quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Teatro: As Meninas


“A palavra vira carne”: é assim que uma das maiores escritoras brasileiras, Lygia Fagundes Telles, se refere, emocionada, à adaptação de seu romance As Meninas para os palcos. O livro, lançado em 1973 no auge de um dos períodos mais áridos da ditadura brasileira, e premiado com o Jabuti no ano seguinte, ganhou adaptação de Maria Adelaide Amaral e idealização de Clarissa Rockenbach e Fernando Padilha.
Se, segundo Lygia, “a função do escritor é ser testemunha do seu tempo e da sua sociedade”, como se lê no programa da peça, e se a obra de que tratamos aqui traz o testemunho de um momento crítico da história brasileira, esse parece ser então o momento perfeito para a adaptação de As Meninas para o teatro: vivemos o acirramento das tensões políticas no país, o recrudescimento do debate entre reivindicações de direita e de esquerda e constatamos, horrorizados, o aparecimento de um clamor que, aqui e ali, pede a volta do regime militar, que foi dos períodos mais opressores e violentos da história recente do país. É, portanto, inegável que a temática da peça As Meninas, com direção e concepção de Yara de Novaes, não perdeu sua atualidade.
Na trama, três meninas vivem em um pensionato que, a princípio, parece um refúgio da vida na cidade. A romântica Lorena (Clarissa Rockenbach) sonha com um amor ideal e vive em espera (de uma ligação, do melhor momento para concretizar sua paixão, da felicidade utópica). A jovem comunista Lia (Silvia Lourenço) sonha com um mundo ideal e vive também em espera (de um país melhor, do exílio de Miguel, do fim da opressão do regime autoritário). Finalmente, a desesperada Ana Clara (Luciana Brites) sonha com um futuro ideal e, enquanto se coloca em diversas situações de risco e promete a si mesma voltar a fazer análise, vive, ela também, em espera (de um casamento burguês, de condições financeiras ideais). Elas têm suas diferentes maneiras de lidar com o mundo e consigo mesmas, através de amantes (Daniel Alvim), da Mãezinha de Lorena (Clarisse Abujamra) e suas lembranças traumáticas, e da freira Priscilla (Sandra Pêra) que, por sua vez, abandonou seus próprios sonhos e suas antigas esperas.
O texto de Lygia capta o leitor desde o início do romance e promove um diálogo incessante entre o mundo introspectivo dos sonhos e das frustrações e o mundo objetivo que o cerca e o produz. Assim, não é uma tarefa simples adaptá-lo à linguagem do teatro. Mas parece que as soluções dramatúrgicas encontradas alcançam êxito em manter o dinamismo, no espetáculo, dessa literatura não-linear de Lygia, característica que se pode perceber em toda a sua obra e que confere o charme e a densidade de suas tramas e de seus personagens.
O vaivém de memórias, segredos e tabus e a alternância de vozes muito bem construídas pela escritora parecem se concretizar no movimento dos personagens e seus diálogos pelo cenário. Assim, esses personagens e seus fantasmas (sobretudo seus fantasmas) estão ora fora, ora dentro de um quadrado branco central, ora têm voz ativa, ora são mencionados sem direito a resposta, e esse jogo de luz e sombra, claro e escuro, a centralidade iluminada e as bordas turvas, além do trânsito pelas fronteiras entre essas áreas, é o que talvez torne viável a difícil tradução da literatura de Lygia para a encenação no palco. É como se a consciência e o aqui-e-agora estivesse ali, naquele centro claro, onde as conversas e os encontros acontecem, onde há a proteção suposta das paredes e de belos objetos, onde a tendência a um senso estético consensual traz harmonia temporária às inquietações vividas pelas três meninas, ao passo que o que está em volta deve ser protegido de uma iluminação direta, do escrutínio a olho nu, é aquilo que deve ser visto através de um olhar enviesado e cauteloso. E o que está em volta são essas memórias traumáticas e sua carga afetiva às vezes difícil de sustentar, são os personagens mencionados nas conversas e o rancor com que os outros se referem a eles, a moral religiosa e casta, a transgressão a essa moral, a culpa, o medo, a angústia.
É preciso dizer ainda, à guisa de conclusão, que o elenco está ótimo, com destaque para a participação especial de Clarisse Abujamra, vivendo a mãe de Lorena, que, apesar de ser um personagem facilmente detestável, consegue ser carismática e engraçada ainda que envolvida em perdas mal-explicadas e certa dose de autocomiseração que poderia causar repulsa, e Sandra Pêra, na pele da Irmã Priscilla, que compõe uma figura que é misto de força assustadora própria dos objetos sagrados e fragilidade demasiado humana quando se resolve a falar de si.
Ficha Técnica:
De Lygia Fagundes Telles e adaptação e dramaturgia Maria Adelaide Amaral
Direção e concepção: Yara de Novaes
Elenco: CLARISSA ROCKENBACH como Lorena, LUCIANA BRITES como Ana Clara, SILVIA LOURENÇO como Lia. Ator convidado: DANIEL ALVIM como Max e Guga. Participações especiais de CLARISSE ABUJAMRA como Mãezinha e SANDRA PÊRA como Irmã Priscila.
Elenco em OFF: Daniel Alvim como M.N. e Eloísa Elena como Secretária
Diretor assistente e preparação corporal: Leonardo Bertholini
Cenário: André Cortez
Figurinos: André Cortez e Fábio Namatame
Iluminação: Juliana Santos
Trilha sonora: DrMorris
Visagismo: Bruna Pires
Fotos de estúdio: Priscila Prade
Fotos de cena: Kelson Spalato
Programação visual: Tuagência Comunicação
Cenotécnico: Maurílio Dias
Operador de luz: Walace Furtado
Operador de som: Gabriel Lessa
Camareira: Cedelir Martinusso
Costureiras: Cleide Niwa, Gonzalez Jaquet (Reina) e Neuza Padilha
Advogada: Cássia Rockenbach
Lei de incentivo: Egberto Simões
Assistente de produção: Priscila Tello
Produção executiva: Gustavo Sanna
Direção de produção: Fernando Padilha
Idealização: Clarissa Rockenbach e Fernando Padilha
Realização: Pad Rok Produções Culturais Ltda.
Assessoria de imprensa: Lu Nabuco Assessoria em Comunicação
Patrocínio: Unimed Seguros

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