Foi uma grata surpresa descobrir
esse filme que é um clássico mas que, para mim, até aqui, era novidade. A Cova
da Serpente, The Snake Pit, de 1948, teve várias indicações ao Oscar e foi o 6º
lugar de bilheteria no seu ano de exibição. As indicações incluem: melhor
filme, melhor atriz (Olivia de Havilland, a Melanie de E o vento levou), melhor direção (Anatole Litvak) e melhor roteiro
adaptado (Frank Partos e Millen Brand), uma vez que o filme é baseado em relato
semi-autobiográfico de Mary Jane Ward.
É preciso dizer que o início me assustou
um pouco (e aviso àqueles que forem conferir), dado que o pensamento de
Virginia, a protagonista, era explicitado no desenrolar das primeiras cenas. A
personagem interagia com pessoas ao seu redor, muito acuada, e, entre uma e
outra interação, todo o seu pensamento vinha de graça para que nós,
espectadores, tivéssemos certeza de sua loucura, de que algo não ia bem. Por
sorte, isso não se manteve no filme, e não o estragou. Ao contrário, ele foi ficando
cada vez melhor e mais dinâmico.
Na trama há Virginia em um
sanatório, sinais e sintomas do que não parece ser, nem de perto, uma síndrome
psicótica, um doutor legal que mistura eletroconvulsoterapia (numa indicação
estranha) e psicoterapia (vá entender...), e as sessões se desenrolam com o
aval do retrato do Freud em diversas cenas.
Há, no filme, certa ideia muito
questionável de que o sofrimento psíquico pode ser desvendado de maneira exata
ao fim e ao cabo e de que os meandros do inconsciente são decifráveis, mesmo
que após longa investigação clínica. Trata-se da concepção, presente no roteiro,
de que tudo tem um motivo, de que tudo se encaixa, de que a neurose é questão
de causa e efeito e seus desdobramentos são lineares. Novamente, apesar de tais
noções serem questionáveis, nada disso estraga o filme, e o torna até mais
interessante, se nos lembrarmos de que em 1948 a psicanálise e a saúde mental,
a loucura, por assim dizer, eram ainda mais polêmicas do que hoje em dia (não, infelizmente
não deixaram de ser).
Mas o mais interessante é que o
filme tem importância e certa atualidade. Importância porque, em 1948, escolheu
como temática a ser exibida na tela grande as polêmicas que menciono acima. E
não são polêmicas pequenas. O filme encara a loucura de frente: há um médico
que “consegue bons resultados só com psicoterapia”, como um doutor da junta
médica afirma, em certo momento do filme. É claro que há outros métodos
terapêuticos no começo (o choque, como já mencionei), mas depois o tratamento
de Virginia deslancha através da palavra, da talking cure, do cuidado, do afeto, do manejo e da clássica
transferência.
Além disso, e talvez até mais
importante, o filme mostra de modo sutil e brilhante, a iatrogenia das “instituições
totais”, para usar o conceito clássico de Erving Goffman, em Manicômios, Prisões e Conventos, ou
seja: a forma como a loucura de um modo de funcionar institucional adoece mais
do que trata, mais do que cura. O lugar em que se busca a saúde é aquele que
intensifica a doença, daí ser iatrogênico.
No filme, a cova da serpente -
esse manicômio em que Virginia está internada - tem seus exemplos de iatrogenia:
há uma enfermaria onde um enorme tapete retangular não pode ser pisado e as
pacientes devem ficar circulando em volta, um tapete que deve ser poupado e a
enfermeira “surta” se alguém se senta sobre ele; ou um baile em que a regra é
clara: não se pode dançar mais de três vezes com a mesma pessoa, senão... ; ou
as enfermarias, com alimentação e tratamentos diferenciados, talvez de acordo
com o grau de adoecimento... de quem? Do paciente, do funcionário ou da
instituição como um todo? Esses são apenas alguns pontos emblemáticos que o
filme mostra muito bem, lembrando-se sempre que o ano é 1948.
2 comentários:
que bom ler um texto tão claro e argumentativo e tão elegante quanto ao estilo da escrita. fã da Vivian psicóloga e escritora. bjs!
Não vi o filme, mas é interessante sua abordagem. Observando as datas, diria que ainda faltariam uns 11 anos para Baságlia chegar a "Gorizia", se horrorizar e dar início à Reforma italiana. Mas o mais interessante é imaginar que estas datas são herdeiras da "1ª reforma" psiquiatra que data da Revolução Francesa qdo Pinel decide assumir Bicetre e confisca a "loucura" para o "saber" da ciênica... dai o nascimento da psiquiatria... Pois é, e desde daí, embora, todas as importantes conquistas, ainda somos assombrados por alguns destinos da "loucura" e sua histórica vocação para a exclusão. Ou seja, para muitos de nós, não há trégua, não é Vivian?!!
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