Um acerto de contas? Sim. Blackbird, peça em cartaz no Galpão das Artes do Espaço Tom Jobim, no Jardim Botânico, com texto de David Harrower, tradução de Alexandre J. Negreiros e direção de Bruce Gomlevsky, trata de um acerto de contas, uma D.R. (a discussão da relação, se é que se pode chamar o que houve entre os protagonistas de relação) quinze anos depois do acontecido.
No elenco, Viviani Rayes (também diretora de produção) e Yashar Zambuzzi têm um reencontro em um lugar aparentemente tão sórdido e obscuro quanto o que viveram juntos (ou quanto o julgamento que é feito do que viveram juntos): eles estão em uma sala apertada, abafada, de vidros quebrados e muito lixo espalhado. E é como se, nesse diálogo infernal e tenso, eles também remexessem um lixo antigo, já mofado, já podre, o lixo que representa a história em comum e as consequências que levaram para as suas vidas.
Ele, mais velho, fala do quanto aprendeu sobre si mesmo através dela, que, à época, era uma criança. Seria ele, então, um abusador? Ou um pedófilo? Não, essa última palavra não é dita, não aparece no texto, o tabu a abafa, mas a experiência de uma sedução real é a essência do que aconteceu, o mote do drama que eles revivem através de palavras. Ambos pagaram caro por ter cedido a impulsos interditos: ele, com julgamento e sentença, ela, com a reprovação social e o estigma, como se fosse a culpada.
A graça do espetáculo reside justamente em problematizar a moral sexual civilizada, para usar termos caros a Freud. Afinal, se um homem adulto, de quarenta anos, se apaixona por uma criança de doze, ele sabe que não deve ceder à paixão, mas, o que fazer se lhe parece impossível não ceder a ela? Se nunca se apaixonou por uma criança, deverá então esperar que ela cresça? Sim, deverá, é isso o que aprendemos. No caso do personagem vivido por Zambuzzi, após todo ocorrido, ele estudou livros, procurou entender os “padrões” de quem cede a tais impulsos, buscou saber se afinal era “um deles”. Ela, por outro lado, tentando entender, ressentida há muitos anos por ter sido abandonada, pergunta com quantas outras meninas ele fez o mesmo? Seria ela a única? Ela quer ter sido a única?
A temática já vale a ida ao teatro por nos fazer pensar em nossos costumes, mas tudo fica mais interessante quando, ao final de tudo, uma ponta de dúvida e ambiguidade, com a chegada da menina, que é interpretada por Debora Ozório em participação especial, nos faz reavaliar tudo o que Ray falou de si. Qual o grau de verdade presente na sua versão dos fatos? Se coubesse a nós algum posicionamento, deveríamos nos compadecer de um ser humano que errou, mas que errou gravemente e apenas uma vez na vida, que pagou caro por seu erro, ou deveríamos, ao contrário, julgá-lo como alguém que tem um hábito reprovável e repugnante?
Penso que, no início do espetáculo, quando chegam ao compartimento insalubre em que se dará todo o acerto de contas, os personagens demoram um pouco para situar a questão, para falar dos fatos e dos sentimentos que resultaram deles. O que mais interessa é o drama de um protagonista que não sabemos se é inocente ou se é culpado, se é digno de confiança ou não. Esse é o aspecto mais relevante do texto. Menos suspense inicial em relação ao que ocorreu talvez permitisse um aproveitamento ainda maior da ambiguidade que o espetáculo levanta.
Cabe finalizar dizendo que a peça foi indicada ao 3º Prêmio Botequim Cultural por Melhor Espetáculo, Melhor Direção, Melhor Ator e Melhor Atriz, em 2014, ao 4º Prêmio Questão de Crítica por Melhor Trilha Sonora Original, em 2014, e ao 27º Prêmio Shell de Teatro, por Melhor Música, em 2014. A peça está em cartaz até 27 de setembro, sextas, sábados e domingos.
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