que alcançam sucesso devido à parceria por trás de tudo.
Definitivamente, tudo está ótimo no espetáculo Beije-me como nos livros, que traz à baila mitos e clássicos como Tristão e Isolada, Os sofrimentos do Jovem Werther, Don Juan e Romeu e Julieta, personagens que se misturam aos atuais Ângela, Júlio, José e Claudia, que, não por acaso, são os nomes dos próprios atores. Portanto, a proposta de Beija-me como nos livros só parecerá sem sentido se se esperar uma linearidade engessada de início, meio e fim. Todavia, como a comunicação é mais truncada do que qualquer linearidade, e como o amor, seja em que época que se dê, não se cristaliza em redomas e definições, tudo ali tem sentido, tudo é fruto de trabalho, tudo é fluido como poesia.
Leia esta crítica também em Revista Ambrosia.
Ficha Técnica
Direção e Dramaturgia: Ivan Sugahara
Elenco: Ângela Câmara, Claudia Mele, José Karini e Julio Adrião
Assistência de Direção: Lívia Paiva
Direção e Movimento e Preparação Corporal: Duda Maia
Direção vocal e Pesquisa Fonética: Ricardo Góes
Dramaturgismo: Juliana Pamplona
Criação Dramatúrgica: Ângela Câmara, Claudia mele, Ivan Sugahara, José Karini, Julio Adrião e Lívia Paiva
Cenário: André Sanches
Iluminação: Renato Machado
Figurino: Bruno Perlatto
Assistência de Figurino Victor Guedes
Trilha Sonora: Ivan Sugahara
Técnico de Luz: Leandro Barreto
Desenho de Som: Luciano Siqueira
Direção e Palco: Wallace Lima
Camareiros: Tamiris Coelho e Guilherme Miranda
Aderecista: Derô Martin
Alfaiate: Fábio Santos
Costureiras: Jane Moraes, Jane Travassos, Jorcileia Caetano e Sônia Maria
Bordadeira: Geilza Nascimento
Assessoria de Imprensa: Daniella Cavalcanti
Assistência de Assessoria de Imprensa: Fernanda Miranda
Design Gráfico: Luciano Cian e Claudio Attademo
Fotografia: Dalton Valério
Marketing Digital: Qtal Design
Produção Audiovisual: Eduardo Chamon
Coordenação de Produção: Tárik Puggina
Direção de Produção: Carla Torrez Azevedo
Produção Executiva: Aline Mohamed e Marcelo Chaffim
Administração financeira Amanda Cesarina
Realização: Os Dezequilibrados e Nevaxca Produções

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